O poder crescente do voto latino: análise do panorama eleitoral nos EUA para 2024
Orlando, 4 nov. 2008 (Crédito: Erik HASH Hersman/Flickr)
Por Beatriz Zanin de Moraes, Letícia Escorcio Lopes e Felipe Sodré Fabri, para Latino Observatory* [Republicação]
Conforme o Fórum Econômico Mundial, o ano de 2024 entrará para a história como o maior ano eleitoral: mais de 2 bilhões de eleitores em 50 países irão às urnas. Dentre esse número, nos Estados Unidos, estima-se que 36,2 milhões sejam elegíveis para votar este ano em comparação aos 32,3 milhões em 2020. Isso representa 50% do crescimento total de eleitores elegíveis durante o período, ou seja, todos os anos, cerca de 1,4 milhão de hispânicos nos EUA se tornam elegíveis para votar. Se as previsões se cumprirem, esse será o maior grupo minoritário na história das eleições presidenciais dos EUA.
Certos estados dos EUA respondem por uma parcela maior de residentes latinos, citando-se: 16 milhões na Califórnia, 12 milhões no Texas, 5 milhões na Flórida, 4 milhões em Nova Iorque e 2 milhões em Illinois, além de, em termos percentuais, Novo México (48%), Califórnia (39%), Texas (39%), Arizona (31%) e Nevada (29%).
Proporção de americanos que são hispânicos/latinos em cada condado dos 50 estados, no Distrito de Columbia e em Porto Rico, de acordo com os resultados oficiais do Censo dos Estados Unidos de 2020. Os dados podem ser encontrados aqui (Fonte: Wikimedia/Censo americano de 2020)
O Novo México, estado onde os latinos representam a maior parcela dos eleitores elegíveis (quase 43%), não vota até junho nas primárias eleitorais. Entretanto, todos os estados que estão em seguida na lista de presença latina já estão votando no ciclo eleitoral que se aproxima. Tratando-se de eleitores elegíveis, a proporção é de 30,5% na Califórnia, 30,4% no Texas, 23,6% no Arizona, 20,5% na Flórida, 19,7% em Nevada e 15,9% no Colorado. Ainda, vale citar que os latinos representam quase 12% dos eleitores elegíveis em Illinois, outro estado que votará em breve. Em uma primária democrata, a porcentagem de votos dos latinos na maioria desses estados será provavelmente maior do que sua porcentagem da população elegível geral. Matt Barreto, sócio-gerente e cofundador da Latino Decisions, uma empresa de pesquisas democrata que se concentra nos eleitores latinos, disse que todas as indicações nas pesquisas apontam para uma alta participação dos latinos nas próximas primárias.
Após a votação deste conjunto de estados, os latinos não voltarão a ter peso significativo até as primárias de 24 de abril, quando Rhode Island, Connecticut e Nova Iorque, com populações votantes elegíveis que variam entre 11% e 15%, realizarão suas eleições.
Na maioria dos estados, os delegados são alocados com base nos resultados de cada distrito eleitoral. Embora muitos possam defender que os latinos estão concentrados em algumas grandes cidades, nos três estados supracitados, pelo menos, estão geograficamente dispersos de uma forma que ampliará sua influência. Ao todo, segundo os números do Pew Research Center, os latinos constituem pelo menos 15% da população elegível em 110 dos 154 distritos eleitorais desses sete estados, incluindo 31 dos 36 no Texas.
A partir desses dados, o objetivo deste texto é analisar o panorama eleitoral nos Estados Unidos em 2024, destacando especialmente a importância do voto latino.
As eleições nos EUA: O rematch entre Biden e Trump
Em novembro de 2020, os Estados Unidos testemunharam um duelo histórico entre duas personalidades políticas: o polêmico presidente Donald Trump e o então vice-presidente, Joe Biden. Naquele ano, devido a uma grande mobilização do eleitorado, 66% da população apta a votar foi até as urnas, número mais alto desde 1900, consagrando Biden como o 46º presidente dos Estados Unidos. Contudo, inicialmente, ninguém esperava que esse encontro se repetiria nas eleições de 2024 e que não haveria nenhum outro candidato com força para derrotá-los.
No dia 6 de março, Nikki Haley, a primeira republicana a lançar sua pré-candidatura em 2023, anunciou a suspensão de sua campanha após um desempenho negativo nas primárias de seu partido contra Donald Trump. Do lado democrata, sem muitos adversários contra Biden, Dean Phillips, congressista do estado de Minnesota, também se retirou da disputa, apoiando o presidente para a nomeação. Desta forma, tanto Trump quanto Biden agora são os prováveis nomeados de seus partidos para competir pela Casa Branca, gerando um raro e impopular “rematch” na política americana, com 67% dos eleitores dizendo estarem “cansados” de verem apenas esses dois nomes no cenário político nacional, segundo uma pesquisa da Reuters.
