Brasil

No bicentenário, ‘USS George Washington’ aporta no Brasil: parceria ou dependência estratégica?

Porta-aviões ‘USS George Washington’ aporta no Rio de Janeiro (Fonte: X/Twitter da Embaixada dos EUA no Brasil)

Por Yasmim Abril M. Reis* [Informe OPEU]

DSC_2427 | O Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Ma… | Flickr

Chanceler Mauro Vieira (Crédito: Rafael Beltrami/MRE/Flickr)

O ano de 2024 é um marco significativo nas relações diplomáticas entre Estados Unidos e Brasil, em razão dos 200 anos de reconhecimento da independência brasileira, proclamada em 7 de setembro de 1822. Observa-se que os EUA foram um dos primeiros países a reconhecer a independência do Brasil de Portugal em 26 de maio de 1824. Como o chanceler brasileiro do terceiro governo Lula, Mauro Viera, destacou, “o bicentenário do estabelecimento de relações bilaterais entre Brasil e EUA é uma ocasião momentosa em nossa histórica diplomática”.

Nesse contexto, em meio a celebrações e discursos comemorativos, os EUA enviaram para a comemoração das relações diplomáticas no Brasil o porta-aviões “USS George Washington”, que atracou no Porto do Rio de Janeiro em 20 de maio de 2024. O discurso norte-americano buscou destacar que o envio do porta-aviões teve como finalidade reforçar a cooperação entre ambos os países. Entretanto, mostra-se pertinente um questionamento frente a essa dinâmica: reforçar a cooperação militar, ou reforçar uma subordinação do Brasil por meio dos exercícios militares?

Relação militar EUA-Brasil não completa 200 anos

Apesar do reconhecimento diplomático dos EUA da independência brasileira em 1824, as relações bilaterais entre os dois países durante o século XIX e XX foram permeadas de oportunidades esporádicas. De outro modo, o cerne das discussões tanto com o Brasil quanto com muitos países da região hemisférica consistia no desenvolvimento de projetos de integração regional. Em vista disso, identifica-se que não houve um interesse norte-americano na consolidação de uma autonomia dos países da América nem no âmbito econômico, nem no militar.

As relações militares entre Estados Unidos e Brasil foi oficializada em 23 de julho de 1942. Portanto, infere-se que ainda é uma relação que “engatinha” para um dos lados, ou melhor, para o Brasil. Do ponto de vista histórico, o interesse norte-americano em construir uma aliança nesse âmbito surge na década de 1930 frente a ameaça da Alemanha nazista em expandir seu relacionamento com países latino-americanos, o que gerou preocupação nos EUA.

De fato, a posição estratégica do Brasil era favorável para os EUA e, consequentemente, para seu posicionamento militar no contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A costa brasileira, em particular o Nordeste, tem uma proximidade com o norte da África, o que se mostrou como uma posição estratégica para os EUA realizarem a operação TORCH. Essa operação teve como objetivo facilitar a chegada dos EUA à Itália por meio da invasão do norte da África.

Outro evento contribuiu para o alinhamento assimétrico entre ambos os países. Aqui, antes de sinalizar o evento histórico, salienta-se o que se entente como cooperação militar assimétrica. De fato, o Brasil tem buscado, ao longo da história, um alinhamento com os EUA. Trata-se, no entanto, de um laço multifacetado e carregado de nuances, em que os EUA não veem o Brasil da mesma forma, como as evidências históricas revelam. De outra forma, os EUA visam, no Brasil, a um alinhamento assimétrico que varia de acordo com as preocupações norte-americana. Não há, por exemplo, uma transferência de tecnologia, para maior desenvolvimento autônomo do Brasil.

Um outro contexto que gerou uma proximidade nas relações bilaterais foi a Revolução Cubana em 1959 e, posteriormente, os sucessivos golpes militares na América Latina e no Brasil em 1964. Assim, atenta-se para os movimentos norte-americanos em consonância com suas preocupações. De outra maneira, a aproximação entre EUA e Brasil, no que concerne a primeira Aliança Militar, foi fruto da identificação da ameaça da Alemanha Nazista. Em seguida, o outro momento foi ante a ameaça comunista para os EUA. E, na atual conjuntura, percebe-se que o discurso de proximidade surge em meio à ascensão chinesa na região.

Presença da China na América Latina e permanência de uma aliança militar assimétrica

Não diferentemente dos princípios anteriores, uma nova preocupação surgiu para os EUA na política internacional, conforme mencionado acima: a China. Frente a isso, os EUA retomaram com maior ênfase o debate de cooperação em defesa entre os dois países. Em 2017, no governo Temer (2016-2018), e no subsequente governo Bolsonaro (2019-2022), foi firmado um acordo “guarda-chuva” em matéria de defesa, o qual tem como finalidade trocas de informações sobre tecnologia, prevendo o desenvolvimento de produtos binacionais.

