Algumas notas sobre o triângulo Guiana, EUA e China
(Acima) Secretário de Estados dos EUA, Antony Blinken (à dir.) com o presidente Irfaan Ali (Crédito: Gabinete da Presidência); Presidente da Guiana, Mohammed Irfaan Ali (à esq.) e seu homólogo chinês, Xi Jinping (Crédito: Gabinete da Presidência)
Por Marcos Cordeiro Pires, Lucas Barbosa e Victória Louise Quito* [Informe OPEU]
1) Os laços da Guiana com a China são antigos. Foi o primeiro país caribenho de língua inglesa a estabelecer relações diplomáticas com o governo de Pequim em 1972. Arthur Raymond Chung foi o primeiro presidente da Guiana (1970-1980) e também o primeiro chefe de estado de ascendência chinesa em um país não asiático. Chung foi reconhecido como um líder na luta da Guiana pela independência durante o domínio colonial britânico, o que mais tarde resultou na recepção da mais alta honraria nacional do país, a Ordem de Excelência.
2) A Guiana enfrenta três disputas territoriais: a área a oeste do rio Essequibo é reivindicada pela Venezuela, impedindo qualquer discussão sobre uma fronteira marítima; a Guiana manifestou sua intenção de se juntar a Barbados na afirmação ante a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS, na sigla em inglês) de que a fronteira marítima de Trinidad e Tobago com a Venezuela se estende até suas águas; o Suriname reivindica a Área Tigri, um triângulo de terra entre os rios Upper Corentyne, Coeroeni e Kutari.
Fonte: Enciclopédia Britannica
3) A economia da Guiana cresceu significativamente nos últimos dois anos, devido ao início das atividades de extração de petróleo em seu mar territorial. Um consórcio liderado pela ExxonMobil descobriu os primeiros grandes depósitos de petróleo em maio de 2015, a mais de 190 quilômetros da Guiana, um dos países mais pobres da América do Sul, apesar de suas grandes reservas de ouro, diamantes e bauxita. A produção começou em dezembro de 2019, prevendo-se que cerca de 380.000 barris por dia aumentem para 1,2 milhão até 2027. Um único bloco petrolífero de mais de uma dúzia ao largo da costa da Guiana está avaliado em US$ 41 bilhões. Combinado com depósitos adicionais de petróleo encontrados nas proximidades, isso irá gerar em torno de US$ 10 bilhões anuais para o governo, de acordo com a Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês). Espera-se que esse número salte para US$ 157 bilhões até 2040, disse a Rystad Energy, uma consultoria energética independente com sede na Noruega.
4) Em 6 de junho de 2023, a Guiana foi eleita para substituir o Brasil como membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU a partir de 1º de janeiro de 2024.
5) A visita do secretário de Estado Antony Blinken a Georgetown se seguiu à sua participação na Quadragésima Quinta Reunião Ordinária da Conferência de Chefes de Governo da Comunidade do Caribe (Caricom), realizada de 3 a 5 de julho de 2023. Segurança alimentar, segurança climática e segurança energética foram alguns dos temas abordados pelo presidente Irfaan Ali durante a visita de Antony Blinken à Guiana.
6) O governo do presidente Irfaan Ali, do Partido Progressista Popular/Cívico, um partido com tendências socialistas, está promovendo uma forte modernização do país com recursos provenientes do petróleo. A pequena nação sul-americana e caribenha é foco de uma série de investimentos dos Estados Unidos, China, Reino Unido, Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes Unidos.
É importante considerar que o recente boom econômico trazido à Guiana abriu novas possibilidades para o desenvolvimento do país. A criação de um fluxo de divisas resultante das exportações de petróleo torna o país atrativo para investimentos estrangeiros, pois os investimentos podem ser reembolsados com bons retornos e a garantia de que os lucros podem ser enviados para a sede em moeda forte.
