Resenha de ‘Fanatismo e movimento de massas’, de Eric Hoffer
Comício MAGA em maio de 2018 (Crédito: Tabitha Kaylee Hawk/Flickr)
Percepções de 1951 sobre o Fascínio Emocional da Extrema Devoção a um Movimento de Massa
Por Wayne A. Selcher, PhD* [Resenha de Livro] [Tradução]
“A capacidade do crente convicto de ‘fechar os olhos e tapar os ouvidos aos fatos que não merecem ser vistos ou ouvidos é a fonte de sua inigualável fortaleza e constância. Ele não pode ser assustado pelo perigo nem desencorajado pelo obstáculo ou perturbado por contradições, porque nega sua existência. A força da fé, salienta Bergson, manifesta-se não em mover montanhas mas em não ver as montanhas a serem movidas. A certeza de sua infalível doutrina é que torna o crente convicto impermeável às incertezas, surpresas e desagradáveis realidades do mundo à sua volta.” – Eric Hoffer em Fanatismo e Movimento das Massas
“Onde todos pensam do mesmo jeito, ninguém pensa muito.” – Walter Lippman, jornalista americano do meio do século XX.
Após a Segunda Guerra Mundial, houve tentativas entre os pensadores sociais do mundo ocidental de discernir como e por que a nação alemã, culturalmente avançada, fora vítima dos males do nazismo, e quais semelhanças sociopsicológicas existiam na União Soviética totalitária de Stalin sob o comunismo. Esta pesquisa levou, na maioria dos casos, ao estudo e à explicação dos movimentos de massa, incluindo seus efeitos sobre indivíduos e grupos sociais. Uma das obras mais famosas derivada dessa linha inicial de investigação foi o livro As Origens do Totalitarismo (1951), de Hannah Arendt. No mesmo ano, Eric Hoffer publicou Fanatismo e Movimento das Massas (The True Believer, no original) que também analisou a atração de crenças extremistas, de qualquer variedade, que assumissem a natureza de um movimento de massas e atraíssem seguidores fanáticos.
Os dois livros clássicos dos autores supracitados passaram por muitas edições e ainda são disponibilizados para compra online ou física. O volume original de Hoffer, de 1951, está disponível gratuitamente, em inglês, no Internet Archive, e suas opiniões têm sido objeto de muitos comentários. As pesquisas relevantes sobre a atração dos movimentos de massa e seu crescimento, além do fanatismo, desde o início da década de 1950, assumiram uma direção de incorporar algumas das observações de Hoffer, implícita ou explicitamente. Hoffer examinou as ameaças ao pensamento crítico e independente, à democracia e ao bem-estar humano que podem surgir da devoção fanática e, às vezes, mística dos indivíduos a uma figura demagógica e carismática. Essa figura é o líder de um movimento de massas, ao qual os indivíduos se juntam com entusiasmo, incluindo seu próprio ser, à autoidentificação absoluta com o suposto “salvador”, que é, na verdade, um estranho distante para eles e distante de sua vida cotidiana. Hoffer argumentou, ainda, que essa submersão deliberada do eu entediado ou frustrado no significado e simbolismo de um movimento maior, em total compromisso com a causa maior, é a própria essência, atração e excitação dos movimentos de massa para seus “verdadeiros crentes”, que ganham um senso maior de pertencimento, entusiasmo e propósito. A pressão para se conformar se torna muito forte, o fanatismo pode ser encorajado e os dissidentes (“hereges”) são desprezados e rejeitados pelos puristas como uma ameaça à nobre causa.
