A disputa pela indústria de semicondutores e seu impacto eleitoral nos EUA, parte I
(Arquivo) Presidente Joe Biden discursa no local da nova fábrica de semicondutores da Intel, em New Albany, Ohio, em 9 set. 2022 (Crédito: Casa Branca/Adam Schultz)
Por Lauro Henrique Gomes Accioly Filho* [Informe OPEU]
Recentemente, a Intel demonstrou interesse em investir US$ 100 bilhões em quatro estados dos Estados Unidos para construir e expandir fábricas, com US$ 19,5 bilhões já garantidos em subsídios e empréstimos federais, no âmbito da chamada Chips Act, e à espera de mais US$ 25 bilhões em incentivos fiscais. O principal objetivo é transformar campos vazios perto de Columbus, no estado de Ohio, em um centro de fabricação de chips para uso em Inteligência Artificial (IA), com início previsto para 2027. O plano também inclui reformas em locais instalados no Novo México e Oregon, além de expansão no Arizona. Os fundos do plano de Biden ajudarão a Intel a “corrigir” seu modelo de negócios, que foi afetado pela perda de liderança na produção de chips para a Taiwan Semiconductor Manufacturing Co (TSMC) na década de 2010, resultando em margens de lucro mais baixas.
Acrônimo em inglês de “Criando Incentivos Úteis para Produzir Semicondutores”, a Chips Act é uma lei aprovada no Congresso estadunidense e assinada por Joe Biden em 2022, com o objetivo de fornecer financiamento à produção de semicondutores nos Estados Unidos. O documento destaca a questão de não disponibilizar dinheiro para ser usado na construção, modificação ou melhoria de uma instalação fora do território dos Estados Unidos.
Esta medida reflete uma resposta direta às cadeias globais de valor, que são sistemas complexos de produção envolvendo as diferentes etapas da produção distribuídas por diferentes países, com base em fatores como custo, especialização e eficiência. De acordo com o economista francês François Chesnais, em seu livro A mundialização do capital (Xamã, 1996), este modelo ajudou as empresas a se expandirem globalmente, procurando mão de obra mais barata e condições regulatórias mais favoráveis em outros países.
A elaboração desta lei norte-americana pode indicar um novo cenário em relação à desindustrialização em certos países, à medida que as empresas transferiram a produção para os locais com custos de mão de obra mais baixos, enquanto as empresas buscavam cadeias de suprimentos globais mais eficientes e econômicas.
Além disso, de acordo com a pesquisa publicada em 2018 pelos professores Esther Majerowicz (UFRN) e Carlos Medeiros (IE/UFRJ), a China conquistou um avanço importante na produção de semicondutores e na diminuição de sua dependência. Em 2009, tornou-se a principal base mundial de semicondutores em espaço fabril. Já em 2017, o país tinha três empresas entre as dez maiores do mundo, sendo elas a Jiangsu Changjiang Electronics Technology, Tianshui Huatian Microelectronics e Tongfu Microelectronics. Alcança, porquanto, um patamar de indústria madura com empresas nacionais globalmente competitivas em serviços terceirizados.
Este cenário se agrava, devido aos efeitos do alto impacto da crise financeira global de 2008, a qual levou alguns países, como a China, a adotarem planos de redução de dependências, especificamente, no setor de alta tecnologia. Segundo a pesquisa de Dieter Ernst, o interesse prioritário chinês é alcançar determinada autossuficiência em setores de alta tecnologia.
A disputa geopolítica dos semicondutores e o declínio da classe média nos EUA
O cenário de disputa geopolítica dos semicondutores não acontece no vácuo. Uma série de fatores contribui para essa dinâmica, incluindo o ressurgimento de lideranças de extrema direita que usam a perda de poder aquisitivo, o desemprego e a precarização das condições de trabalho de um grupo social específico, por exemplo, como mecanismo narrativo de manipulação.
