Resenha OPEU

Análises críticas de Josué de Castro: ultrapassando as fronteiras da fome da hegemonia estadunidense

“Sem-teto e com fome Preciso de dinheiro para comprar comida”: homem pede ajuda em Truckee, Califórnia, em 5 ago. 2010 (Crédito: Ron A. Parker/Flickr)

Por Euryellen Melo* [Resenha OPEU]

Loja Virtual da Fundação Alexandre de GusmãoCinquenta anos após a morte de Josué de Castro, a contribuição de seu trabalho e de suas reflexões acerca da temática da fome se fazem presentes em uma nova geração de pesquisadores do século XXI. Na obra Josué de Castro e a Diplomacia da Fome, publicada em 2023 pela Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG), podemos ver a grande multiplicidade das pautas apresentadas durante a jornada de Castro, sempre relacionadas ao problema da fome. Infelizmente, a fome se avolumou neste século, impulsionada por diversos vetores: guerras e conflitos sociais, crises econômicas e climáticas, além da nociva disseminação de alimentos ultraprocessados, que contribuem para uma inédita epidemia de sobrepeso, obesidade e doenças relacionadas a ela.

Em abril de 1964, Josué de Castro é exilado no exterior em decorrência do golpe militar que ocorreu naquele ano. O exílio se estendeu até sua morte em 1973, mas não foi capaz de silenciar sua voz. As relações internacionais e a política eram pilares para a construção do pensamento do pernambucano, que era formado em medicina, professor, pesquisador e político. Em sua trajetória, ocupou cargos importantes tanto no Brasil quanto no âmbito internacional, sempre em busca de combater a fome e a insegurança alimentar de sua nação, projetando-se para além das fronteiras nacionais. Para Castro, o planejamento nacional e a intervenção estatal eram instrumentos indispensáveis para o desenvolvimento e a autonomia do país.

Neste livro, chamamos a atenção para a projeção internacional de Castro, em especial sua relação com Estados Unidos, conforme destacado pelo capítulo “A fome e os Estados Unidos: Josué de Castro e a crítica da fome no centro do poder mundial”. Escrito pelo professor e pesquisador Thiago Lima (UFPB, INCT-INEU e FomeRI), o texto expõe a indignação de Josué sobre a resistência da fome diante dos avanços científicos globais, especialmente aqueles produzidos pela superpotência. Lima traz em seu capítulo a reflexão de Josué de Castro com relação a uma questão fundamental: Por que os Estados Unidos não estavam preocupados em pôr um fim à fome da humanidade? Para Castro, era simples a resposta: não era uma prioridade política (p. 94). À vista disso, Lima cita três exemplos de momentos em que os EUA demonstraram suas dificuldades no combate às crises agroalimentares, como a Dust Bowl, a dependência de subsídios econômicos para o grupo rural e a própria fome existente no país, durante as décadas de 1950 e 1960 (p. 95).

No capítulo dividido em quatro seções, Lima explica que a intenção será apresentar as reflexões de Castro por meio de seus discursos, estudos e publicações, sobretudo, a respeito de como um país com tanta abundância de recursos econômicos e científicos, em específico os EUA, ainda enfrenta desafios para extinguir a fome de sua nação.

Relação entre o papel dos EUA e o flagelo da fome

Na primeira seção, vemos como os Estados Unidos ocupam a importante posição de maior criador e investidor de pesquisas científicas para o desenvolvimento de políticas públicas no âmbito alimentar e nutricional (p. 96), inclusive após a Segunda Guerra Mundial, tornando-se o maior doador de alimentos para as grandes populações em situação de vulnerabilidade alimentar. Com esse reconhecimento da capacidade tecnológica e científica estadunidense, especialmente para as questões agroalimentares e nutricionais, Josué – que teve vivência com o governo norte-americano durante seu estágio para sua formação em medicina – aprofunda sua reflexão sobre qual era o papel dos EUA naquele contexto. Para mais, Lima menciona como Castro reforçava a importância da Conferência de Hot Springs para que os países assumissem sem medo a responsabilidade e divulgassem a realidade nutricional de seus respectivos povos, sendo importante acentuar a visão de Castro sobre Franklin D. Roosevelt, anfitrião da reunião, classificando-o como “um estadista mundial” pelo seu desempenho em ofício.

