Janet Yellen e a disputa China-EUA: implicações para a Ordem Mundial e para o Brasil
(Arquivo) Janet Yellen, em reunião do Federal Reserve, em Washington, D.C., em 17 set. 2014 (Crédito: Fed/Flickr)
Por Ailton Manoel Pereira Junior* [Informe OPEU]
No início de abril de 2024, a secretária do Tesouro dos Estados Unidos, Janet Yellen, criticou o modelo econômico da China durante uma viagem ao país. Sua agenda, destinada a discutir, entre outros temas, a relação de comércio bilateral, incluiu reuniões com burocratas, empresários e pesquisadores chineses. Esses eventos tiveram, no entanto, poucos resultados concretos para além de declarações públicas, que ganharam destaque nas mídias chinesa e americana. A fala mais reproduzida dizia respeito às críticas de Yellen à “supercapacidade” industrial da China.
Em síntese, subsídios chineses a indústrias locais e a ausência de políticas de incentivo ao consumo doméstico gerariam um excesso de mercadorias para o mercado externo a preços artificialmente baixos. Estes bens, cuja competitividade seria pautada em métodos desleais para padrões da Organização Mundial do Comércio (OMC), estariam gerando instabilidade para o livre-comércio mundial e danos para indústrias e empregos americanos. Como exemplo concreto, foram elencadas as exportações chinesas de carros elétricos (EVs, do inglês, electric vehicles), painéis solares e produtos relacionados a geração energia verde.
(Arquivo) Carros serão carregados para exportação no porto de Yantai, na província leste de Shandong, em maio de 2023 (Crédito: Xinhua)
A resposta pública de burocratas chineses, como o ministro do Comércio, Wang Wentao, ressaltou a capacidade competitiva chinesa como fonte das vantagens de preço, com seu alto nível de inovação, cadeia interna de oferta e competitividade de mercado, enfatizando o fato de que restrições comerciais contra a China na OMC gerariam impactos negativos para todos os consumidores do mundo em função de choques nas cadeias globais de valor. O primeiro-ministro Li Qiang também alertou para que os EUA não politizem assuntos econômicos, valorizando o livre-comércio para o ganho mútuo entre os países.
De fato, o gigante asiático produz cerca de dez milhões de carros elétricos por ano que sua economia interna é incapaz de absorver, ao mesmo tempo em que detém 60% das vendas mundiais desse tipo de veículo. Mas também é o único país que produz internamente todas as mercadorias catalogadas pela OMC, é líder mundial em pesquisa científica e em controle de patentes. Estes fatores auxiliam a tornar o custo de produção industrial no país mais baixo, seja diminuindo custos, aumentando produtividade, ou restringindo o domínio tecnológico.
Esta pujança econômica não ocorre, porém, sem a participação do Estado chinês. O poder de regulação e de participação estatal sobre a economia, principalmente em setores estratégicos, como é o caso do mercado de EVs, por exemplo, é central. Desde a atuação direta de empresas estatais, medidas regulatórias restritivas, maior capacidade de financiamento em função do sistema financeiro totalmente público, até subsídios e incentivos diretos criaram e sustentam o modelo chinês.
Entretanto, este também é o caso do modelo dos EUA, seja em sua história, seja em contextos recentes, como é o caso do Chips and Science Act (Lei dos Chips e da Ciência) e do Inflation Reduction Act (Lei da Redução da Inflação), ambos de 2022, ou do Green New Deal, cujo conteúdo é diretamente ligado a mecanismos governamentais para incentivar o desenvolvimento tecnológico de setores estratégicos, tais como aqueles ligados à transição energética, tendo em vista a competição chinesa. Soma-se a estas iniciativas o caso do incentivo à restrição de exportações de tecnologia para a China, ou da imposição de tarifa de 25% sobre a importação de carros daquele país. Esta medida, inclusive, rendeu denúncia feita pela China à OMC por competição desleal. Outra similar, feita em 2018, gerou reconhecimento pela OMC de que os EUA estavam infringindo as regras de comércio globais.
Observa-se, portanto, que os EUA criticam a China por políticas que eles mesmos praticam e que são regra no processo de desenvolvimento, principalmente de grandes potências que se tornam países centrais. Assim, esta não é a causa central do tensionamento da relação bilateral, sob a qual ocorreu a visita e as críticas de Yellen. Ainda mais quando posto em perspectiva o histórico da relação, pois os EUA se beneficiaram com a exportação de capitais para a China em um contexto de custos baixos da força de trabalho no país, no final do século XX, recebendo em troca produtos manufaturados, pouco complexos, a preços baixos, e maiores taxas de lucros. Desta forma, as críticas mais incisivas ao modelo chinês começam a aparecer quando este se torna um competidor pelo controle da fronteira tecnológica, representando uma ameaça direta ao poder estadunidense.
A disputa pelo poder na economia mundial
Neste contexto, a onda de protecionismo pode ser analisada por outro prisma. Não se trata apenas de uma competição de mercado entre firmas, sob regras mutuamente válidas, mas sim de uma disputa pelo controle dos eixos que estruturam a economia internacional, como a produção tecnológica e a legitimidade para propor as normas de funcionamento. E tal iniciativa de restrição comercial parte justamente do país que, durante os últimos anos, moldou o sistema internacional de modo a diminuir capacidades estatais para a livre-circulação de bens e capitais, de origem e sob controle americano.