Conforme argumenta o historiador Peter Temin, em seu livro The Vanishing of the Middle Class (MIT Press, 2017), os Estados Unidos têm enfrentado um longo processo regressivo em sua estrutura produtiva, resultando na concentração de renda e riqueza. O setor de Finanças, Tecnologia e Eletrônica (FTE) é responsável por grande parte dos rendimentos totais do país, deixando uma parcela mínima do produto nacional para uma vasta população de trabalhadores não qualificados, que são alocados em setores de baixa densidade tecnológica.
Este cenário se relaciona com a acentuada e grave transformação do fenômeno regional do Rust Belt de “Cinturão da Manufatura” para “Cinturão da Ferrugem”. O outrora coração industrial da América se torna uma área de industrialização mais antiga, obsoleta e extensa dos Estados Unidos. Esta conjuntura já é abordada no livro A Era dos Extremos (Companhia das Letras, 1995), do historiador Eric Hobsbawm, que relata a decadência dessa região, em meados do século XX, com a transferência de fábricas para o oeste do país e o aumento da automação. Geograficamente, a região abrangia os estados do nordeste, do leste do estado de Nova York, ao norte de Indiana e leste de Illinois e Wisconsin, passando por Pensilvânia, Ohio e Michigan. Estes três últimos foram decisivos para o resultado da eleição presidencial de 2016 nos Estados Unidos.
Segundo a pesquisa de Lance Taylor (New School for Social Research) e Özlem Ömer (Haci Bektas Veli University) publicada em 2019, essa conjuntura resulta de um retorno da economia norte-americana a uma estrutura econômica altamente desigual, em face de mudanças institucionais e tecnológicas profundas e da expansão chinesa. Esta pesquisa mostra que a China foi capaz de deslocar para si grande parte dos empregos industriais de média complexidade dos Estados Unidos, cuja combinação dos efeitos das mudanças na produção e na produtividade fez os “setores estagnados” (de baixa produtividade) absorverem a maior parte da criação de empregos. A eliminação de postos de trabalho foi concentrada nos setores de tecnologia da informação, atacado, varejo, agricultura e manufatura. Fruto do processo de automação que ocorre há mais de dois séculos, a robotização também teria contribuído para um crescimento mais lento do emprego, principalmente ao bloquear o acesso de jovens ingressantes na força de trabalho industrial.
Entretanto, cabe destacar que pouca ênfase foi promovida nesta pesquisa em relação à atuação tardia dos tomadores de decisão nos Estados Unidos para reverter este cenário doméstico. Nota-se uma busca recorrente de culpar a China por essas novas estruturas estabelecidas. A fact sheet sobre a Chips Act no site oficial da Casa Branca sublinha esta tática, cujo título destaca o objetivo de conter a China. E um trecho do texto afirma que “esses fundos também vêm com fortes restrições, garantindo que os destinatários não construam determinadas instalações na China e em outros países de preocupação”.
Conforme destacado por Wendy Brown em Nas Ruínas do Neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente (Politeia, 2020), as crises e pressões econômicas, com ênfase posta na do neoliberalismo e seu desmonte das políticas assistenciais, fortalecem o resguardo dos setores mais enfraquecidos dos trabalhadores, movimentando uma divisão dentro da própria classe operária. Neste novo cenário, verificava-se uma forte estratificação entre os trabalhadores qualificados, assim considerados por se adaptarem à era da produção de alta tecnologia, e os que não deram tanta abertura (ou tiveram menos oportunidades) para as mudanças que a tecnologia proporcionou ao mundo. A coesão social foi dissipada com uma veemência brutal após estas transformações.
