Henry Kissinger: uma personalidade investigada
Henry Kissinger (Crédito: Brandon/darthdowney/Flickr/CC BY-NC 2.0)
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Por Vitória Martins Queiroz* [Panorama EUA]
Na nona estrofe do poema “Falação” do livro Pau-Brasil, publicado em 1924 por Oswald de Andrade e considerado uma das mais importantes obras literárias do modernismo brasileiro, o autor associa “a poesia para os poetas” como uma “alegria da ignorância que descobre”. Ao longo da obra, no poema “3 de maio”, Andrade reafirma essa concepção ao contar ao leitor que seu filho de 10 anos lhe ensinara que a poesia é a descoberta das coisas que ele nunca viu.
Investigar a personalidade de qualquer figura histórica se assemelha ao processo descrito pelo poeta. No entanto, a pesquisa e o método científico não permitem que o pesquisador ignorante alcance a alegria da descoberta em sua totalidade. Analisar a História requer a aceitação de que um mesmo tema será exaustivamente redescoberto e reinterpretado, à medida que novas informações sobre ele são conhecidas.
Henry Kissinger (1923-2023) é uma dessas personalidades que são constantemente revisadas, sobretudo, pela disputa narrativa que paira sobre ele.
(Arquivo) Henry Kissinger em evento promovido pela Escola Gerald R. Ford de Políticas Públicas da Universidade de Michigan, em 19 jun. 2013 (Crédito: Flickr institucional)
Teórico e ideólogo americano, Kissinger ganhou destaque internacional após sua atuação como conselheiro de Segurança Nacional e secretário de Estado, bem como por seus serviços diplomáticos durante os governos de Richard Nixon (1969-1974) e de Gerald Ford (1974-1977). Antes da carreira pública, já era reconhecido por sua vasta pesquisa e produção teórica enquanto acadêmico e professor da Universidade de Harvard, voltadas para a política externa dos Estados Unidos.
O centésimo aniversário de Kissinger, em 27 de maio de 2023, foi noticiado como um marco para a política externa estadunidense. E, seu falecimento, em 29 de novembro do mesmo ano, tornou-se alvo da atenção dos entusiastas e dos críticos de seu trabalho.
Este Panorama EUA se propõe a investigar as muitas faces dessa polêmica personalidade. Com esse intuito, o texto foi separado em três partes, cada uma delas prenunciada por um enxerto da poesia modernista de Andrade.
Parte I – A carreira
Século vinte.
Um estouro nos aprendimentos.
… Os homens que sabiam tudo se deformaram
como babéis de borracha.
Rebentaram de enciclopedismo.
De Oswald de Andrade, VIII estrofe de “Falação”,
poema da obra Pau-Brasil, de 1924
O teórico e ideólogo
Durante sua estada como professor de Harvard e diretor do Programa de Estudo de Defesa desta Universidade (1958-1969), Henry Kissinger já era contratado para a função de consultor sobre assuntos do Conselho de Segurança Nacional e de política externa.
Na figura de teórico e ideólogo, Kissinger se fundamenta na tradição realista de Max Weber. O autor adota a concepção de Estado weberiano, na qual o governante estabelece uma relação contratual de domínio com o povo de um território. A esse líder político é concedido o imperativo de exercer os meios necessários, como o monopólio do uso da força e da violência legítima, para a manutenção de seu poder e da ordem social.
Kissinger também se inspira no conceito de razão de Estado (do francês, raison d’État) de Maquiavel e, portanto, entende o Estado como um bem supremo a ser preservado.
No livro 50 grandes estrategistas das Relações Internacionais (Editora Contexto, 2004), Martin Griffiths explica que Kissinger considerava que a política externa estadunidense deveria ser baseada na tradição diplomática europeia, a Realpolitik. As duas concepções centrais dessa estratégia diplomática são a razão de Estado e a responsabilidade de um estadista “forte” de “manipular o equilíbrio do poder a fim de manter a ordem internacional na qual nenhum Estado possa dominar os outros”, preservando o status quo e a soberania de seu país.