Sete Palmos de Terra e um Caixão: Ensaio sobre o Nordeste do Brasil, uma área explosiva by Josué de Castro | Goodreads

Uma abordagem adicional de Castro mencionada por Lima é a percepção crítica do acadêmico sobre a influência estadunidense na América Latina com a Aliança para o Progresso (1961). Na obra Sete Palmos de Terra e um Caixão (Brasiliense, 1967), Josué argumenta que a Aliança não ajudaria o Brasil a lutar contra o subdesenvolvimento, mas que fortaleceria líderes ilegítimos que lucram à custa da miséria popular (p. 103). A partir dessa análise, é perceptível seu entendimento sobre como os EUA se tornaram o melhor exemplo de uma ex-colônia: uma nação independente e desenvolvida, que manteve relações econômicas com seu colonizador, o Reino Unido. Entretanto, devido ao pouco estímulo norte-americano para a cooperação entre os países, principalmente os considerados em desenvolvimento e subdesenvolvidos, Castro destaca que Washington assume uma postura neocolonialista, criticando o domínio econômico que os EUA exerciam sobre os países latino-americanos, a forte intervenção estadunidense nas políticas dos outros países, além do imperialismo cultural norte-americano que se intensificava cada vez mais na América Latina.

Na terceira seção, “A denúncia da Fome nos Estados Unidos”, é notável o impacto das obras Geografia da Fome (Antares, 1984) e Geopolítica da Fome (Brasiliense, 1959) de Castro – importante ressaltar que, no segundo citado, há uma considerável dedicação do autor em falar dos EUA, ganhando reconhecimento internacional e conquistando o Prêmio Franklin Delano Roosevelt pela Academia Americana de Ciência Política dos Estados Unidos (p. 111). Em Geopolítica da Fome, o autor descreve e analisa como era um desperdício a abundância de recursos naturais e um bioma favorável à produção agrícola, em um país no qual a política não assumia o compromisso de trabalhar nas questões agroalimentares nacionais.

Igualmente relevante, Josué examinou como a relação da escravidão com a monocultura latifundiária resultou em um sistema agroalimentar nocivo para que atendesse aos interesses dos grandes exportadores, acrescentando a industrialização como um fator contribuinte desse efeito. E, para complementar, o pesquisador também entendia que a fome se projetava em variados aspectos e intensidades nos EUA, não se restringindo apenas à população mais vulnerável naquele momento, ou seja, à população negra do Sul.

(Arquivo) Castro em viagem de treinamento a Miami, EUA, 1943 (Crédito: coleção da Fundação Joaquim Nabuco)

Na última seção do capítulo, é possível constatar a proporção da contribuição de Josué para falar do problema da fome, das suas mobilizações e discursos para ajudar aqueles que viviam à sombra da desnutrição e a falta de ação do governo de seus países. A trajetória de Castro conta com inúmeras participações em conferências internacionais, obras premiadas e indispensáveis para o campo de pesquisa, discursos em organizações e no parlamento, entre outros feitos. Ainda assim, trata-se de um autor que é ocultado pelo silenciamento da grande massa que se conformou em conviver com os diferentes graus de insegurança alimentar global. Como citado anteriormente, Josué reforça sua crítica ao sistema agroalimentar latifundiário exportador, por ser um dos responsáveis pela deficiência nutricional dos países que foram explorados e constrangidos a serem subdesenvolvidos, assim como o sistema capitalista – universalmente implantado pela influência dos EUA – e que, acima de tudo, é o causador da perpetuação das desigualdades e injustiças existentes nesse sistema econômico mundial.

Nas considerações finais, destaca-se que, embora os avanços tecnológicos tenham sido grandiosos, a insegurança alimentar e nutricional superava os singelos esforços de cooperação internacional para combater esse problema. Durante o contexto da Guerra Fria, era decepcionante e revoltante ver os Estados Unidos ocuparem a posição de superpotência e chamarem para si uma parcela expressiva de responsabilidade sobre a ordem internacional – ainda que longe de ser o único a influenciar o panorama global – sem fazer do enfrentamento à fome uma prioridade fundamental.

No decorrer das últimas décadas, a contribuição do pernambucano tem resistido à contemporaneidade, na qual, lamentavelmente, observamos a persistência dos problemas reiteradamente apresentados em suas análises, mesmo 50 anos após sua morte. Além disso, somam-se novas dificuldades em um mundo globalizado, como, por exemplo, as mudanças climáticas, o esgotamento dos recursos naturais e o avanço urbano descontrolado sobre terras agrícolas produtivas. Embora atualmente existam agendas e discussões sobre segurança alimentar e nutricional, o desempenho coletivo dos atores internacionais e nacionais diante do desafio de erradicar o flagelo da fome e garantir universalmente alimentos de qualidade e quantidade nutricional demonstra se estar apenas no começo de um longo processo de desenvolvimento e dedicação a essa pauta, tão negligenciada quanto urgente.

Referência

SILVA, José Graziano, et al. Josué de Castro e a Diplomacia da Fome. Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG). Brasília, 2023. Capítulo 3, p. 93-121. Disponível em: https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/1-1260. Acesso em: 18 mar. 2024.

 

* Euryellen Melo é graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Membra do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais da UFPB (fomeri.org). Contato: euryellen.melo@academico.ufpb.br.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Recebido em 1º de maio de 2024. Esta resenha não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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