Estados Unidos, União Europeia e o Conselho de Comércio e Tecnologia (TTC)
(Arquivo) Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen; presidente do Conselho Europeu, Charles Michel; presidente dos EUA, Joe Biden, em cúpula EUA-UE, em Bruxelas, em 15 jun. 2021 (Crédito: Twitter/X/Ursula von der Leyen)
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Por Marcos Cordeiro Pires e Tatiana Teixeira* [Panorama EUA]
As relações entre Estados Unidos e a Europa são bastantes assimétricas. Por mais que, no discurso político sobre a relação transatlântica, se fale sobre amizade inquebrantável, parceria, compartilhamento de valores sobre democracia e direitos humanos, o fato é que a Europa é, junto com a América Latina, o quintal dos Estados Unidos.
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o governo de Washington manipula a “ameaça russa” ou “comunista” para manter tropas no continente e subordinar as forças armadas da Europa ao comando da OTAN. Parte da elite vê isso de bom grado, mas há um crescente sentimento por parte de amplas camadas da população europeia de que seria necessário terminar com este processo de “ocupação branca”. Apenas na Alemanha, o número de militares dos EUA aumentou significativamente nos últimos anos, de menos de 39.000, em 2019, para mais de 50.000, em 2024. Grande parte disso ocorre por conta da guerra na Ucrânia, conflito que foi estimulado pelo Pentágono e por ideólogos estadunidenses, ao forçar, deliberadamente, o entorno de segurança da Rússia.
(Arquivo) Soldados do Exército dos EUA da 1ª Brigada Blindada de Combate, 3ª Divisão de Infantaria, chegam ao Aeroporto Internacional de Nuremberg, em 28 fev. 2022, como parte da contribuição dos Estados Unidos para a Força de Resposta da OTAN (NRF) (Crédito: Flickr da OTAN)
O atraso europeu
A inferioridade europeia ante os Estados Unidos está cada vez mais evidente – e em diferentes setores. As empresas baseadas na União Europeia (UE) não se encontram na vanguarda das principais tecnologias relacionadas à Quarta Revolução Industrial, ou à Inteligência Artificial. Apenas a Airbus é um concorrente de peso, em um setor de alta tecnologia que, de forma geral, ainda é controlado por empresas estadunidenses, como Boeing, Nvidia, Microsoft, Apple, Alphabet, Meta, Amazon, Intel, etc. Apenas recentemente, com a ascensão da China, estas empresas estão enfrentando uma concorrência à altura, com Tencent, Baidu, Alibaba, ou ByteDance. Um dado importante sobre a decadência da União Europeia frente aos Estados Unidos é a renda per capita em dólares correntes. De acordo com o World Bank Data, em 2008, a renda da UE representava 76,2% da renda dos estadunidenses. Em 2022, este percentual caiu para 49,1%!
Antes da guerra da Ucrânia, em 2022, os europeus começaram a se mobilizar para buscarem uma maior autonomia estratégica com relação a Washington. A parceria entre Alemanha e Rússia no setor de gás foi um exemplo. Em 2019, o ex-presidente da Comissão Europeia (2004-2014) José Manuel Durão Barroso disse, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, que “falta à União Europeia a capacidade de projetar poder em termos geopolíticos, nomeadamente na política de defesa e segurança e, em certa medida, na política externa”. Esta preocupação foi primeiramente manifestada pelo presidente francês, Emmanuel Macron, em setembro de 2017, na Universidade Sorbonne, em Paris, quando defendeu que a UE criasse uma força militar compartilhada para seus países-membros.