Como ainda salienta Griffiths, Kissinger aceita o pressuposto de as relações internacionais ocorrerem em “uma arena sem autoridade central” capaz de “arbitrar os conflitos de interesses e os valores entre os Estados”. Dessa forma, portanto, os interesses do Estado, no que se refere à autopreservação, justificariam o uso de meios “externos” que, em uma política doméstica “ordenada” pela figura do governante, não seriam “aceitáveis”.
A estratégia proposta pelo ideólogo compreendia a manutenção “limitada” da paz pelos líderes dos Estados Unidos, considerando o país como um quase inevitável “ordenador” do sistema internacional. Ao adotá-la, garantiria a continuidade da ordem internacional do século XX, na qual os Estados Unidos ocupavam uma posição de potência preponderante.
Hans Morgenthau, um dos principais teóricos da corrente realista das Relações Internacionais e autor de obras clássicas como Politics Among Nations, de 1948 (A política entre as nações, publicado em português pela Funag, em 2003), também foi um referencial teórico para Kissinger. Em particular, seus apontamentos sobre as limitações morais e de caráter jurídico ao poder e à ação do Estado.
Em vista de sua defesa pelo equilíbrio de poder, não pela paz perpétua entre os Estados, Kissinger admite a luta pelo poder travada no anfiteatro internacional. Segundo ele, a igualdade jurídica e formal entre os países não se estende à igualdade econômica e militar, o que desencadeia desequilíbrios sistêmicos.
Kissinger também considerava a política estadunidense na Guerra Fria “extremamente moralista”. Nesse sentido, critica a percepção da União Soviética como uma “ameaça ideológica”, pois, em sua análise, o país era, primordialmente, uma “ameaça geopolítica”.
A futura política externa de Kissinger durante sua carreira no governo dos Estados Unidos já estava presente em seu livro Nuclear Weapons and Foreign Policy, publicado pela primeira vez em 1957. No texto, o autor se contrapõe à estratégia de “retaliação maciça”, defendida pelo presidente Dwight Eisenhower em conjunto com seu então secretário de Estado, John Foster Dulles. Na obra, Kissinger explica que as armas nucleares modificam os fundamentos da política externa e que a guerra nuclear entre os Estados Unidos e a União Soviética seria “limitada”, caso os soviéticos alcançassem igualdade nuclear com os estadunidenses e a usassem contra eles.
Ao longo da maior parte da história dos Estados Unidos, seus governantes optaram pelo “isolacionismo”. Kissinger, todavia, afirma que, durante a segunda metade do século XX, dominou-se a prática da “internacionalização em cruzadas” como ação de política externa estadunidense. Apesar de sua participação na Guerra do Vietnã, o teórico critica este tipo de “internacionalização” — a ocupação de territórios que não pertencem ao seu país e ideias que embasem essas práticas, como a do “excepcionalismo americano”. Sua aversão a esses conceitos se dá não pela falta de identificação, mas por crença na falibilidade dessas estratégias.
O estadista e diplomata
Kissinger também ficou conhecido por seus cargos de secretário de Estado e de conselheiro de Segurança Nacional nos governos Nixon (1969-1974) e Ford (1974-1977). A partir das concepções da Realpolitik, Kissinger buscou exercer um estadismo de caráter realista ao longo de ambos os governos.
(Arquivo) O então presidente dos EUA, Richard Nixon (à esq.), e Henry Kissinger, na Casa Branca, em Washington, D.C., em out. 1973 (Crédito: CIA/Flickr)
A política externa desse estadista objetivava a sobrevivência dos Estados Unidos como a potência preponderante do sistema internacional da época.
Para ele, as nações consideradas grandes potências deveriam ser governadas por “indivíduos capazes de planejar” uma “ordem legítima”, na qual a luta pelo poder na arena internacional seria “controlada”. Kissinger buscou assumir essa posição em seu período como funcionário do governo estadunidense, aplicando vastamente os conceitos de interesse nacional e equilíbrio de poder no modus operandi de sua política.