Por conta disso, o governo de Irfaan Ali incentiva investimentos na construção de infraestrutura para integrar o país e viabilizar novos investimentos, notadamente de empresas privadas. Embora o país tenha se tornado um exportador líquido de petróleo, não possui capacidade de refino e a possibilidade, no curto prazo, de expandir significativamente a produção de eletricidade, uma precondição para o avanço em setores tradicionais da economia, como a extração de petróleo e a mineração, especificamente a bauxita, matéria-prima para a produção de alumínio. A imagem a seguir, publicada em 7 de julho, mostra o presidente Irfaan Ali na inauguração de um novo alto-forno na planta industrial da empresa chinesa Bosai.
No que diz respeito à relação Guiana-China, é importante destacar a opinião de Irfaan Ali sobre as relações bilaterais em uma entrevista concedida em janeiro de 2023 ao The Leaders Talk, programa de televisão da China Global Television Network (CGTN): “Vemos a China como uma importante parte da equação energética do nosso país. Continuamos a encorajar a China, como encorajamos todos, a participar plenamente do processo de licitação desta plataforma energética que estamos desenvolvendo em escala global”.
Vale a pena mencionar que China e Guiana chegaram a um acerto sobre um acordo de empréstimo com o Banco da China no valor de € 160,8 milhões (US$ 172,4 milhões) para avançar na construção da nova ponte sobre o rio Demerara. O projeto, que vem sendo elaborado há tempos, foi concedido a uma joint venture formada pela China Railway Construction Corporation, China Railway Construction Company e China Railway Construction Bridge Engineering Bureau Group.
Em relação à segurança alimentar, vale considerar que o país recebe doações de trigo dos Estados Unidos. A Guiana é copresidente do Comitê de Ação de Alto Nível EUA-Caribe para Segurança Alimentar. Há dois problemas a serem considerados: (1) o consumo de trigo, por exemplo, é fruto da colonização europeia, e o clima tropical cria dificuldades para sua produção no país. Como resultado, depende das importações para satisfazer a demanda interna. Sem a capacidade de importar, a segurança alimentar fica seriamente comprometida; (2) a agricultura nos países do Caribe é muito vulnerável ao clima, particularmente aos furacões que tradicionalmente prejudicam os países da região. Considerando-se sua proximidade crescente, acreditamos que a China poderia criar sua própria iniciativa para apoiar a Guiana e os países do Caribe também neste aspecto.
No que diz respeito à segurança climática, a Guiana exige apoio internacional para lidar com os efeitos das alterações climáticas e ajuda para se recuperar dos impactos cada vez mais desastrosos dos fenômenos meteorológicos extremos. Neste sentido, o país procura uma compensação ambiental pela manutenção da maior parte da cobertura florestal do país, uma vez que a maior parte da população está concentrada em cidades da costa caribenha. Um ponto interessante a ser abordado diz respeito ao mercado de títulos de certificados de energia renovável (REC, na sigla em inglês), conforme previsto nos acordos assinados por meio das Conferências das Partes sobre Mudanças Climáticas.
Depois da visita de Blinken, em que área Blinken pressionou a Guiana e Ali, especialmente na relação Guiana-China? Como Ali poderá equilibrar a relação trilateral Guiana-EUA-China?
Após as declarações públicas e a coletiva de imprensa de Irfaan Ali e Antony Blinken, não houve menção à China, exceto pela pergunta provocativa de um jornalista americano sobre os empréstimos chineses ao país. Em sua resposta, o presidente da Guiana afirmou que a nação está aberta à cooperação com outros países e listou parcerias com a China e outros países, como Estados Unidos, Reino Unido, Arábia Saudita, Fundo Islâmico de Desenvolvimento, Catar, Emirados Árabes Unidos, etc. Ele afirmou que o país está aberto ao investimento e que os empréstimos da China seguem taxas de juros e critérios técnicos internacionais.
Em um release divulgado para a imprensa, emitido pelo Departamento de Estado dos EUA, Irfaan Ali destacou suas prioridades e a parceria com os Estados Unidos: “Partilhamos interesses comuns em três áreas muito importantes, ou seja, segurança alimentar, segurança energética e segurança climática. Como sabem, a Guiana está contribuindo significativamente para essas três áreas. A visão da Guiana é posicionar nosso país para ser um líder, um líder global em segurança energética, segurança alimentar e segurança climática. Procuramos expandir nossa parceria com os EUA em todas estas áreas. […] Os Estados Unidos desempenharam um tremendo papel na formação das nossas forças de segurança. Nos últimos dois anos, tivemos a maior parceria em termos de formação das nossas forças de segurança e parceria no combate às mais diversas formas de crime, e obtivemos um tremendo sucesso nos últimos anos nestas áreas”. Falando sobre a relação da Guiana com o Comando Sul dos Estados Unidos (SOUTHCOM, na sigla em inglês), o chefe de Estado afirmou que ela é dinâmica e em expansão, trazendo “resultados tremendos” para a Guiana.