(Arquivo) Em discurso em Sorbonne, em 26 set. 2017, o presidente francês, Emmanuel Macron, pede a refundação da Europa (Crédito: Sorbonne/Flickr)
Naquele momento, os europeus ainda estavam perplexos com os discursos isolacionistas de Donald Trump e suas pressões para que as nações europeias aumentassem seus gastos em defesa. Além disso, Trump iniciou uma série de políticas protecionistas que não pouparam seus aliados europeus e mesmo Canadá e México, vizinhos com os quais os EUA tinham acordo de livre-comércio. A imposição de sobretaxas sobre a importação de aço e alumínio produzidos na União Europeia criou um grande mal-estar na relação transatlântica. Além disso, de acordo com o comissário europeu da Indústria e Defesa, Thierry Breton, em 2020, Trump disse à presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que os EUA nunca defenderiam a Europa, que os EUA deixariam a OTAN e que a Alemanha lhe devia US$ 400 bilhões por sua defesa. A estratégia de “America First” ameaçava o cerne da aliança política e militar que se pensava indestrutível.
Criação do TTC e resultados dos encontros
Desde o começo de seu governo, Joe Biden buscou acalmar os dirigentes da União Europeia e voltou a garantir o compromisso de Washington com as relações transatlânticas e com os temas ligados à transição energética e à mudança climática. Em 15 de junho de 2021, poucos meses depois de sua posse, Biden e Von der Leyen, anunciaram a criação do Conselho de Comércio e Tecnologia (TTC, na sigla em inglês), como um órgão político de alto nível para coordenar a política tecnologia e comercial entre os Estados Unidos e a União Europeia, composto pela vice-presidente-executiva da Comissão Europeia, Margrethe Vestager; pelo vice-presidente-executivo da Comissão Europeia, Valdis Dombrovskis; pelo secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken; pela secretária de Comércio estadunidense, Gina Raimondo; e por Katherine Tai, representante comercial dos EUA (USTR, na sigla em inglês).
Os debates do TTC são coordenados por dez grupos de trabalho, cada um centrado em áreas políticas específicas: a cooperação EUA-UE em tecnologia, setores estratégicos, minerais críticos, acesso ao mercado, comércio, valores democráticos e Estado de direito no mundo digital, resiliência da cadeia de abastecimento, a ordem comercial global e a agenda regulatória em desenvolvimento da UE, como a Lei dos Serviços Digitais, a Lei dos Dados e as Regras da Nuvem. Desde sua criação, já foram realizados cinco encontros. O próximo está previsto para Leuven, na Bélgica, em 4-5 de abril de 2024.
Os membros do TTC se reuniram pela primeira vez em 29 de setembro de 2021, em Pittsburgh, nos Estados Unidos. A escolha foi bastante simbólica. A outrora conhecida como “Cidade do Aço” está se tornando um dos principais centros tecnológicos e de economia criativa do país.
No evento, foram definidos os parâmetros para a organização dos grupos de trabalho e se mostrou a disposição para buscar consenso nos temas relacionados à relação comercial e de investimento transatlântica, combater a crise climática, proteger o ambiente, promover os direitos dos trabalhadores, combater o trabalho infantil e forçado, expandir a resiliência e cadeias de abastecimento sustentáveis e expandir a cooperação em tecnologias críticas e emergentes.
O segundo encontro, em 16 de maio de 2022, ocorreu em Paris-Saclay, em meio a um clima de grande apreensão decorrente do início da guerra na Ucrânia, três meses antes. Dentre os consensos divulgados, foi ressaltado o apoio à Ucrânia contra a Rússia; o reforço da cooperação transatlântica para apoiar a integridade da informação em situações de crise; o estabelecimento de um Diálogo Comercial e Laboral tripartido para promover conjuntamente os direitos laborais reconhecidos internacionalmente; debater controles de exportação de tecnologias avançadas, como a vigilância aeroespacial e cibernética; o estabelecimento de cadeias de abastecimento seguras; criar um mecanismo de Informação Estratégica de Normalização (SSI, na sigla em inglês) para promover e defender interesses comuns em atividades de normalização internacional; regular a Inteligência Artificial e a gestão de risco a ela associados; apoiar uma Internet aberta, global, interoperável, fiável e segura; discutir os aspectos ambientais e climáticos do comércio e da tecnologia para promoção de uma melhor compreensão de como o comércio pode desempenhar do papel na facilitação da disseminação de bens e serviços ambientais; discutir regras de comércio e investimentos; dentre outros assuntos.