Em função do progresso da política externa, o político considerou aceitável sacrificar o setor doméstico e centralizar ao máximo as decisões dos assuntos internacionais no Poder Executivo. Essa conduta incomodava os setores domésticos da política dos EUA, principalmente a ala conservadora e mais propensa ao isolacionismo.
Griffths explica que o Kissinger estadista e diplomata desejava combater “a tensão existente entre a criatividade dos negócios de Estado e a monotonia da burocracia e das políticas domésticas”. Para o autor, o caso Watergate, que aconteceu em 1972 e culminou na renúncia de Nixon, teria sido facilitado pela “centralização” no Executivo e pelo afastamento intencional do Congresso da Casa Branca.
Kissinger também foi acusado de isolacionista, sobretudo pelos políticos progressistas, por suas críticas às ideias liberais de Woodrow Wilson, presidente do país ao longo da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Diferentemente de Wilson, considerado pelo político realista como o maior exemplo do “internacionalismo americano”, Kissinger defendia que o “correto” seria os Estados Unidos garantirem o equilíbrio de poder, não se aliciando ao “isolacionismo”, nem tampouco ao “internacionalismo”.
Em sua carreira diplomática, Kissinger foi o “arquiteto” da política externa dos Estados Unidos durante a Guerra Fria (1947-1991), a Guerra do Vietnã (1955-1975) e o período das ditaduras latino-americanas, vividas entre as décadas de 1960 e 1980.
(Arquivo) Presidente Gerald R. Ford (à dir.) conversa com Henry Kissinger e com o vice-presidente Nelson Rockefeller no Salão Oval, antes de uma reunião do Conselho de Segurança Nacional para tratar da situação no Vietnã do Sul, em 28 abr. 1975 (Crédito: National Archives)
Em seu fazer diplomático, Kissinger defendeu uma política baseada na “cultura cosmopolita europeia” entre os diplomatas, inspirada no Concerto Europeu do século XIX e do Congresso de Viena. O estadista sugeriu a criação de um “sistema de valores compartilhados” que mitigasse os conflitos de interesses nacionais. Apesar das duras críticas sofridas pelos líderes políticos estadunidenses, esse “diplomata” também ficou conhecido por sua busca por conciliar os interesses de política externa e da burocracia doméstica de seu país. Kissinger soube jogar com alguma destreza o que Robert Putnam chamaria, em 1988, de jogo de dois níveis, em seu artigo “Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two-Level Games”, publicado na revista International Organization.
Há relatos, porém, de que a última palavra, publicamente ou em conchavos, sobre as ações dos Estados Unidos, era de Kissinger. Isso sinaliza a (verdadeira) falta de fair play por parte do estadista.
Durante seus anos no governo, foi desafiado a promover uma melhor relação entre os Estados Unidos e a União Soviética e a estabelecer “regras de compromisso” que limitassem a competição entre as superpotências.
Kissinger foi o criador da política da détente, ou “relaxamento das tensões”, no período da Guerra Fria; da política de abertura para a China; e da “diplomacia de vaivém” (do inglês, shuttle diplomacy) com o Oriente Médio.
Além disso, elaborou a “estratégia de ligação” como ação de política externa dos Estados Unidos para a União Soviética, na qual os Estados Unidos deveriam “recompensar” comportamentos alinhados aos seus interesses e desestimular as tentativas soviéticas de aumentar sua influência.
Kissinger trabalhou, sobretudo, para impedir a criação de laços entre os países em desenvolvimento e o bloco socialista, a fim de manipular as relações de interdependência do sistema internacional.
O estadista também precisou elaborar uma estratégia que “livrasse” os Estados Unidos da Guerra do Vietnã sem prejudicar sua credibilidade como superpotência. No entanto, como explicado na Parte II, o desenvolvimento dos acontecimentos no país revelou a retirada das tropas estadunidenses como precipitada e irresponsável.
Parte II – As polêmicas
… Sociedade de náufragos eruditos.
… A contribuição milionária de todos os erros.
… O menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino.