Eric Hoffer (1902-1983) não foi um acadêmico, cientista social ou estudioso formal, mas um trabalhador autodidata, um estivador de pensamento independente, o que torna ainda mais notável o discernimento e a grande aclamação pública de suas observações em várias obras publicadas. Seu estilo de “filosofia de estivador” consistia em comentários incisivos, uma série de observações e percepções valiosas, em detrimento de uma ciência social teórica ou filosofia abstrata, com argumentação lógica e prolongada, presa a conceitos intelectuais. Assim, suas obras (incluindo muitos livros) são mais facilmente apreendidas por um público mais amplo, como era sua intenção e, a despeito disso, seu trabalho recebeu uma série de prêmios e aclamação intelectual. Por um tempo, na década de 1960, ele foi professor visitante na Universidade de Berkeley, onde foi repelido pela violência do movimento estudantil que começou lá. O presidente Dwight Eisenhower recomendou seu livro, Fanatismo e Movimento das Massas, a amigos e citou-o em uma coletiva de imprensa no início da década de 1950. Hoffer foi, ainda, homenageado pelo presidente Ronald Reagan com a Medalha Presidencial da Liberdade em fevereiro de 1983, vários meses antes de sua morte.
Eric Hoffer (Fonte: VoegelinView)
Por um lado, as percepções céticas de Hoffer são relevantes para uma ampla variedade de movimentos de massa altamente emocionais em todo o mundo atual, entre políticos e religiosos, incluindo, até mesmo, a devoção extrema de milhões de fãs à cantora Taylor Swift e as absurdas teorias da conspiração conservadoras americanas sobre ela em 2024. Por outro, alguns podem achar que algumas das observações de Hoffer sobre certos aspectos da sociedade de 1951 estão fora de sintonia com as crenças e costumes da sociedade americana na década de 2020.
Vários exemplos das muitas observações de Hoffer de Fanatismo e Movimento das Massas podem servir para tornar claros os contornos da sua perspectiva e identificar características sociopsicológicas salientes de movimentos de massa atuais ou mais recentes:
- Os movimentos de massa têm seus intelectuais, muitas vezes como fundadores, mas o exibicionismo de um líder extravagante e carismático, mais do que uma ideologia elaborada, é crucial para o fervor de muitos verdadeiros movimentos de massa, no que diz respeito à massa de seguidores – “A qualidade das ideias parece desempenhar um papel secundário na liderança dos movimentos de massa. O que conta é o gesto arrogante, a completa indiferença pela opinião dos outros, o desafio solitário ao mundo” ( p. 112).
- A necessidade de ficar intransigentemente zangado e ser presunçosamente contra algo visto como mau, tanto quanto por algo, é crucial – “O ódio é o mais acessível e amplo agente de união. Os movimentos de massa podem surgir e difundir-se sem a crença em Deus, mas nunca sem a crença no diabo. Geralmente a força do movimento de massa é proporcional à vividez e tangibilidade de seu diabo” (p. 90).
- Os movimentos de massa atraem facilmente atores socialmente isolados e talvez violentos – “Os desajustados permanentes só podem achar a salvação numa separação completa do ego; e geralmente acham-na perdendo-se na compacta coletividade de um movimento de massas” (p. 48).
- Um movimento de massas requer indignação e repúdio intransigente às circunstâncias sociopolíticas “corruptas”, atualmente dominantes, além de visão de mundo para uma contraperspectiva alternativa, “politicamente correta”, pertencentes aos verdadeiros crentes para agir pela fé para promover uma nova ordem – “É espantoso verificar quanta descrença é necessária para tornar a crença possível” (p. 80).
- Servir a um “propósito maior” de forma “abnegada”, cego para dúvidas e ironias, pode levar a certezas orgulhosas e consequentes vaidade e presunção – “Não há dúvida que trocando uma vida autocentralizada por uma vida altruística ganhamos enormemente na nossa autoestima. A vaidade dos altruístas é ilimitada mesmo naqueles que praticam o altruísmo com extrema humildade” (p. 17).
As linhas gerais das explicações de Hoffer sobre a dinâmica de um movimento de massas em Fanatismo e Movimento das Massas, como um todo, são bastante úteis para entender o funcionamento da relação semi-carismática líder-seguidor de Donald Trump em Make America Great Again (MAGA), que agora domina o Partido Republicano. (Não incluo nesta categoria os apoiadores mais casuais de Trump, nem aqueles que têm uma lealdade contínua ao próprio Partido Republicano, em vez de devoção altamente personalista e intensa a Trump.) As ideias de Hoffer também lançam luz sobre o apoio sólido de conservadores religiosos (especialmente evangélicos) de que o MAGA desfruta, de um grupo baseado na fé. Trump nomeou o MAGA em junho de 2022 e, em outras ocasiões, em seu típico modo autoengrandecedor, de “o maior movimento político de todos os tempos”.