Os EUA deixaram de apoiar o ordenamento mundial criado por eles a partir do momento em que este mesmo sistema deixou de beneficiá-los. É a China que agora apoia a atuação de organizações multilaterais e a retórica do livre-comércio quando lhe convém, pois sua competitividade econômica propicia vantagens a partir destas bases, uma vez que sua opção estratégica nos últimos 30 anos foi de construção de capacidades produtivas, enquanto os EUA optaram por terceirizar a produção e focar na especulação.
Fábrica avançada da Nio em Hefei (Fonte: chinadaily.com.cn)
O controle tecnológico concede a seus detentores, na economia internacional, uma capacidade de poder estrutural, porque opera a transferência de valor dos países que não desenvolvem tecnologia própria para produção (sendo, portanto, dependentes) para aqueles que detêm, por meio de diferenciais nos níveis de produtividade. Este processo enseja uma divisão do trabalho no sistema internacional que determina a especialização produtiva de certas regiões do sistema (periferias) a setores menos tecnológicos, que não agregam ou que agregam pouco valor a seus produtos e, portanto, são incapazes de aumentar as taxas de remuneração dos fatores de produção, trabalho e capital. As regiões que dominam os setores intensivos em tecnologia (centrais), por sua vez, remuneram melhor a força de trabalho, configurando um ciclo mais intensivo da acumulação ampliada do capital.
O contexto atual é de crise do capital em nível internacional, com a constante redução das taxas de lucro, ano após ano. A criação de novos setores, a partir do processo de desenvolvimento tecnológico, é essencial para abrir espaço para novos ciclos de acumulação, e a transição energética é mobilizada como motor dinâmico do crescimento, com carros elétricos sendo uma das principais mercadorias que potencializa este mercado. Ao competir e indicar liderança neste âmbito, a China se insere como centro de um novo ciclo de inovação e acumulação, cujo impacto não se restringe a fatores econômicos, mas também incide sobre toda a estrutura do ordenamento mundial.
O Brasil e a transição
Se esta análise estiver correta, é possível sustentar a hipótese de que estes são sintomas de uma transição na Ordem Mundial, de uma centralidade dos EUA para a China. E esta transição, que não ocorre sem conflitos, é também conformada por disputas sobre as estruturas de funcionamento da economia global, cujas consequências são para todos aqueles que participam dela – o que é o caso do Brasil. Não obstante, há apenas indícios acerca da configuração chinesa desta nova ordem, uma vez que as condições materiais da formação histórica do país diferem da estadunidense, como, por exemplo: o passado recente de exploração colonial, com longo passado civilizacional próprio; a emergência do Estado nacional em um contexto de revolução de orientação socialista; a relação específica entre Estado e mercado; a identidade e a inserção como um país do Sul Global; os projetos de investimento externo e as iniciativas de desenvolvimento, como a Iniciativa Cinturão e Rota da Seda e a Iniciativa de Desenvolvimento Global, dentre outros.
Ainda assim, já há traços das consequências destas alterações para o Brasil, como a recente instalação de uma fábrica da chinesa BYD no país. Coincidentemente, dias depois, o dono da principal empresa americana de carros elétricos, a Tesla, passou a tecer críticas sobre o sistema político brasileiro e suas lideranças. Tais fatos exemplificam que a disputa já está ocorrendo no país e ensejam a necessidade de desenvolvimento de uma estratégia específica de inserção internacional brasileira, levando-se em conta o contexto elencado, de modo a mobilizar as capacidades do país para ganhos efetivos.
(Arquivo) Cerimônia de anúncio da chegada da BYD na Bahia, para produção de carros elétricos. O evento contou com a presença do governador Jerônimo Rodrigues e da vice-presidente global da companhia, Stella Li, em 4 jul. 2023, no Farol da Barra, em Salvador (Crédito: Feijão Almeida/GOVBA/Flickr)
O principal objetivo poderia ser, frente ao exposto, não apenas incentivar, por meio de subsídios, a instalação de parques fabris no país, mas também buscar a indicação de efetiva transferência tecnológica, por exemplo, em contrapartida à atuação no mercado brasileiro. Contudo, políticas que vão de encontro à formação estrutural do mercado mundial demandam a consolidação de blocos de poder no plano doméstico capazes de lidar com os custos da transição no longo prazo. Caso não haja esforço nesse sentido, a principal consequência para o Brasil será a manutenção da posição do país na periferia do capitalismo mundial, com a estrutura produtiva pouco complexa e dependente.
* Ailton Manoel Pereira Junior é bolsista de IC do INCT-INEU, auxiliar de pesquisa do Núcleo de Economia e Política Externa (NEPEX-UFSC), sob supervisão do prof. Dr. Jaime Cesar Coelho (professor Titular do departamento de Economia e Relações Internacionais-UFSC). Contato: ailtonjunior726@gmail.com.
** Revisão e edição finais: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 3 de maio de 2024. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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