De Oswald de Andrade, trecho da VI, XII e X estrofes, respectivamente,
de “Falação”, poema da obra Pau-Brasil, de 1924
Entre estratégias fracassadas e uma carreira de sucesso, Kissinger é considerado um dos mais relevantes estrategistas das relações internacionais. No início da década de 1970, foi eleito o mais popular diplomata dos Estados Unidos. É questionável, no entanto, se o sucesso atribuído a sua imagem pública se estende à elaboração de estratégias bem-sucedidas de política externa.
A política da détente e a “estratégia de ligação” podem ser consideradas fracassadas, devido à incapacidade estadunidense de influenciar as ações do bloco socialista – e de seus próprios aliados – a fim de construir um equilíbrio de poder favorável aos Estados Unidos. Na época, ambos os setores da política doméstica rejeitaram a política de distensão entre as superpotências, a exemplo do presidente Ford, que se recusou a usar o termo “détente” durante a campanha presidencial de 1975.
Segundo Griffiths, a direita criticou-o por sua recusa em estender o processo de “ligação” a questões que envolviam os direitos humanos na União Soviética. Enquanto a esquerda considerava Kissinger e Nixon responsáveis por “insuflar secretamente a guerra no Vietnã e no Camboja”, aumentando os ataques aéreos na região para ganhar vantagens nas negociações de paz.
Griffiths também afirma que Kissinger teve um “fracasso evidente em persuadir o povo dos Estados Unidos de que a détente era de interesse nacional”.
Ao mesmo tempo, aumentava a insatisfação do Congresso quanto à tentativa de centralizar o controle dos assuntos internacionais na Casa Branca. Em termos de razão de Estado, pode-se interpretar que Kissinger assumiu riscos mais altos com o intuito de dispor de maiores liberdades ao tomar decisões de política externa.
Essa jogada afetou sua popularidade, em especial após o estouro do caso Watergate. Todavia, Kissinger se defendeu, acusando o povo dos Estados Unidos de ser incapaz de compreender a “arte do estadismo realista”, como relatou Griffiths.
Apesar do reconhecimento dispensado a Kissinger, as estratégias de política externa adotadas em sua carreira revelam a inviabilidade prática de certas crenças teóricas e ideológicas do estadista.
Pesquisadores como Griffiths compreendem que essa incongruência ocorre por suas estratégias refletirem algumas das “deficiências” e alguns “pontos cegos” da teoria realista. No mundo prático, Kissinger pode ser interpretado como um “realista descolado da realidade”.
Entre as acusações de crime de guerra e o Nobel da Paz
Em 2002, a Agência Central de Inteligência (CIA, na sigla em inglês) liberou documentos úteis para embasar acusações contra Kissinger. Já em 2011, os Estados Unidos quebraram o sigilo de documentos do Pentágono sobre a Guerra do Vietnã. Documentos que, mais uma vez, abalaram a imagem positiva associada a Kissinger, tornaram-se públicos em 2016. E, após acordo firmado pelo governo Barack Obama, a administração de Donald Trump (2017-2021) liberou, em 2019, papéis sobre a Operação Condor.
(Arquivo) Encontro Kissinger-Pinochet, em 1976 (Crédito: Archivo General Histórico del Ministerio de Relaciones Exteriores de Chile)
E, no âmbito do caso Watergate, investigadores do Congresso teriam descoberto que Kissinger ordenou ao FBI, a Polícia Federal dos EUA, que grampeasse os telefones dos funcionários do Conselho de Segurança Nacional.
Com essas novas informações sobre sua conduta política, o ideólogo foi acusado de cometer crimes de guerra e crimes contra humanidade durante a Guerra do Vietnã.
Ele também teve seu nome associado à idealização do “Plano Condor” e sofreu críticas por manter relacionamento próximo com ditadores da América Latina, como o general Augusto Pinochet.