Trump e seu característico boné MAGA (Foto: Gage Skidmore/flickr/cc)
Alexander Hinton, antropólogo especialista em paz e conflito, que participou da Conferência Anual de Ação Política Conservadora (CPAC), em fevereiro de 2024, observou que “o amor da CPAC por Trump é chocante para muitos na esquerda. Mas, na CPAC, Trump é visto como o salvador [ênfase adicionada] da América... Em última instância, os conservadores da CPAC acreditam em que Trump é sua melhor aposta para derrotar os ‘profanadores’ de esquerda radical que buscam frustrá-lo a todo momento – incluindo, como reclamavam constantemente na CPAC, proibições de redes sociais, derrubadas de ‘fake news’, votação fraudada, processos judiciais falsos, justiça injusta e mentiras sobre o que chamam de ‘protesto’ de 6 de janeiro de 2021”.
Manter a fé absoluta no líder e uma identificação pessoal com ele como um “lutador” é crucial para os adeptos mais entusiasmados do MAGA, de modo que qualquer dúvida ou informação contrária é explicada ou descartada como propaganda ou desinformação “inimiga”. Em comícios, Trump costuma defender a identidade dos seguidores que estão juntos a ele, para se posicionar contra as várias acusações que enfrenta: “No final, eles não estão vindo atrás de mim. Eles estão vindo atrás de você – e eu estou apenas atrapalhando o caminho deles”. O zelo em nome da causa pode se sobrepor ao respeito às normas democráticas estabelecidas, como o Estado de Direito, e incentivar a violência na busca do “propósito maior”, como mostram repetidas pesquisas nos Estados Unidos. Os movimentos de massa podem se deteriorar em raiva, ódio, queixas, teorias da conspiração, absolutismo, demonização de oponentes, irracionalidade e sonhos de um líder autoritário que defenderá “seu lado” e esmagará seus “inimigos”. Eles mobilizam milhões de eleitores que detestam a “política tal como ela é”, mas sua dinâmica, a demanda por mudanças radicais, a urgência e a forte sensação de ameaça e frustração injusta podem facilmente desestabilizar uma sociedade e gerar contrarreação, representando assim um sério desafio às instituições democráticas.
O livro de Hoffer nos lembra que a democracia baseada na razão não é a maneira padrão de governar na história da humanidade; autoritarismo e autocracia são. Vladimir Putin, admirado por muitos conservadores americanos, incluindo Trump, está mais próximo da “norma” na ampla extensão da história humana do que Joe Biden. O “Arco (Moral) da História”, o conceito liberal de que os direitos humanos, a razão e a democracia inevitavelmente prevalecerão à medida que a humanidade “progride”, é um pensamento etnocêntrico.
* Wayne A. Selcher, Ph.D. é Professor Emérito de Estudos Internacionais, no Departamento de Ciência Política, Elizabethtown College, na Pensilvânia (PA), EUA. Seus principais interesses acadêmicos são Política Comparada, Sociedade e Política Americana em perspectiva comparada, Política Externa dos Estados Unidos, Política e Política Externa Latino-Americana (especialmente Brasil) e Uso da Internet em estudos internacionais de ensino e pesquisa. Ele é o criador e editor da WWW Virtual Library: International Affairs Resources, um guia web para pesquisa de estudos internacionais on-line em muitos tópicos. E-mail: wayneselcher@comcast.net.
** A resenha original, em inglês, foi publicada no OPEU, em 11 mar. 2023. Tradução por Andressa Mendes, pesquisadora colaboradora do INCT-INEU/OPEU e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP). Contato: glm.andressa@gmail.com.
Revisão e edição finais: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 13 mar. 2024. Esta Resenha OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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