Quanto à questão da segurança, vale citar o trecho da nota do Departamento de Estado sobre a visita de Blinken ao país: “Ainda neste mês de julho, a Força de Defesa da Guiana sediará o TRADEWINDS, um exercício regional do Comando Sul dos EUA focado na segurança no Caribe. Além disso, a administração Ali continua a trabalhar para melhorar a segurança na Guiana, colaborando com o governo dos EUA para garantir que as autoridades guianesas recebam formação para modernizar a força policial e o setor de segurança da Guiana. O Departamento Internacional de Narcóticos e Aplicação da Lei de Georgetown tem sido fundamental na nomeação de membros da Força Policial da Guiana para a Academia Internacional de Aplicação da Lei, onde os participantes aprendem técnicas eficazes para combater a lavagem de dinheiro, o tráfico de seres humanos, a interdição de fronteiras e crimes financeiros”.
Além das questões bilaterais, vale destacar que Blinken abordou a crise política na Venezuela e a instabilidade política e social no Haiti. No caso da Venezuela, é importante salientar o fluxo migratório para o país e a busca de uma solução política para a crise iniciada em 2013. Na reunião da Caricom, a Guiana votou pelo fim das sanções americanas contra o governo de Caracas, bem como contra o bloqueio econômico a Cuba.
Especificamente sobre o Haiti, os Estados Unidos estão pressionando vários países para formar uma missão internacional para estabilizar o país, uma vez que o atual governo constituído enfrenta diversas ameaças de grupos armados e não pode impor a ordem. Este tema teve espaço privilegiado na reunião da Caricom, que divulgou um comunicado separado da declaração oficial sobre a crise haitiana, conforme segue:
“Os chefes de Governo deliberaram sobre a complexa crise que envolve o Haiti e expressaram sua grave preocupação com as profundas crises humanitárias, de segurança e de governança.
A este respeito, notaram a necessidade da criação imediata de um Corredor de Estabilização Humanitária e de Segurança sob o mandato de uma Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) e concordaram em procurar o apoio de parceiros internacionais para ajudar a financiar sua criação e o reforço da segurança no Haiti.
Os chefes de Governo são de opinião que devem ser feitas abordagens junto a Ruanda, Quênia e outros parceiros internacionais dispostos a apoiar o reforço da Polícia Nacional do Haiti (PNH) e o estabelecimento do corredor.
Saudaram a declaração do primeiro-ministro do Haiti de que não se candidatará às eleições, mas chefiará um Governo de Transição para garantir os preparativos para a transição do país das crises de segurança e humanitária até à realização de eleições críveis, livres e justas.
Os chefes de Governo reconheceram que o Grupo de Pessoas Eminentes da CARICOM (EPG) continuará a trabalhar com o Governo haitiano e as partes interessadas em seus esforços para encontrar uma solução para a crise (que seja) liderada pelo Haiti”.
O governo de Irfaan Ali demonstrou que procurará defender os interesses de seu país, agindo em diferentes frentes e com outros parceiros. O fato de o presidente ser um muçulmano de origem indiana é uma característica importante, pois busca parcerias baseadas em suas raízes pessoais. Além disso, apesar de ser governo de um partido político que sofreu um golpe de Estado dos Estados Unidos na década de 1960, Irfaan Ali é muito pragmático. Além disso, utiliza os laços históricos de seu país com a China, cujas relações diplomáticas completaram 50 anos em 2022, para buscar uma aproximação especial com o governo de Pequim.
