Tina Turner: um legado de representação e de luta no rock’n’roll
Ike e Tina Turner em janeiro de 1971, no Aeroporto de Amsterdã Schiphol (Crédito: Rob Mieremet e Adam Cuerden)
Por Danilo Faustino, Haylana Burite e Victoria Louise Quito* [Informe OPEU]
Tina Turner, ou Anna Mae Bullock – seu nome de registro –, foi conhecida em todo o mundo como a Rainha do Rock’n’roll. Simply the best, como ela mesma cantou em 1991, em uma melodia que ainda ecoa em nossas playlists e nossos corações. Nascida nos Estados Unidos, a cantora viveu muitos desafios enquanto mulher negra que disputava um espaço de poder que poucos alcançaram. Filha de operários, Tina começou sua carreira formal como vocalista ocasional da banda de R&B Kings of Rhythm, de Ike Turner, e atingiu grande fama pela primeira vez a partir de suas apresentações na dupla Ike & Tina Turner – a qual recebeu, inclusive, um Grammy de Melhor Gravação em Rock’n’roll, pela música “It’s Gonna Work Out Fine”, em 1962. Desse momento em diante, sua carreira foi marcada por premiações, apresentações memoráveis e atuação em filmes de Hollywood.
O grande talento de Tina fez sua notoriedade perdurar até os dias de hoje – e, quem sabe, pela eternidade? – e lhe garantiu importantes reconhecimentos, como seus 12 Grammys e sete Billboards, além de 13 troféus em outras premiações e uma estrela no Hall da Fama. Ela exerceu a carreira de cantora até o ano de 2009, quando fez sua última apresentação, na turnê “Tina!: 50th Anniversary Tour”. Ainda nos anos 1990, deixou os Estados Unidos para morar na Suíça, país onde viveu até seus últimos dias e se naturalizou como cidadã (renunciando, também, à cidadania estadunidense, em 2013). E essa decisão de mudar de ares e levar uma vida mais calma do que aquela proporcionada pelo show business, à primeira vista controversa, pode ser explicada pelos momentos terríveis enfrentados pela artista desde o começo de sua trajetória na música, quando estava com Ike Turner. Sua história com o cantor foi constituída de muito mais sucesso e glamour nos palcos do que nos bastidores, onde a cantora passava por recorrente episódios de violência doméstica, sendo agredida pelo então marido.
Trecho de apresentação na Holanda, na turnê “Tina!: 50th Anniversary Tour“
Tina Turner e o rock como ferramenta de denúncia contra a violência doméstica
Três décadas antes de o movimento #MeToo inspirar milhares de homens e mulheres a quebrarem o silêncio e a lutarem pela superação da violência de gênero, Tina Turner foi uma das pioneiras a revelar os abusos sofridos no casamento com Ike. Em 1981, em um ato de coragem, Tina Turner revela pela primeira vez à revista People que “estava completamente apavorada com aquele homem“. Ao longo dos anos, Tina Turner deu voz às suas experiências traumáticas em livros como Eu, Tina: a história de minha vida (Editora Rocco, 1986) e Tina Turner: minha história de amor (Grupo Editorial Record, 2019), revelando os abusos físicos, psicológicos e financeiros que enfrentou e a levaram a uma tentativa de suicídio em 1968, por overdose de medicamentos.
Em julho de 1976, Tina finalmente pediu o divórcio de Ike Turner, processo que foi finalizado dois anos depois. Ela conseguiu os direitos dos royalties de compositora das músicas que havia escrito e abriu mão de todo o patrimônio para poder manter seu nome artístico, uma vez que este já havia se tornado sua marca registrada. O fim do casamento aconteceu logo após ela ter sido dispensada da gravadora Capitol Records. Em 1984, a cantora conseguiu um novo contrato e sua carreira decolou com o lançamento do seu quinto álbum solo, Private Dancer, sendo a música “What’s Love Got To Do With It” [O que o amor tem a ver com isso?] um dos seus maiores sucessos.
Essa música se tornou um hino de superação da violência doméstica, questionando a existência e/ou validade do amor em relacionamentos abusivos. “What’s Love Got To Do With It” é um reflexo do processo de libertação de Tina após anos de confusão e dor. Na música, Tina desmitificou o amor romântico e discutiu a necessidade do reconhecimento de abusos em relacionamentos afetivos, revelando que, mesmo tendo sentimentos por seu amado, ela pensa em sua própria proteção e encara o amor como uma second-hand emotion [emoção barata].
No livro Tudo sobre o amor (Editora Elefante, 2021), a teórica feminista afro-americana bell hooks fala da perspectiva feminina em relacionamentos, relatando como desde a infância fomos ensinadas pelos nossos pais que abusos e negligência, o desamor, também são manifestações de amor. Esse aprendizado fez incontáveis gerações de mulheres se manterem em relações abusivas por falta de referencial. Assim, bell hooks defende que:
“Amor e abuso não podem existir. Abuso e negligência são, por definição, opostos a cuidado. Ouvimos com frequência sobre homens que batem na esposa e nos filhos e então vão ao bar da esquina proclamar apaixonadamente o quanto os amam. Se você conversar com a esposa num dia bom, ela pode insistir que ele a ama, apesar da violência. A grande maioria de nós vem de famílias disfuncionais nas quais fomos constrangidos, abusados verbal e/ou fisicamente e negligenciados emocionalmente, mesmo quando nos ensinavam a acreditar que éramos amados. Para a maioria das pessoas, é simplesmente ameaçador demais aceitar uma definição de amor que não nos permitiria mais identificar o amor em nossas famílias. Muitos de nós precisamos nos apegar a uma ideia de amor que torne o abuso aceitável ou que ao menos faça parecer que, independentemente do que tenha acontecido, não foi tão ruim assim”.