Deste modo, esse desemprego industrial contribuiu para a compressão salarial em toda a economia e para a deterioração de vários centros urbanos dependentes da produção industrial, como Detroit e Flint, no estado de Michigan. A desigualdade econômica resultante fez florescer divisões raciais e étnicas, exacerbando a polarização social e política que estaria por trás da eleição de Donald Trump em 2016. O cenário atual pode, contudo, não ser mais tão favorável ao candidato republicano, como consequência, entre outros, de sua não gestão da pandemia da covid-19, o que agravou a situação de uma população com baixos salários desta região. Em Michigan, por exemplo, pelo menos 13% dos habitantes vivem em condições de precariedade.
O plano estratégico de Joe Biden para a indústria de semicondutores em período eleitoral
O apoio de Joe Biden ao fundo de investimento para construir e expandir fábricas em regiões do Rust Belt é estratégico para sua campanha eleitoral atual, especialmente, porque a pandemia trouxe novas dinâmicas para a economia mundial. As rigorosas medidas de controle impostas nesse período por governos como o chinês e o sul-coreano impactaram severamente a produção industrial americana, expondo a significativa dependência das empresas dos Estados Unidos da produção de semicondutores em países do Leste Asiático. Em consequência, fez crescer o entendimento da necessidade de se fortalecer a produção doméstica, a fim de reverter essa dependência. Além disso, o agravamento das relações políticas com a China tem suscitado preocupação entre os especialistas americanos em segurança nacional, que temem a possibilidade de se tornarem cada vez mais dependentes dos produtos chineses para o abastecimento de setores críticos da economia nacional.
Rust Belt nos EUA (Fonte: Enciclopédia Britannica)
Em um tom diferente do que é adotado por Donald Trump, Biden aposta em uma política econômica mais tecnicista, já que, apesar de os chips semicondutores terem sido inventados nos Estados Unidos, a maior parte da produção foi transferida para outros países. Atualmente, a maioria dos chips semicondutores de última geração é fabricada em Taiwan. Apenas cerca de 10% desses circuitos eletrônicos são produzidos nos Estados Unidos, e nenhum deles pertence à categoria dos mais avançados. Mesmo os superchips projetados nos EUA por empresas como a Nvidia são fabricados em outras regiões.
Outra motivação para o avanço deste plano durante a administração Biden se direciona para a superação da dependência de Taiwan neste setor, visto que ainda há discussões de reivindicação da ilha pela China. Um possível ataque militar ou invasão ao território perturbaria substancialmente a economia mundial.
Enquanto alguns países, como a Alemanha, procuram atrair fabricantes de chips para reduzir a dependência de Taiwan e do Sudeste Asiático, a empresa que está construindo uma fábrica em Dresden é a TSMC, uma gigante taiwanesa de semicondutores – o que não diminui, efetivamente, essa dependência. Os Estados Unidos buscam, por sua vez, construir fábricas de chips avançados em seu próprio território, sem depender de empresas estrangeiras. Esta tática deixa nítido que a administração Biden vê isto como uma forma de criar empregos domésticos e superar as vulnerabilidades da segurança nacional.
À vista disso, a disputa pela indústria de semicondutores nos Estados Unidos reflete uma série de dinâmicas econômicas, políticas e sociais que se entrelaçam. Diante da crescente dependência das empresas americanas da produção asiática de semicondutores e das preocupações com a segurança nacional em relação à China, Biden busca reverter a situação, promovendo investimentos em instalações de fabricação doméstica. Essa abordagem, em contraste com a de seu antecessor, visa não apenas à criação de empregos, mas também à redução da vulnerabilidade econômica e à reafirmação da soberania tecnológica dos Estados Unidos.
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Informe “Desafios na era digital: a suprema corte e a disputa sobre moderação de conteúdo nas redes sociais”, publicado em 6 mar. 2024
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Informe “Democracia violada: os desafios políticos após a era Trump”, publicado em 23 out. 2023
* Lauro Henrique Gomes Accioly Filho é pesquisador colaborador do OPEU e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Contato: lauroaccioly.br@gmail.com.
** Revisão e edição finais: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 30 de maio de 2024. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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