Um dado significativo a ser considerado nas atividades internacionais da Guiana é que, em 2024 e 2025, o país ocupará um assento no Conselho de Segurança da ONU. A deferência da visita de Antony Blinken a Georgetown prova que os Estados Unidos procurarão trazer o país sul-americano para sua esfera de influência, nomeadamente no que diz respeito a uma intervenção no Haiti autorizada pelo Conselho de Segurança.
É possível dizer que uma questão essencial para o presidente da Guiana é garantir a integridade territorial do país, assim como a atual definição de sua zona econômica exclusiva no Mar do Caribe (que envolve Venezuela, Trinidad e Tobago e Suriname) e recursos e investimentos para acelerar seu desenvolvimento. A descoberta de enormes campos petrolíferos no país pode ser um foco de ganância e de instabilidade interna e regional, como é frequentemente observado quando países em desenvolvimento ganham riqueza repentina e começam a sofrer interferências externas (a “maldição dos recursos”) feitas por grandes empresas petrolíferas. Vale a pena mencionar que há três anos, a Guiana enfrentou grande instabilidade porque o partido então no poder, a Parceria para a Unidade Nacional/Aliança para a Mudança (APNU/AFC), recusou-se a admitir sua derrota para o partido de Irfaan Ali.
A este respeito, uma posição clara da China em relação à integridade do país, ainda mais como membro permanente do Conselho de Segurança, seria essencial para Irfaan Ali. Aliás, um fato significativo é que houve uma prolífica reunião em Chendu (sudoeste da China) entre Xi Jinping e Irfaan Ali em 28 de julho de 2023, na qual celebraram suas relações amigáveis. O comunicado de imprensa do Ministério das Relações Exteriores da República Popular da China comenta a história de longo prazo desta relação e sua intenção de continuar investindo na economia da Guiana, no fluxo de pessoas entre os dois países e, claro, em acordos bilaterais e multilaterais. Mais importante ainda, Jinping também felicitou o país sul-americano por sua recente eleição como membro não permanente do Conselho de Segurança para o mandato 2024-2025. Este movimento diplomático do governo chinês pode ter sido exatamente de que Ali precisava como uma espécie de reconhecimento como uma peça importante no Sistema Internacional.
Menos importante, mas ainda assim relevante, foi um comunicado de imprensa mais recente da China, no qual foi informado que o embaixador chinês na Guiana, Guo Haiyan, publicou um artigo sobre o “futuro da humanidade” em um jornal guianense. Este assunto foi também uma forma interessante de consolidar seus laços, como reiterou o embaixador:
“A Guiana é uma boa amiga e importante parceira da China. O desenvolvimento dos dois países é altamente complementar e oferece oportunidades de desenvolvimento mútuo. A China está disposta a tomar a cooperação de alta qualidade do Cinturão e Rota como uma plataforma, a procurar uma maior complementaridade entre nossas estratégias de desenvolvimento, a expandir a cooperação vantajosa para todos em áreas como infraestrutura, desenvolvimento industrial e desenvolvimento verde, e a construir uma comunidade China-Guiana unida, com um futuro compartilhado. A China apoia a Guiana no desempenho de um papel mais importante nos assuntos internacionais e regionais e está disposta a trabalhar com a Guiana para promover, conjuntamente, o multilateralismo genuíno, salvaguardar os interesses gerais dos países em desenvolvimento, lutar por uma circunstância internacional favorável à modernização dos países em desenvolvimento e contribuir para paz, segurança, prosperidade e progresso mundiais”.
* Marcos Cordeiro Pires é professor associado da Unesp-Marília, cocoordenador do grupo de pesquisa BRICS (CNPq), membro do Instituto de Economia e Estudos Internacionais, coordenador do Latino Observatory e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).
Lucas Barbosa é pesquisador colaborador do OPEU e mestrando em Ciência Política (UniRio). Contato: lucasmabar@gmail.com.
Victória Louise Quito é pesquisadora colaboradora do OPEU e mestranda em Relações Internacionais (IRI/PUC-RJ). Contato: victorialouiseq@ufrj.br.
** Tradução da versão em inglês, revisão e edição finais: Tatiana Teixeira. Este Informe foi escrito em 9 jul. 2023 e atualizado em abril de 2024. Seu conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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