O ex-presidente Trump está enfrentando diversas acusações judiciais, que vão desde sua suposta interferência nas eleições americanas durante o período que ele e seu time de advogados tentarem reverter diversos resultados eleitorais em 2020, até o caso da retenção de documentos confidenciais em sua casa na Flórida, esses que deveriam ter sido devolvidos às instâncias devidas do governo. Além disso, como foi visto nas primárias, Nikki Haley obteve uma votação superior a 20% na maioria dos estados que participaram das primárias republicanas, algo que ameaça a retórica de dominância exclusiva de Trump sob o partido, mas, ainda assim, garante uma enorme influência.
A ex-pré-candidata republicana Nikki Haley, durante debate presidencial da rede CNN com seus oponentes, no Auditório Sheslow, na Universidade Drake, em Des Moines, Iowa (Crédito: Gage Skidmore/Flickr)
A campanha do ex-presidente está atingindo grandes níveis de aderência popular com retóricas extremistas, citando como exemplo sua declaração feita em dezembro do ano passado, na qual ele diz que “os imigrantes estão envenenando osangue de nosso país”. De fato, mesmo liderando as pesquisas e tendo conquistado uma vitória recente na suprema corte, em que foi decidido que o ex-presidente pode concorrer nas eleições e frustrando o estado do Colorado, Trump pode testemunhar um nível de rejeição semelhante ao que aconteceu em 2020, pois muitos outros processos em que ele está envolvido ainda não foram julgados, o que pode dificultar seu retorno à Casa Branca. Todavia, o caminho para Biden não está mais tranquilo do que o de seu futuro oponente.
Com 81 anos, Biden é a pessoa com maior idade a ocupar a Casa Branca, um fator que preocupa eleitores sobre sua capacidade de continuar à frente da liderança americana, apesar de seu oponente, Donald Trump, ser apenas quatro anos mais novo. Ao longo de seu mandato, crises internas e externas marcaram sua gestão, como a saída do Afeganistão em 2021, as alterações profundas em seus pacotes de recuperação econômica e, a que gera mais fervor entre seus oponentes republicanos, a crise na fronteira com o México.
Há um tempo que esse tema vem despertando críticas entre os republicanos, que acusam o presidente de não saber lidar com o suposto caos que ocorre na fronteira. Apenas em 2023, cerca de 472 mil pessoas foram capturadas pela Proteção da Fronteira dos EUA, um número recorde. Ademais, os republicanos têm uma estratégia que se baseia em expandir a retórica sobre um possível caos e violência que teriam se instaurado nas fronteiras para outras localidades do país, como as grandes cidades, a maioria governada por democratas. Nova York, por exemplo, está passando por um momento histórico, em que a cidade já não consegue comportar o número excessivo de imigrantes que chegam, sobrecarregando os serviços públicos. Como consequência, até mesmo democratas criticam Biden, fazendo-o tomar ações tidas como controversas dentro de sua base, como manter a construção do muro de Trump.
Ou seja, mesmo sendo a provável nomeação de seu partido, o atual presidente terá certa dificuldade na corrida se comparado com 2020, quando Trump estava mergulhado em problemas internos. Contudo, o bilionário também não terá um caminho muito tranquilo na disputa, situação que pode gerar um cenário imprevisível para novembro.
A categoria “latino” na análise das corridas eleitorais estadunidenses
Como se encontra o coração político latino depois de Trump e de suas medidas anti-imigratórias? Além disso, qual é a atual resposta à atuação do presidente Biden, que, em suas campanhas, construiu a imagem de um personagem paladino que mudaria o cenário? Qual é a opinião da população latina e quais são as expectativas para esse ano de eleição? São essas algumas das perguntas que vêm a foco quando se pensa sobre os desafios eleitorais enfrentados pelos Estados Unidos em 2024.
É preciso, antes de tudo, entender em que consiste esse grupo e sua diversidade, uma vez que são 32 milhões de latinos com direito ao voto. A cada cinco nativos americanos habilitados ao voto, um é latino, afirma o diretor de pesquisa sobre raça e etnia do Pew Research Center. As comunidades hispânicas são, em sua maioria, componentes da classe trabalhadora, o que faz com que suas principais preocupações sejam a economia, a educação e a saúde, e que, dessa forma, a busca seja pelo discurso que traga confiança e segurança nesses âmbitos.
Historicamente, o eleitorado latino aderiu à vertente democrática desde os anos 1930, quando a Grande Depressão assolou o território norte-americano; isso em consequência, principalmente, das medidas tomadas por Franklin Delano Roosevelt com o New Deal, que visaram ao combate ao desemprego e à pobreza naquele período, beneficiando a comunidade trabalhadora hispânica. Além disso, é interessante citar que o Partido Republicano era apoiado por grandes empresários, distinguindo-se da realidade de grande parte dos imigrantes latinos nos Estados Unidos.
