América Latina

O novo alinhamento automático da Argentina com os Estados Unidos

(Arquivo) Presidente da Argentina, Javier Milei, no Encontro Anual do Fórum Econômico Mundial, em Davos-Klosters, Suíça, em 17 jan. 2024 (Crédito: WEF/Ciaran McCrickard)

Por João Estevam dos Santos Filho* [Informe OPEU]

Tendo iniciado seu mandato em dezembro de 2023, Javier Milei tem realizado significativas mudanças não apenas na política econômica do governo argentino, mas também na política externa do país sul-americano, ao buscar um alinhamento automático com os EUA. Apesar de esse tipo de atuação internacional não ser estranho ao histórico das relações exteriores da Argentina desde o pós-Guerra Fria, como demonstrado durante o governo de Carlos Menem (1989-1999), a gestão de Milei indica uma nova inflexão nas relações com os EUA, inclusive dado o contexto internacional atual.

É possível dizer que o alinhamento argentino aos EUA pode ser visto de três principais dimensões: a econômica, de aprovação de pacotes neoliberais; a política regional, com o relativo afastamento de governos considerados de “esquerda” na América Latina; e uma dimensão política internacional, marcada pela diminuição no ímpeto das relações com a China e pela busca por maior aproximação com governos e setores relacionados ao novo ultraconservadorismo encontrado nas Américas e na Europa.

A dimensão econômica do realinhamento Argentina-EUA

Começando pelo primeiro aspecto, desde sua campanha, Milei se colocou como um forte defensor de medidas de austeridade fiscal e desregulamentação de diversos setores da economia como forma de lidar com a crise econômica da Argentina. Nesse sentido, já no primeiro mês foi expedido um decreto com 366 artigos, denominado “Plano Motosserra”, que incluiu revogação de leis assistenciais, flexibilização dos regimes de trabalho, diminuição de gastos públicos (especialmente em subsídios) e privatizações de setores econômicos. No mesmo mês, o governo enviou outro pacote de medidas para o Congresso, denominado “Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos”, o qual declarava estado de emergência na Argentina até dezembro de 2025, endurecimento de leis contra manifestantes e reformava algumas funções administrativas do Estado argentino.

Congreso de la Nación Argentina" | mais imagens: álbum/set … | FlickrCongreso de la Nación, Buenos Aires (Crédito: Wilson Houck Jr ‘whouck’/Flickr)

Apesar das resistências de setores da sociedade civil, principalmente organizações trabalhistas, a política econômica de Milei foi elogiada por empresas financeiras transnacionais sediadas nos EUA, como o Bank of America e a Goldman Sachs. Essas medidas também foram destacadas positivamente pela secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, avaliando que o governo estaria tomando passos importantes na recuperação da sustentabilidade fiscal, além de fazer ajustes na taxa de câmbio e buscar combater a inflação. Ademais, já antes da posse de Milei, em encontro com o diretor do Hemisfério Ocidental do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, Juan Gonzalez, o governo norte-americano expressou disposição de apoiar as negociações para um novo acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) – obtido em janeiro de 2024. Nessa mesma reunião, o representante do governo estadunidense também discutiu a possibilidade de maior participação norte-americana na área de produção de lítio do país sul-americano – parceria que também se assemelha com a firmada com a China por meio do projeto Centenario Ratones na província de Jujuy.

As crises da dimensão política regional

No que se refere à dimensão política regional, indícios da inflexão conservadora do governo Milei já podem ser vistos nas declarações sobre o Mercosul e o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva. Em entrevista, o então candidato chegou a afirmar que o chefe de Estado do Brasil seria “alguém com vocação totalitária” e que não faria negócios com comunistas, incluindo Lula. Desse modo, já no início do governo Milei, foi instaurado certo mal-estar nas relações com o Brasil (o maior parceiro comercial e político da Argentina na América Latina). Também nas campanhas presidenciais, o agora governante argentino já tinha declarado que o Mercosul seria um “estorvo”, devido a sua paralisação. O presidente argentino também gerou uma crise nas relações com Colômbia e México, ao afirmar que seus respectivos presidentes, Gustavo Petro e Andrés Manuel López Obrador, seriam um “assassino terrorista”, em referência ao primeiro, e um “ignorante”, no caso do último. Ainda que concentradas no âmbito discursivo, essas ações do presidente da Argentina indicam um relativo afastamento da região, particularmente com aqueles governos considerados de esquerda, ou não vinculados (de forma direta e acrítica) a uma agenda pró-EUA e ocidental.

