O conflito ucraniano, as sanções contra a Rússia e os caminhos tortos das “astúcias da natureza”
Crédito: Netivist.org
Por Leonardo Ramos, Javier Vadell e Caio Gontijo [Informe OPEU]
As guerras, de modo geral, sempre estiveram intimamente ligadas a crises econômicas. O atual conflito na Ucrânia não é exceção. Este conflito, somado a outros fatores econômicos críticos, como volatilidade nos mercados financeiros, inflação, redução de incentivos fiscais, crise do multilateralismo, incertezas sobre a economia chinesa, pandemia da covid-19 etc., vem acelerando significativamente as tendências de mudanças na ordem global.
As origens complexas e as dinâmicas do atual conflito ucraniano remetem às relações históricas entre Rússia e Ucrânia, bem como aos interesses ocidentais na região, sobretudo dos EUA, por meio da expansão da OTAN. No entanto, em especial, concentremo-nos nas sanções econômicas impostas pelos países ocidentais à Rússia, principalmente após 22 de fevereiro de 2022, como particularmente determinantes para essa aceleração. Embora oficialmente justificadas para enfraquecer a economia russa e minar o apoio político a Putin, elas também visam a unificar o Ocidente sob a liderança dos EUA, como declarado pelo presidente Joe Biden. Tais ações parecem acabar, contudo, por catalisar o oposto do pretendido, levando a mudanças imprevistas na balança de poder global.
Alguns aspectos da situação atual: as astúcias da natureza
É necessário conceber o futuro da ordem global a partir das possibilidades concretas do presente. Mas o processo histórico real não é resultado deste “conceber”, que apenas converte a natureza em história à medida que a conhece. É a própria natureza do mundo que, em sua realidade mutável, faz história em seu devir.
Antonio Gramsci, em seus Cadernos do Cárcere, percebe que esse movimento histórico real não é retilíneo, mas contraditório, e frequentemente apresenta suas armadilhas, às quais se refere como “astúcias da natureza”. Assim como no famoso parágrafo de Marx no 18 de Brumário de Luís Bonaparte: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como bem entendem; eles não a fazem sob circunstâncias de sua escolha”, Gramsci também nota que os agentes políticos, em seu papel ativo, também acabam por “obedecer” aos imperativos da história real, ou seja, veem sua prática constantemente malograda, resultando no contrário do desejado, restando apenas obedecer a essas astúcias, quando se apresentam.
Que astúcia, em especial, parece figurar hoje como possibilidade concreta, operando no processo histórico real, na totalidade da formação econômico-social dominante? É sabido que a hegemonia dos EUA possui ferramentas financeiras e monetárias cruciais que se baseiam no monopólio do uso do dólar americano para fins de comércio internacional, reservas internacionais, transações financeiras internacionais, e assim por diante. Esses mecanismos são complexos, mas dois deles são essenciais globalmente: o uso da rede SWIFT (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication) e o uso do CHIPS (Consolidated Highly Integrated Processor). Ambos os mecanismos operam de maneira monopolista e são instrumentos cruciais para a hegemonia dos EUA na economia global.
Esse monopólio concede aos EUA, emissores do dólar, o que o ex-presidente e ministro das Finanças da França Giscard d’Estaing descreveu como um “privilégio exorbitante”. Desde a crise financeira de 2007-2008, a crise do capitalismo hegemonizado pela finança, muitos autores recordam o famoso crepúsculo gramsciano, no qual “o velho está morrendo, mas o novo ainda não pode nascer”. Isso significa que a ordem global persistia sem a possibilidade concreta de superá-la. Persistiam os mesmos mecanismos de transações, o dólar americano e as instituições minilaterais, como OTAN e G7, que às vezes atuam como mecanismos unilaterais — ou apêndices do poder e dos interesses dos EUA.
Até agora, nenhuma alternativa a essas instituições pôde se desenvolver suficientemente. Pelo menos, não tão rápido quanto a resposta exigida pelas sanções atuais aos atores envolvidos. Essa resposta, agora como possibilidade concreta, apresenta necessariamente sérias implicações para a manutenção da atual ordem global e hegemonia financeira dos EUA.
A economia política das atuais sanções econômicas
Em 21 de fevereiro de 2022, a Rússia reconheceu Donetsk e Luhansk como regiões independentes e ordenou tropas para proteger a região como um todo. No dia seguinte, de maneira sem precedentes na história da ordem econômica internacional, os países do G7 e da União Europeia, liderados pelos EUA, impuseram uma série de sanções financeiras contra a Rússia. As sanções incluíram o bloqueio de bancos russos no sistema interbancário SWIFT e o bloqueio de cerca de metade das reservas do Banco Central da Rússia, totalizando US$ 630 bilhões em moedas internacionais e ouro. Além disso, os EUA impuseram sanções ao fundo soberano da Rússia (Fundo de Investimento Direto Russo) e a indivíduos e entidades russas específicas.
As consequências econômicas das sanções não tiveram, contudo, os impactos desejados nas avaliações de aprovação da administração Putin, que permaneceram consistentemente altas. Estas foram mitigadas pela dependência contínua da União Europeia do petróleo e gás russos, e pela crescente aproximação entre Rússia e China.