A categoria “latino” é uma categoria incômoda, complexa, pois é diversa em muitos aspectos. Ela nasceu nos anos 1960, para fins analíticos, quando hispânicos reivindicavam pertencimento nos censos em busca de abrangência no acesso à assistência pública básica. “Os demógrafos sabiam que precisavam de uma categoria ampla o suficiente para ter poder estatístico. […] Algumas pessoas propuseram ser catalogadas como pardas, mas isso era complicado porque aí também podiam caber filipinos ou pessoas do Sudeste Asiático”, observou Cristina Mora, socióloga da Universidade da Califórnia em Berkeley. É preciso destacar, assim, como o compromisso político existente na categorização de diferentes comunidades como “hispânicos” ou “latinos” não foi suficiente para viabilizar a identificação e a representação assídua de grupos tão heterogêneos.
Utilizando-se do termo “eleitorado latino” como principal instrumento de abordagem escrita da comunidade imigrante da América Latina e de suas manifestações, é possível falar sobre um cenário que chama a atenção: a gradual transição do eleitorado hispânico para o voto republicano. A contribuição eleitoral das comunidades latinas é decisiva para o futuro dos Estados Unidos e, com tal movimentação observada, esse futuro pode ser escrito de forma diferente do esperado. De modo a entender a tendência de crescimento no número de imigrantes apoiadores do ex-presidente Donald Trump, a emissora Deutsche Welle (DW) realizou entrevistas com três cidadãos dos Estados Unidos que seguirão o lado republicano nessas eleições, sendo um deles de origem hispânica. Jesus Marquez, filho de imigrantes, foi um dos nomeados membros do Conselho Consultivo para Latinos da campanha de Trump e contou sobre suas motivações para adotar o lado dos Republicanos em 2024 – motivações essas que se mostram comuns entre muitos outros latinos nos Estados Unidos. Além de suas preocupações primárias quanto à economia, à educação e à saúde, Marquez fala sobre a situação na fronteira, com argumentos diferentes dos esperados, por serem contra a entrada de imigrantes.
(Arquivo) O então presidente Donald Trump é recebido pelo presidente da Latino Coalition, Hector Barreto, antes de discursar na Cúpula Legislativa da Latino Coalition, em 4 mar. 2020, no JW Marriott, em Washington, D.C. (Crédito: Casa Branca/Tia Dufour)
Na verdade, muitos latinos hoje cidadãos, apresentam descontentamento quanto às atuais políticas públicas na fronteira, no sentido de permissão à entrada de novos imigrantes – isso porque as atuais medidas estariam possibilitando a esses novos imigrantes o acesso a serviços sociais que outros hispânicos, já habitantes do território e que não se encontram em emergência semelhante, não possuem.
Além disso, um argumento recorrente para a justificativa de voto no presidente Donald Trump nas próximas eleições é a defesa de seu caráter implacável como sinônimo de “necessidade”, para que “se tome de volta as rédeas do país”. Enquanto o lado dos democratas age de forma inclusiva e cuidadosa, visando ao “politicamente correto”, a essência direta de “fazer acontecer” que tem sido propagada pelos republicanos tem se sobressaído, principalmente, em meio a comunidades minoritárias e/ou fragilizadas – como muitos imigrantes –, cuja preocupação é a de ter pão sobre a mesa ao fim do dia. Em outras palavras, é possível levar em conta que o avanço republicano é uma realidade em consequência à forma como o Partido Democrata lidou com o eleitorado hispânico, como se a identidade racial fosse a única coisa que levasse um eleitor a votar, assim desconsiderando a urgência da classe trabalhadora latina pela reabertura da economia – enquanto, do outro lado, Trump utilizou-se do contato direto com latinos e suas expectativas para entender de que modo poderia alinhar suas intenções.
Outro fator, não menos importante, que soma ao crescimento dos imigrantes adeptos ao discurso republicano é o cultivo da “ameaça comunista”. Em entrevista ao jornal The Washington Post, Debbie Mucarsel-Powell, democrata imigrante e primeira atuante sul-americana no Congresso estadunidense, mencionou: “Alguns membros do meu partido começaram a culpar o medo dos latinos do socialismo como a causa das perdas democratas. Sim, o medo do socialismo é real e enraizado para aqueles de nós que fugiram da violência e da perseguição. Conheço em primeira mão o impacto terrível que tais memórias podem ter sobre imigrantes como eu. Meu próprio pai foi assassinado por um criminoso armado no Equador”.