Alinhamento acentuado no plano internacional

Por fim, a política externa do governo Milei tem sido caracterizada por um alinhamento com os EUA no âmbito internacional, principalmente no contexto de disputa com outras duas grandes potências – China e Rússia. Nesse caso, o presidente argentino afirmou que não faria negócios com os dois países mencionados, por se tratar de “comunistas”. A declaração acabou gerando uma crise nas relações com a China, que levou a uma paralisação de créditos no valor de US$ 6,5 bilhões concedidos à Argentina por meio de swap cambial chinês. A volta desses recursos foi condicionada a demonstrações de aproximação do governo argentino com o chinês. Outra ação importante na dimensão da política internacional do governo Milei foi a recusa de participar do grupo BRICS, por meio de carta enviada aos cinco países fundadores do bloco.

Além de demonstrar esse afastamento com países não alinhados com a política externa norte-americana, o governo argentino tem buscado uma maior aproximação com os EUA, sobretudo, do ponto de vista geopolítico. Isso ficou refletido na fala do presidente, ao afirmar, durante um encontro com o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, que o país estaria voltando a intensificar suas relações com o “Ocidente”. Outra demonstração disso foi a visita à Argentina da comandante do Comando Sul dos EUA (U.S. SOUTHCOM), general Laura Richardson, para estreitar as relações militares com o país sul-americano, além de ter pressionado o governo Milei a realizar auditorias na base espacial chinesa na Patagônia. Também nesse mesmo encontro, foi anunciado o plano de construção de uma base naval conjunta com os EUA na região.

Ademais, nesse mesmo mês, o governo da Argentina anunciou a encomenda de 24 caças F-16 (fabricação norte-americana) da Dinamarca. O pedido contou com o aval dos EUA, que enviaram US$ 40 milhões para ajudar na compra. Essas aquisições indicam também a desistência em relação aos aviões militares chineses que haviam sido oferecidos pelo país asiático. Finalmente, a administração do país sul-americano requisitou, formalmente, o ingresso como parceiro global da OTAN, a fim de expandir as relações militares com os EUA e outros países ocidentais.

Portanto, tanto do ponto de vista econômico, quanto do político-estratégico, há um interesse argentino em se alinhar com a política externa dos EUA. Essa disposição pode vir a aumentar no caso de uma vitória de Donald Trump na Presidência, como demonstrado pela aproximação entre Milei e o ex-presidente norte-americano na Conservative Political Action Conference (CPAC) realizada em fevereiro de 2024, em Washington, D.C. A questão é compreender os resultados que essa aproximação indica gerar tanto para a agenda norte-americana nos planos regional e internacional, quanto para a da Argentina, também em ambos os níveis.

Full Javier Milei's Speech at CPAC (VIDEO + ENGLISH TRANSCRIPT) – AP4Liberty(Arquivo) Milei na CPAC, em National Harbor, Maryland, em 24 fev. 2024 (Crédito: ap4libertyshop)

Significado do alinhamento Argentina-EUA

A recente inflexão nas relações entre os dois países deve ser entendida no contexto regional e internacional contemporâneo, cuja principal característica é a da exacerbação nas disputas econômicas e político-estratégicas entre as grandes potências. Nesse sentido, em nível internacional, verifica-se uma expansão das relações econômicas e militares do eixo sino-russo, sobretudo, desde a última década e, em especial, com as operações militares russas na Ucrânia. Isso é observado do ponto de vista bilateral, com o crescimento das relações entre a China e países da Ásia-Pacífico, bem como de outras regiões, tais quais o continente africano, Oriente Médio e Ásia Central, principalmente na dimensão econômica, por meio de acordos comerciais, de promoção de investimentos chineses e liberação de crédito.

Essa relação também é percebida de uma perspectiva multilateral, com o crescimento da participação chinesa e russa em espaços de articulação multilaterais, tanto os tradicionais (FMI, Banco Mundial e ONU), quanto os blocos políticos mais recentes, a exemplo da Organização para a Cooperação de Xangai (OCX), da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) e do BRICS. Também é importante mencionar a Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, em inglês), também conhecida como Nova Rota da Seda, que tem aumentado os investimentos diretos chineses em nível mundial, englobando os continentes asiático, africano e europeu, assim como a América Latina.