Sanções à Rússia de Putin tiveram efeito aquém do esperado (Crédito da imagem: Tikhonova Yana/Shutterstock)
A China, por sua vez, em uma tentativa de se afastar da hegemonia financeira/CHIPS dos EUA, já havia começado a desenvolver o seu próprio sistema de pagamento interbancário: o CIPS (Sistema de Pagamento Internacional), que vinha aos poucos se expandindo. Segundo o jornal estatal chinês JiefangDaily, em 2021 houve um aumento de 75% nas operações em comparação com 2020, com cerca de 80 trilhões de yuan (US$ 12,68 trilhões) em transações envolvendo instituições financeiras de 103 países. As transações diárias através do CIPS giram em torno de US$ 50 bilhões, enquanto, via SWIFT, representam um valor aproximado de US$ 400 bilhões.
Embora a curto prazo o CIPS não resulte em uma substituição imediata do sistema ocidental, pode tornar-se, a médio prazo, e em combinação com o yuan digital (embora já figure como tal para as operações bancárias russas). Neste cenário, a tendência para uma aproximação e interdependência econômica entre os dois países é uma realidade concreta, acelerando processos de cooperação como a intensificação das relações comerciais e investimentos nos últimos anos (desde 2014, com a anexação da Crimeia, o comércio bilateral cresceu mais de 50%, com a China se tornando o destino mais importante das exportações russas) — e o mesmo vale para o acordo de swap multibilionário entre seus bancos centrais.
A combinação entre as sanções e a adesão das instituições financeiras da Rússia ao sistema de pagamento internacional da China contribuirá para o fortalecimento do CIPS e para uma ainda maior aproximação entre as duas potências. Isto significa que pode colocar em risco o futuro do dólar americano como reserva de moeda desses países a curto prazo, e envolvendo outros atores a médio e longo prazos. Destacadamente, Arábia Saudita, Índia e Irã têm intensificado a diversificação de suas reservas para moedas além do dólar.
Observações finais – ou (re)apresentando o enigma
Os acontecimentos relacionados à guerra na Ucrânia e as consequentes sanções financeiras representam um desafio analítico que exige um exame crítico do processo histórico em curso. Embora não indiquem transformações ou rupturas no curto prazo, essas mudanças e dinâmicas têm acelerado um processo de mudança qualitativa, iniciando uma definitiva reconfiguração global política e econômica.
A hegemonia dos EUA, especialmente no âmbito financeiro, não desaparecerá em breve como resultado direto deste ou de outro movimento conjuntural. No entanto, a guerra na Ucrânia e as sanções à Rússia têm se mostrado uma fundamental “astúcia” para uma mudança estrutural profunda da ordem global. A saber, promovendo China e Rússia a protagonistas geoeconômicos. Apesar das intenções claras dos EUA e de seus aliados de isolar a Rússia economicamente para se manterem líderes da ordem global, as consequências de suas ações estão levando a resultados adversos.
(Arquivo) Putin recebe o presidente Xi no Kremlin, em Moscou, durante visita de Estado em 22 mar. 2013 (Crédito: Flickr)
Observemos que, sempre que essas astúcias da natureza estão em jogo, nos deparamos com eventos que se apresentam e são imediatamente percebidos como acidentais ou circunstanciais em significado. Assim são tratados pelas agentes políticos em liderança, como se fossem conjunturais, embora, na realidade, sejam determinantes para o processo histórico unitário do qual o mundo faz parte.
Uma profunda reestruturação da ordem mundial, ainda que inevitável, parece não se sentir imediatamente. Atualmente, a política global se assemelha a um estado de fluxo caracterizado pelo que poderia ser chamado de “caos sistêmico”. Após mais de dois anos de guerra e sanções ocidentais, contra a Rússia, cujo objetivo é “unificar os países ocidentais”, como Joe Biden afirmou, propondo uma era de liderança renovada dos EUA, estão cada vez mais catalisando a tendência oposta. Ao criar um ambiente de Guerra Fria, visando a disciplinar os países capitalistas, o que vem se efetivando concretamente na história é a crise de legitimidade do próprio Biden (e o fortalecimento de Trump, o que também conta com fatores políticos domésticos), a fratura e a aceleração do bloco ocidental e a transferência de poder para o eixo euro-asiático, bem como uma nova globalização embrionária com características chinesas.
* Leonardo Ramos é professor do Departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e pesquisador do INCT-INEU. Contato: lcsramos@pucminas.br, X: @lcsramos79.
Javier Vadell é professor do Departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Contato: javier.vadell@pucminas.br, X: @Vadell_Javier.
Caio Gontijo é doutorando e professor da School of Humanities and Social Inquiry da University of Wollongong. Contato: cvgontijo@uow.edu.au, X: @caio_gontijo.
** A versão integral deste texto foi publicada como o artigo “Ruses of Nature: How Defending Ukraine Might Hasten the Decline of us Hegemony”, na revista Desafíos, 35 (Especial), pp. 1-27, 2023.
*** Revisão e edição finais: Tatiana Teixeira. Recebido em 15 abril 2024. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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