Política Doméstica

Nem cruz, nem espada: o impasse eleitoral americano em meio à crise da hegemonia

(Arquivo) Seção eleitoral vazia, na Biblioteca Pública de Lawrence, no Kansas, em nov. 2016 (Crédito: Ellis Wiltsey/Flickr)

Por Ghabriel de Oliveira Teixeira* [Informe OPEU]

A relação do eleitorado norte-americano com os dois candidatos à Presidência, o democrata Joe Biden e o republicano Donald Trump, demonstra claros sinais de desgaste. Apesar da expectativa de recorde de comparecimento na votação de novembro e da força das figuras de Biden e Trump, a população americana encara com insatisfação a falta de rotatividade dos candidatos nas últimas eleições. Donald Trump se encaminha para a terceira eleição presidencial seguida, e Biden, além de ser o atual presidente, foi duas vezes vice-presidente durante os mandatos de Barack Obama.

De acordo com o Pew Research Center, em pesquisa realizada no último mês de abril, se pudessem alterar os candidatos de cada partido, 49% dos eleitores gostariam de substituir tanto Trump como Biden, enquanto apenas 15% manteriam as mesmas candidaturas. Dentre os eleitores de Biden, 62% gostariam da troca de candidatos, número bastante expressivo, sobretudo em comparação com os 35% de eleitores de Trump que trocariam as duas opções. Comparativamente, apenas 4% dos eleitores de Biden não alterariam nenhum dos candidatos, contra 27% dos eleitores de Trump.

Chart shows About half of voters would like to see both Biden and Trump replaced on the 2024 ballot

A pesquisa indica a insatisfação dos eleitores de Biden, muito mais motivados pelo antitrumpismo e pelo combate à extrema direita do que por alinhamento ideológico ao atual presidente. Entretanto, não se deve ignorar o percentual de quase um terço de eleitores de Trump, mais alinhados ideologicamente, que trocariam o candidato republicano. A pesquisa revela que a insatisfação com a política americana é um fenômeno que se sobrepôs à polarização partidário-ideológica.

O cenário político nos Estados Unidos é dominado pelos partidos Democrata e Republicano desde a metade do século XIX. A longa hegemonia dos dois partidos possibilitou que o sistema político americano ganhasse estabilidade e certo grau de previsibilidade. Com um desenho institucional que privilegia o equilíbrio entre os partidos, a troca da legenda no poder dificilmente representa uma ruptura política significativa, especialmente no campo das relações internacionais. Apesar da estabilidade, o bipartidarismo também tem homogeneizado a política americana.

Os Estados Unidos estão convivendo com crises internacionais (Guerra na Ucrânia, disputa com a China, e o conflito entre Israel e Palestina) e domésticas (protestos pró-Palestina nas universidades, fronteira com o México e imigração, aumento da inflação e crise política com o avanço da extrema direita). O surgimento destas crises é um sintoma de uma crise mais ampla e profunda, na qual os Estados Unidos perdem legitimidade como hegemon internacional e veem a ordem neoliberal ser cada vez mais contestada internamente. Apesar de ter gerado estabilidade, o sistema bipartidário tem-se mostrado incapaz de encontrar respostas para as diferentes crises que afetam os Estados Unidos.

Os resultados da pesquisa do Pew Research Center revelam que a crise política nos Estados Unidos também se reflete em uma crise de quadros políticos. Mesmo com suas imagens desgastadas, nem os democratas, nem os republicanos parecem visualizar nomes com a mesma viabilidade eleitoral de Biden e Trump. Com uma disputa muito acirrada, a eleição não tem um claro favorito, e a resposta de cada candidato às pautas mais evidentes do ano eleitoral pode ser decisiva para o resultado da votação. Essa é uma péssima notícia para Biden, que iniciou o último ano de mandato em meio a diferentes crises.