Os acordos em matéria de defesa são, no entanto, acordos muito específicos, nos quais os EUA definem normalmente as áreas e os projetos de interesse. Na verdade, esses acordos são fruto dos interesses geoestratégicos dos EUA, o que proporciona ao Brasil tíbia autonomia nas decisões geoestratégicas. Para Marcelo Zero (2020), “as assinaturas do MIEA [Acordo Mestre de Intercâmbio de Informações em Matérias de Defesa] e do seu ‘filho’, o RDT&E, vêm na esteira de uma série de decisões estratégicas, que colocam a política de defesa brasileira a reboque dos interesses geoestratégicos dos EUA”.

Ainda assim, os militares brasileiros veem essa troca assimétrica como algo desejável e natural frente as disputas estratégicas entre EUA, China e Rússia na região. Verifica-se, no entanto, que o que ocorre é um novo processo de subalternidade política e estratégica da autonomia no desenvolvimento de tecnologias na área de defesa, como a venda da Embraer à Boeing anunciada recentemente, por exemplo.

Comandante do Comando Sul dos EUA, General de Exército Laura Richardson,  profere palestra para integrantes da ESG — Escola Superior de Guerra - ESGComandante do Comando Sul dos EUA, general de Exército Laura Richardson, profere palestra para integrantes da Escola Superior de Guerra (ESG), em 22 de maio de 2024 (Crédito: SD Santana Brito/ESG/Gov.br)

Diante do cenário que se constrói e da comemoração dos 200 anos da parceria diplomática entre EUA e Brasil, os EUA enviaram o porta-aviões “USS George Washington”, junto com a realização da Operação Southern Seas 2024, alegadamente como forma de demonstração da defesa em prol da segurança coletiva, da paz e do desenvolvimento regional. Em seu discurso de comemoração, a chefe do Comando Sul, general Laura Richardson, fez alusão, de forma implícita, à crescente presença da China na região. Bem como, a comemoração foi marcada pela presença de uma das forças navais dos EUA.

De forma sucinta, entre as entrelinhas da comemoração alguns pontos precisam ser ponderados, sobretudo, a cooperação bilateral no âmbito da defesa. Apesar de mais de 80 anos de relação militar, os interesses na região permanecem diretamente alinhados com os interesses geoestratégicos norte-americanos, sendo o Brasil a peça estratégica para sua viabilização, enquanto a indústria nacional brasileira continua estagnada.

 

Conheça alguns dos textos da autora publicados no OPEU

Informe OPEU, “Diante das instabilidades regionais, os gastos militares globais aumentaram em 2023”, em 8 de maio de 2024

OPEU Entrevista, “Leandro: ‘los discursos cambian, pero el objetivo estratégico sigue vigente’”, em 18 abr. 2024

Documentos, “Sai relatório do Comitê Consultivo de Defesa para Políticas das Mulheres nas Forças Armadas dos EUA”, em 24 mar. 2024

Informe OPEU, “Setor de Defesa dos EUA e a lacuna racial presente há mais de 150 anos”, em 13 mar. 2024

Informe OPEU, “Em meio a crises internacionais e eleições, Biden faz breve menção à política com a China no SOTU 2024”, em 9 mar. 2024

Documentos, “Departamento de Defesa lança primeira Estratégia Industrial de Defesa em 2024”, em 6 fev. 2024

Documentos, “EUA lança nova Estratégia Nacional de Ciência e Tecnologia de Defesa”, em 13 jun. 2023

Informe OPEU, “Departamento de Inteligência dos EUA publica avaliação anual das ameaças globais”, em 22 mar. 2023

 

* Yasmim Abril M. Reis é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa da Escola Superior de Guerra (PPGSID/ESG), pesquisadora colaboradora no OPEU e vice-líder e assistente de pesquisa voluntária no Laboratório de Simulações e Cenários na linha de pesquisa de Biodefesa e Segurança Alimentar (LSC/EGN). Contato: reisabril@gmail.com.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 29 maio. 2024. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora Tatiana Teixeira, no e-mailtatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas Newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mailtcarlotti@gmail.com.

 

Assine nossa Newsletter e receba o conteúdo do OPEU por e-mail.

Siga o OPEU no InstagramTwitterLinkedin e Facebook e acompanhe nossas postagens diárias.

Comente, compartilhe, envie sugestões, faça parte da nossa comunidade.

Somos um observatório de pesquisa sobre os Estados Unidos,

com conteúdo semanal e gratuito, sem fins lucrativos.

Realização:
Apoio:

Conheça o projeto OPEU

O OPEU é um portal de notícias e um banco de dados dedicado ao acompanhamento da política doméstica e internacional dos EUA.

Ler mais