Tina teve um papel significativo ao quebrar o silêncio entre mulheres famosas e bem-sucedidas que sofriam violência doméstica e não encontravam um espaço para debater suas dores. Havia uma falácia na sociedade de que apenas as mulheres com menor poder aquisitivo sofriam tais violências. Assim, o ativismo da artista foi fundamental para retirar do ambiente privado as violações de gênero ocorridas no matrimônio, tendo inclusive feito parceria com a organização Women’s Aid.
Racismo e vida na Europa
Durante a carreira, principalmente em seu auge como solista nas décadas de 1980 e 1990, Tina Turner precisou lidar com o racismo em seu país natal. No documentário Tina (HBO, 2021), Ike Turner comenta que uma das grandes barreiras musicais nos Estados Unidos era precisar se encaixar totalmente como “música negra”, ou “música branca”, para que uma faixa fosse aceita. A gravação da icônica “River Deep, Mountain High” (1966) não teve uma recepção grandiosa nos Estados Unidos, ainda que no Reino Unido tenha alcançado o terceiro lugar na principal parada musical.
John Carter, produtor musical da Capitol Records, conta que um dos novos executivos da gravadora chamou Tina de “negra velha idiota” (old n*gger douchbag, no inglês) e tentou cancelar o contrato da cantora durante a mudança de direção da empresa. Para gravar o primeiro álbum solo, Tina e sua equipe viajaram para Londres, motivados pelo entendimento de que os estúdios e produtores estadunidenses não conseguiriam entender o estilo de música que a cantora queria criar. Private Dancer (1984) chegou ao terceiro lugar na Billboard 200 (álbuns), e a reinvenção da música “What’s Love Got To Do with It?” atingiu o topo da Billboard 100 (músicas).
Tina passou a maior parte de seu tempo na Europa, principalmente no Reino Unido e na Alemanha, onde morou com um ex-namorado. Em uma entrevista ao apresentador estadunidense Larry King, em 1997, a cantora afirmou que sentia que era mais apreciada no continente europeu do que em seu país de origem. Segundo ela, mesmo que os estadunidenses a amassem, não seria tão grande nos EUA como Madonna ꟷ que, na época, já havia se consolidado como Rainha do Pop ꟷ, enquanto na Europa era tão grande quanto a outra cantora. Tina se estabeleceu em Zurique por causa de seu namoro com Erwin Bach, executivo do ramo musical. Algum tempo depois do casamento, Tina e Bach se tornaram legalmente cidadãos suíços, e a cantora renunciou à cidadania estadunidense.
Entrevista a Larry King, na CNN, em 1997
A cantora do Tennesse não foi a primeira artista estadunidense negra a deixar o país. Nina Simone deixou o país na década de 1970 e passou a morar em países africanos, caribenhos e na Suíça. O que motivou a mudança de Nina foi a frustração com a forma como as pessoas negras eram tratadas e sua experiência difícil com o mundo musical.
Em entrevista para divulgar o documentário sobre Tina Turner, os diretores Daniel Lindsay e T.J. Martin comentaram que um dos fatores que motivaram artistas como Tina a deixar o país é a tendência de se categorizar pessoas negras e de apagar as contribuições da comunidade. Podemos notar essa categorização nas conquistas de Tina no Grammy. Das oito vitórias de Turner, apenas Gravação do Ano e Melhor Performance Pop Vocal por “What’s Love Got To Do with It?”, em 1987, não foram em uma categoria de Rock ou RnB.
Simplesmente a melhor!
Como se mede o tamanho de um legado? Talvez seja impossível contabilizar, mas no caso de Tina Turner podemos visualizar. Como cantora, ela ganhou a alcunha de Rainha do Rock & Roll e vendeu milhões de cópias tanto na época em que fazia dupla com Ike quanto em sua era solo. No cinema, participou de “Mad Max – Além da Cúpula do Trovão” (1985), que foi a maior bilheteria da trilogia, e o filme sobre sua vida, “What’s Love Got to Do with It” (1993), terminou o ano no top 40 de arrecadação mundial. Atualmente, o musical “Tina” é encenado em três lugares fixos (Londres, Sttutgart e Sydney) e tem duas turnês: uma, na América do Norte, e outra, no Reino Unido e na Irlanda.
Tina contou sua trajetória com as próprias palavras em uma série de entrevistas, documentários e livros. Sua história possibilitou que mulheres ao redor do mundo reconhecessem os sinais de um relacionamento abusivo e marcou para sempre a música. Ann Mae e Tina Turner são os nomes que ela carregou durante sua jornada, mas rainha, inspiração e grandiosa são os adjetivos que estarão para sempre ligados à sua memória.
* Danilo Faustino é bacharel em Relações Internacionais pela UFRJ, foi bolsista de Iniciação Científica (INCT-INEU/PIBIC-CNPq) e é pesquisador colaborador do OPEU. Cobre as áreas de cultura, audiovisual, educação e sociedade, além de fazer parte da equipe do X (ex-Twitter). Contato: danilo.faustino@ufrj.br.
Haylana Burite é pesquisadora bolsista de Iniciação Científica do OPEU (INCT-INEU/PIBIC-CNPq) e graduanda em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ). Contato: buritehaylana@gmail.com.
Victória Louise Quito é mestranda do PPGRI da PUC-Rio, bacharela em Relações Internacionais pela UFRJ e pesquisadora colaboradora do OPEU. No Observatório, cobre a área de relações EUA-América Latina e faz parte da equipe de gestão do Observatório. Contato: victorialouiseq@ufrj.br.
** Primeira revisão:Simone Gondim. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Segunda revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 22 abr. 2024. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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