A retórica, no entanto, sobre os perigos do socialismo, enquanto forjada no meio de contextos em que a utilização do termo se torna vantajoso no sentido de disputas eleitorais não é novidade, e é preciso cautela na identificação dos principais motivos que correspondem à migração de populações latino-americanas ao país – além de que, em qual medida, os Estados Unidos e as elites mundiais têm refletido nesses casos.
Segundo uma tabela de análise elaborada a partir da observação das possibilidades de voto nas próximas eleições dos Estados Unidos por parte do jornal The New York Times em conjunto com a Sienna College, foi observada uma estatística que pareceria contradizer as pretensões, se voltássemos ao cenário das últimas eleições que elegeram o atual presidente: foi constatado que é de 46% o número de hispânicos que apresentaram apoio ao ex-presidente Donald Trump, enquanto o suporte à reeleição de Joe Biden foi de apenas 40% entre os latinos – o que indica que Trump tem feito avanços notáveis quanto à aproximação de eleitores de descendência latina. Esses números não espelham, porém, a mudança das abordagens ideológicas dentro do Partido Republicano. Na verdade, é justamente a justificativa de “punho firme” de Trump que se mostra como motivação por trás da mudança de cenário ao longo dos últimos quatro anos. Segundo The New York Times, “As sondagens têm mostrado repetidamente que esses eleitores dizem que se sentem atraídos pelas posições de Trump sobre a economia e a fronteira. Muitos eleitores latinos também apontaram a personalidade de Trump como uma parte fundamental do seu apelo” (tradução livre).
Para entender como isso aconteceu, é preciso analisar, dentre outros fatores, quais têm sido os mecanismos utilizados, em especial, pelo Partido Republicano, no sentido de captura de eleitores, com foco, principalmente, no que está por trás da mudança do cenário político observada. No sentido de apelo feito pelos republicanos, a atuação da “Libre Initiative”: uma organização sem fins lucrativos que, financiada pelos Irmãos Koch, dedica-se à ampliação do alcance da voz da comunidade hispânica nos Estados Unidos, por meio do senso de criação e desenvolvimento de oportunidades. É possível, também, observar uma similaridade na fala de Donald Trump para se aproximar do eleitorado latino, ao se comparar os argumentos utilizados nas eleições de 2016 e de 2020, bem como às que se aproximam, este ano.
Membros da Libre Initiative que votarão em Trump (Fonte: site institucional)
Em 2016, o apoio de latino-americanos ao ex-presidente foi de menos de 30%, enquanto em 2020, este número aumentou para um terço. Em maio de 2023, a divisão de intenções de voto foi quase que igualmente dividida entre Trump e Biden acerca das eleições de 2024, segundo um estudo da Universidade Quinnipiac. Foi visível, assim, o crescimento no suporte de indivíduos da comunidade hispânica aos ideais propagados pelo Partido Republicano. Algo recorrente nos discursos do ex-presidente em questão é a utilização de fatores religiosos e culturais com base nas diferenças geográficas e demográficas dentro dos Estados Unidos, utilizando-se de mensagens dirigidas a cidadãos com laços cubanos, venezuelanos e na América Central. À guisa de exemplo, Donald Trump classificou, repetidamente, o atual presidente e suas medidas partidárias como “comunistas”, provocando associações negativas de eleitores com os governos dos quais fugiram.
Segundo Eduardo A. Gamarra (nascido na Bolívia, professor de política e relações internacionais na Universidade Internacional da Flórida), apesar de deturpado, é perfeitamente estratégico o discurso de Trump: “Isso é reforçado pela mídia local, por muito do que a campanha de Trump e outros republicanos estão dizendo: que esta administração, a administração Biden, está se comportando como as repúblicas das bananas se comportam, então isso ressoou muito intensamente aqui. […] É uma ótima política, mas não é verdade” (tradução livre).
De um lado, Donald Trump, e do outro, Joe Biden. Pela primeira vez em muito tempo, as expectativas foram desalinhadas e se mostra difícil prever o que o futuro guarda aos Estados Unidos da América. Desta vez, será preciso esperar para ver.
1 Recomendamos matéria do jornal El País, que identifica, por meios conceituais e gráficos, a raiz da complexidade social, identitária e política das comunidades latinas nos Estados Unidos, no que se refere à forma como se manifestam nas esferas político e eleitoral.
* Beatriz Zanin de Moraes, Letícia Escorcio Lopes e Felipe Sodré Fabri são bolsistas de Iniciação Científica (PIBIC) no Latino Observatory, sob coordenação e orientação de Marcos Cordeiro Pires e Thaís Lacerda. Contatos: beatrizzm2@gmail.com, leticiaescorcio@gmail.com e felipe.sodre@unesp.br.
** Publicado originalmente no site Latino Observatory, em 17 abr. 2024. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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