As acusações ganharam maior proporção com o lançamento do livro de Christopher Hitchens, O Julgamento de Kissinger (Editora Boitempo, 2002). A obra foi usada como referência para o documentário homônimo, de 2002, de Eugene Jarecki e Alex Gibney, que estimulou um maior debate público da personalidade de Kissinger sob uma perspectiva negativa.
O documentário recebeu, por sua vez, críticas em um artigo do Le Monde, de autor não identificado, no qual os produtores são acusados de “leviandade culpada” por não trazerem dados mais factíveis, não examinarem a jurisdição específica sobre crimes de guerra e por não acusarem os presidentes Nixon e Ford com o mesmo fervor.
Em artigo de 2016 para a revista The Atlantic, intitulado “The long history of leading from behind”, Stephen Sestanovich acusa Kissinger de arranjar registros falsificados, a fim de executar o bombardeio secreto do Camboja. Antes, em artigo publicado em 2001 na Diplomatique Brasil, Ibrahim Warde já responsabilizava Kissinger por cumplicidade no genocídio no Timor Leste e por operações de assassinato no Chipre, na Grécia e em Bangladesh.
Em 1973, Kissinger recebeu o Nobel da Paz pelas negociações que culminaram no Pacto de Paz de Paris e deram fim ao envolvimento militar dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã, por meio da retirada oficial das tropas americanas.
Seu aceite ao Nobel da Paz foi, também, alvo de críticas, uma vez que a guerra entre norte e sul-vietnamitas não foi interrompida de fato. Prova disso foi que o outro ganhador do Nobel da Paz de 1973, o diplomata e líder revolucionário do Vietnã do Sul Lê Đức Thọ, recusou o prêmio, alegando não merecer tal honraria em razão da péssima situação em que seu país se encontrava após o “fim da guerra” e a retirada das tropas estadunidenses.
Conta-se que Kissinger tentou devolver o prêmio após a queda da capital do Vietnã do Sul, Saigon para os comunistas, mas não se pronunciou sobre as denúncias de tentativa de prorrogação da guerra com o intuito de se beneficiar nas negociações de paz.
Parte III – O legado
Contra o gabinetismo, a palmilhação dos climas.
De Oswald de Andrade, XI estrofe de “Falação”,
poema da obra Manifesto Pau-Brasil, de 1924
Se Pedro Segundo
Vier aqui
Com história
Eu boto ele na cadeia.
De Oswald de Andrade, “Senhor Feudal”,
poema da obra Manifesto Pau-Brasil, de 1924
O diferencial de Henry Kissinger
Kissinger enfrentou polêmicas em relação à forma de conduzir a política externa dos Estados Unidos e sofreu denúncias envolvendo sua personalidade controversa, “oblíqua e dissimulada”. Apesar disso, o ideólogo tem sido perpetuado como referência para o campo das Relações Internacionais.
Enquanto Nixon perdeu apoio público após o caso Watergate, tornando-se o único presidente dos EUA a renunciar ao cargo, Kissinger continuou no governo durante a administração posterior, de Ford, mantendo sua credibilidade.
Niall Ferguson, em “The Secret to Henry Kissinger’s Success”, de 2018, apresenta a capacidade de Kissinger de criar uma forte rede de relacionamentos (networking, em inglês) como o fator que permitiu essa diferença paradigmática.
A rede construída por Kissinger era eclética. Ela incluía desde pessoas das administrações de que participou até outras de fora do governo, como “jornalistas, proprietários de jornais, embaixadores estrangeiros, chefes de Estado e […] produtores de Hollywood”, descreve Ferguson. Ademais, ser parte de uma consolidada comunidade epistêmica, a de acadêmicos de Harvard, concedia-lhe legitimidade e credibilidade.
Assim, a sobrevivência da vida política do acadêmico não dependia da continuidade de Nixon no poder.
O presidente, por sua vez, estava isolado no “gabinetismo”, citado pelo poeta Andrade. Em seu artigo, Ferguson constrói gráficos que revelam uma rede mais enxuta e com pouca diversificação de contatos para Nixon, envolvendo, majoritariamente, pessoas de cargos de dentro do governo, com as quais ele precisava lidar diretamente.