Convergência de crises

No último mês, o avanço e o fortalecimento dos protestos pró-Palestina nas principais universidades americanas têm causado abalos na gestão Biden, que opta por um discurso mediador, com uma posição “murista” que não agrada a nenhum dos lados e tem abalado parte de sua base eleitoral. Segundo o Pew Research Center, apenas 15% dos democratas estão do lado de Israel no conflito, enquanto 28% estão do lado da Palestina. Já nos republicanos, a proporção é de 52% de apoio a Israel contra apenas 5% do lado palestino. Entre jovens de 18 a 29 anos, o apoio republicano aos palestinos aumenta para 12% e, na mesma faixa etária, o apoio democrata sobe para 47%. Os dados indicam que o conflito entre Israel e Palestina também terá um papel importante em uma eleição que deve ser bastante disputada. A forma como Biden irá conduzir os protestos nas universidades terá grande impacto em seu eleitorado jovem e de esquerda, parte importante da sua base. Um fracasso na condução política dos protestos pode ser fatal para o Partido Democrata.

Saiba mais sobre o impacto eleitoral das manifestações pró-Palestina neste novo episódio do Diálogos INEU

Outro tema que tem gerado insatisfação generalizada é a crise na fronteira com o México. A pauta é uma das principais reivindicações de Donald Trump. O lado do republicano defende um aumento ainda mais agressivo do controle e da fiscalização da fronteira. Biden, por sua vez, não rompeu com as políticas iniciadas no governo de Trump, mas propôs flexibilizações, dentre elas o aplicativo CBP One1 e um limite de 150 mil pessoas passando mensalmente pela fronteira, valor significativamente mais alto do que o proposto pelos republicanos. Entretanto, essas posturas são criticadas também por sua base de apoio, insatisfeita com a manutenção do rígido controle de fronteira e com a ineficácia das medidas propostas pelo governo Biden.

A Guerra na Ucrânia também acumula tensões e insatisfações entre o eleitorado, que se somam ao retorno da inflação durante a primeira metade da gestão e os resultados fiscais tímidos. Apesar das diversas crises que atravessa os Estados Unidos, Biden segue com boas chances de reeleição, impulsionadas principalmente pelo combate à extrema direita e ao discurso antidemocrático do trumpismo. Enquanto o atual presidente tenta construir a imagem do político que poderá reconciliar os Estados Unidos, os democratas apostam na oposição a Trump e falham em buscar uma identidade própria, construir novos quadros e sustentar uma base mobilizada e massificada de apoiadores.

As eleições de fim de ano nos Estados Unidos são marcadas pela política negativa: de um lado, o antitrumpismo e, do outro, uma extrema direita que se baseia na negação das pautas progressistas e da “cultura woke”. Novamente, o principal polo capitalista e grande hegemonia internacional se vê diante de candidatos que pouco propõem para responder à acentuada crise, na qual se encontra a sociedade norte-americana. Não é coincidência que o grau de rejeição de ambos os candidatos seja tão alto. O sistema político se estabilizou com o bipartidarismo, mas esbarra na contradição entre a estabilidade promovida e a falta de horizonte para encontrar as soluções necessárias para uma ordem em crise e em transição. A ameaça do desenvolvimento chinês aperta ainda mais um país cercado de crises e contradições, mas vazio de ideias e alternativas.

Sintomas de uma hegemonia fragilizada

Nesse sentido, é impossível pensar o cenário que cerca as eleições presidenciais dos Estados Unidos e os projetos que disputam o pleito sem levar em consideração a atual posição do país na economia política internacional. As pautas que atravessam as principais contradições da conjuntura americana – ocupação israelense na Palestina, Guerra na Ucrânia, avanço da economia Chinesa, fluxo migratório intenso – podem ser consideradas os sintomas de uma crise orgânica da hegemonia norte-americana. Sustentado pela pujança e pelo dinamismo de seu capitalismo, de suas finanças e da força do dólar, o poderio dos EUA tem sido profundamente afetado em duas dimensões.

A primeira é a dimensão material ou econômica. Com o crescimento da economia chinesa, o eixo da produção de valor no capitalismo está sofrendo uma grande alteração. A China ganha mercados e causa perdas consideráveis para o comércio no outro lado do Pacífico, movimento que pressiona a classe trabalhadora americana, formada hoje por 22% de imigrantes.