Por sua vez, essa competição entre as grandes potências, especialmente entre EUA e China, tem sido transportada para o nível regional na América Latina, com a mobilização de atores regionais. Nesse sentido, a China tem aumentado suas relações econômicas na região, tanto na área de fluxos comerciais, quanto na provisão de investimentos diretos e de liberação de créditos – ainda que os EUA se mantenham como principal parceiro econômico atualmente. Já o governo norte-americano tem criado, nos últimos anos, iniciativas voltadas para o crescimento dos investimentos diretos nos países latino-americanos, sobretudo, nas áreas de infraestrutura de transporte, comunicação e energia, além de repasses de recursos financeiros direcionados para tais setores, como no caso das iniciativas Growth in the Americas (anunciada em 2019) e Americas Partnership for Economic Prosperity (anunciada em 2022). Além disso, recursos do U.S. International Development Finance Corporation (DFC, o banco de desenvolvimento dos EUA) têm sido liberados para promover projetos socioeconômicos nas áreas de mineração, infraestrutura de transporte marítimo e criação de pequenas empresas em países como Equador, Colômbia, Honduras, México, Peru e Brasil.

Americas Partnership for Economic Prosperity - United States Department of  State(Arquivo) Presidente Joe Biden discursa na cerimônia de abertura da Nona Cúpula das Américas, em 8 jun. 2022, no Microsoft Theater, em Los Angeles, evento no qual anunciou a criação da ‘Americas Partnership for Economic Prosperity’ (Crédito: Erin Scott/Casa Branca)

Nesse contexto de disputa crescente entre as duas grandes potências no cenário latino-americano, o estabelecimento de laços com atores regionais de importância econômica e político-estratégica se apresenta como uma forma inserção ou de manutenção da presença nas subáreas do Hemisfério Ocidental, como a América do Sul. Desse modo, o maior entrelaçamento entre EUA e Argentina tem sido aproveitado pelos tomadores de decisão de Washington como forma de manter a presença geopolítica estadunidense em termos econômicos e militares. Isso ocorre tanto pelas iniciativas de natureza física (como a instalação de uma nova base na Patagônia), quanto pela aproximação dos projetos de política econômica de matriz neoliberal – ainda que contando com diferenças nos casos das economias argentina e norte-americana.

É importante lembrar que parte das críticas das elites políticas dos EUA têm-se centrado justamente no modelo político-econômico chinês, baseado na prevalência de empresas e instituições estatais na concorrência econômica com os EUA. Esse cenário tem sido abordado como “perigoso” para os países da região, tanto pela suposta ameaça à segurança nacional, quanto pela possibilidade de estimular vínculos de corrupção com os governos nacionais.

Essa aproximação com a Argentina se torna ainda mais importante em um contexto no qual a China tem forjado importantes parcerias econômicas e potenciais acordos militares especialmente na América do Sul nas últimas décadas. Desse modo, a eleição de Milei e sua aproximação com os EUA e com o “Ocidente” tem-se mostrado como uma possibilidade frear a influência chinesa na sub-região.

Ao seu turno, uma relação mais intensa com os EUA tem sido utilizada como uma fonte de legitimação política e econômica para o governo Milei. Essa necessidade tem crescido, na medida em que o governo argentino tem enfrentado uma série de disputas políticas com setores trabalhistas organizados, como as centrais sindicais do país, que têm realizado greves gerais, e também com partidos políticos opositores no Congresso. Uma aprovação provinda dos tomadores de decisão dos EUA, assim como das principais instituições internacionais, a exemplo do FMI, pode ajudar o governante argentino a buscar certa popularidade na sociedade do país.

Ademais, a aproximação geopolítica com os EUA e a OTAN, como evidenciado nos acordos com a organização, pode significar também uma tentativa de utilização das relações com a grande potência como uma forma de projetar o país regionalmente, ainda que isso seja limitado pela baixa capacidade que o mandatário argentino tem desenvolvido para se relacionar com outros governos latino-americanos e pelas sucessivas crises diplomáticas com Brasil, Colômbia, México e, mais recentemente, com um país ibero-americano importante na América do Sul e membro da OTAN e da União Europeia: a Espanha.

Portanto, podemos entender as relações bilaterais entre Argentina e EUA na Presidência de Javier Milei a partir do contexto geoestratégico no qual a América do Sul e, de modo mais amplo, a América Latina e o Caribe têm sido inseridos, ou seja, o de uma disputa entre as duas principais grandes potências. Desse modo, é possível compreender o apoio norte-americano à Presidência de Milei, a partir da busca das elites políticas por manterem sua hegemonia na região. Ao mesmo tempo, a aproximação com os EUA tem rendido frutos ao governo argentino, tanto no nível doméstico, quanto no externo e, particularmente, enquanto potência regional.

 

* João Estevam dos Santos Filho é professor de Relações Internacionais na Universidade Anhembi Morumbi, doutorando pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisador pelo INCT-INEU e pelo GT de Estudos sobre Estados Unidos do CLACSO. Contato: joao.estevam@unesp.br.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 21 de maio de 2024. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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