Kissinger compreendeu que as redes de parcerias, favores e amizades podem ser muito mais poderosas do que as hierarquias do governo federal.
Fazendo alusão ao poema “Senhor feudal”, Kissinger era hierarquicamente inferior a Nixon, assim como o “senhor feudal”, referência aos agropecuários brasileiros, em relação a Dom Pedro II. No entanto, os primeiros estabeleceram relações mais sólidas no meio em que conviviam, o que lhes concedeu poder e segurança.
O diferencial de Kissinger, certamente, foi compreender que a burocracia tem sua importância, mas não supera os laços criados pelas relações humanas.
O simbolismo de Kissinger para a política externa dos Estados Unidos
Após sua passagem por cargos governamentais, Kissinger continuou escrevendo artigos e livros, dando palestras, sendo convidado como comentarista em programas de televisão e recebendo propostas para prestar consultoria política em território doméstico e internacional. Isso aconteceu até meses antes de sua morte.
Em seus últimos anos de vida, o ideólogo reforçava a vantagem que há em os Estados Unidos mostrarem que sua “liderança” permanece sendo conveniente para a ordem internacional.
Pedro Salgado, em seu artigo “Precisamos parar de ouvir Kissinger”, publicado na revista Diplomatique Brasil (2018), considerou Kissinger um “teórico datado”, por adotar conceitos geopolíticos de autores realistas como o determinismo geográfico de Friedrich Ratzel, que justifica o comportamento de um Estado como reflexo de sua “natureza intrínseca”.
A justificativa usada por Kissinger pode estar, realmente, obsoleta. No entanto, sua análise sobre o desenrolar da política internacional em seus últimos anos de vida é condizente com as relações internacionais atuais. Neste sentido, destacam-se os seus conselhos quanto aos resultados políticos (e geopolíticos) que a tentativa de ingresso da Ucrânia na OTAN significa nas relações entre a Rússia e o restante da Europa – o que se tem observado, atualmente, na Guerra ainda em curso.
Expansão da OTAN na direção da Rússia (Crédito: Patrickneil e Spesh531/Wikimedia)
Para Griffiths, a análise do teórico entende a Europa como a área em que o equilíbrio de poder deve ser aplicado, atentando-se à Rússia e à Alemanha e à “expansão da OTAN para o Leste”. Kissinger alega, ainda, a necessidade de manter proximidade com os países do Leste Europeu, principalmente os que têm certa inimizade com a Rússia, como Ucrânia e Belarus.
Em meio a uma carreira bem-sucedida, a “dessacralização” da personalidade de Kissinger é uma tendência real, principalmente após sua morte. A trajetória de Kissinger pode ser compreendida como um símbolo do sistema de cooptação de intelectuais para a atuação em cargos do governo estadunidense. Por meio dela, observa-se como a política externa dos Estados Unidos se utiliza da constante produção teórica dos seus ideólogos e como estas teorias são desenvolvidas com o objetivo último de que o país mantenha sua posição de hegemon do sistema.
Árduo defensor da soberania dos Estados Unidos na política internacional, Kissinger poderia ter adaptado para suas palavras a poesia “Canto de Regresso a Pátria”, de Andrade, que fala da volta do escritor a São Paulo, e ter pedido a Deus que não morresse sem que visse a 1600 Pennsylvania Avenue e “o progresso americano”.
* A intertextualidade entre a poesia modernista de Oswald de Andrade e a personalidade de Kissinger é uma homenagem da autora ao 470º aniversário de São Paulo, comemorado no dia 25 de janeiro de 2024, e aos 102 anos da Semana de Arte Moderna de 1922, completados em fevereiro.
** Vitória Martins Queiroz é graduanda em Relações Internacionais (IRID/UFRJ) e pesquisadora bolsista de Iniciação Científica INCT-INEU/OPEU (PIBIC-CNPq). Contato: vitoriamartins488@gmail.com.
*** Primeira revisão: Simone Gondim. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Segunda revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 9 nov. 2023. Este Panorama EUA não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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