A segunda é a dimensão ideológica: os EUA perdem poder de consenso, novamente tendo como principal adversária a China. Tendo sua hegemonia questionada desde a metade do século passado, especialmente dentre os países do “Sul Global”, os EUA estão disputando – e perdendo – a influência e o apoio de países pelos continentes africano, asiático e americano. As ajudas financeiras ofertadas pela China aos países em desenvolvimento, assim como a condução atrapalhada dos atuais conflitos geopolíticos por parte dos americanos, têm intensificado e acelerado a crise no grande hegemon global.

President Xi Jinping visits Rwanda in 2018. © Flickr / Paul KagameInfluência da China há tempos vem avançando na África. Na foto (arquivo), o presidente chinês, Xi Jinping, visita Kigali, Ruanda, em 23 jul. 2018 (Crédito: Flickr/Paul Kagame)

Assim, a disputa no sistema internacional está longe de ser um assunto à parte das eleições. Da mesma forma que o resultado do pleito pode mudar o rumo da ordem mundial, a conjuntura na própria ordem influencia e delimita os termos do debate eleitoral. No caso americano, mais do que em outros, o limiar entre o doméstico e o internacional é frágil, o que se reflete nas principais crises enfrentadas por Biden hoje.

Os protestos nas universidades, em sua defesa do povo palestino e crítica ao financiamento americano em Israel, ebulem no centro do capitalismo uma pauta de alcance e interesse mundial. A crise na fronteira do México explicita a falta de estrutura e as condições de vida precárias nos países latino-americanos, condição amplamente influenciada pelo avanço das políticas de austeridade promovidas pelos norte-americanos. O fortalecimento da extrema direita entre a classe trabalhadora, insatisfeita com a economia e com a inflação, é um reflexo da neoliberalização da economia, que precariza e marginaliza grande parte dos trabalhadores americanos. Além disso, o desenvolvimento tecnológico e produtivo da China acirrou a competição por mercados no mundo, enfraquecendo produtores americanos e aumentando ainda mais a pressão sobre os trabalhadores.

A alta porcentagem de eleitores que trocariam ambos os candidatos no pleito do próximo semestre é, nesse sentido, um sintoma da crise de hegemonia americana. O velho demonstra claros sinais de esgotamento, mas o novo ainda é incapaz de surgir. A ordem mundial reconhece os sinais de sua fraqueza e as possibilidades de transformações em sua estrutura, mas não encontra respostas capazes de superar a crise. Assim, o líder da ordem vigente não consegue apresentar para sua população alternativas que consigam sanar as consequências da crise da hegemonia no cotidiano do povo americano. Donald Trump e Joe Biden mobilizam uma parcela considerável da população, mas não apresentam nada genuinamente novo. Enquanto o primeiro representa uma alternativa de radicalização da ordem neoliberal, o segundo propõe uma gestão mais branda dessa ordem.

Em nenhum dos casos, o sistema político americano parece pronto para aceitar os abalos nas estruturas que sustentam seu poder. Sem fazer isso, será impossível encontrar as respostas necessárias. E, enquanto elas não aparecem, a crise segue avançando e pressionando quem realmente importa nesse cenário: a população norte-americana. A eleição de 2024 será decisiva para os rumos do capitalismo estadunidense independentemente de quem sair vencedor. Mais interessante do que isso, será descobrir se o novo presidente será capaz de superar a maior crise da hegemonia dos Estados Unidos.

 

1 Aplicativo desenvolvido pela Agência de Alfândega e Proteção de Fronteiras (em inglês Customs and Border Protection – CBP) com o intuito de facilitar e controlar a migração pela fronteira do México. Pelo aplicativo, os usuários podem enviar documentos e informações para o governo americano, e a partir disso marcarem encontros na fronteira de forma regulamentada e legalizada.

 

* Ghabriel de Oliveira Teixeira é graduado em Relações Internacionais pela UFSC, mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais na mesma universidade, sob orientação do prof. Dr. Jaime Cesar Coelho. É membro do grupo de pesquisa da UFSC no INCT-INEU e do Núcleo de Economia e Política Externa da UFSC (NEPEX). Contato: gh_oliveira@outlook.com.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Recebido em 15 de maio de 2024. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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