O terceiro encontro foi realizado nos arredores de Washington, D.C., em 5 de dezembro de 2022. O comunicado conjunto ressaltou os avanços das negociações, como em: (a) infraestrutura digital e conectividade, havendo acordo sobre apoiar a conectividade digital segura e resiliente e as cadeias de abastecimento de tecnologias e serviços de informação e comunicação (TICS) em países terceiros, como Quênia e Jamaica, por meio de um Memorando de Entendimento entre o Banco Europeu de Investimento (BEI) e a Corporação Financeira do Desenvolvimento dos EUA (DFC); (b) cooperação em tecnologias novas e emergentes, como reduzir as barreiras à colaboração em investigação e desenvolvimento em ciência e tecnologia da informação quântica, em carregamento de veículos elétricos, padrões de fabricação aditiva, reciclagem de plásticos e identidade digital, com planos para lançar novos fluxos de trabalho em criptografia pós-quântica e Internet das Coisas (IoT, na sigla em inglês), com foco inicial em padrões técnicos e de desempenho para segurança cibernética a ser discutido no Diálogo Cibernético UE-EUA; desenvolver uma visão comum sobre investigação e desenvolvimento para além do 5G e 6G.; (c) construção de cadeias de fornecimento de semicondutores resilientes; (d) promoção dos valores ocidentais na Internet; (e) reforçar o comércio transatlântico, ao aumentar o uso de ferramentas digitais e estabelecer acordos de Reconhecimento Mútuo e Iniciativas Relacionadas à Avaliação da Conformidade; (f) comércio, segurança e prosperidade econômica, como os controles de exportação e restrições de exportação relacionadas com sanções, triagem de investimento, políticas e práticas econômicas fora do mercado e a coerção econômica de terceiros países contra os membros do TTC.
A quarta reunião ministerial do Conselho de Comércio e Tecnologia teve lugar em Luleå, Suécia, em 31 de maio de 2023. O comunicado conjunto ressaltou os seguintes aspectos: (a) cooperar em discussões multilaterais relacionadas com o comércio e a tecnologia em fóruns como o G20 e o G7 e para a reforma da OMC; (b) aprofundar a cooperação em questões tecnológicas, nomeadamente em matéria de Inteligência Artificial (IA), 6G, plataformas em linha e tecnologia quântica; (c) promover os princípios apresentados na Declaração para o Futuro da Internet (DFI); (d) colocar os esforços de descarbonização no centro da política comercial para acelerar a transição para uma economia líquida zero, por meio da Iniciativa Transatlântica para o Comércio Sustentável, com União Europeia e Estados Unidos reforçando o empenho para criar um mercado verde transatlântico; (e) estabelecimento de um Acordo Mundial Sustentável para o Aço e o Alumínio; estabelecer negociações sobre um acordo sobre minerais críticos; (f) lançamento do Diálogo sobre Incentivos às Energias Limpas para partilhar informações sobre programas de incentivos às energias limpas em ambos os lados do Atlântico; (g) a realização de análises conjuntas de políticas e práticas não mercantis de terceiros para compreender melhor seu impacto nas empresas dos EUA e da UE.
O quinto encontro do TTC, realizado em Washington, D.C., em 30 de janeiro de 2024, não gerou um comunicado conjunto. Foi lançado apenas um press release assinado pelos representantes dos EUA e da UE, em que se listou as ações que já haviam sido acordadas em reuniões anteriores. Aparentemente, não houve avanços nas negociações em questões sensíveis, como o protecionismo, caso das leis aprovadas no governo de Joe Biden, CHIPS and Scienc Act e Inflation Reduction Act (IRA), na questão da cadeia de produção de minerais críticos e tampouco uma solução definitiva para as sobretarifas ao aço e ao alumínio.
(Arquivo) Secretário Antony Blinken; secretária Gina Raimondo (2ª à dir.) e a USTR, Katherine Tai (à dir.) recebem o comissário Europeu para o Mercado Interno, Thierry Breton (à esq.), o comissário de Comércio da EU, Valdis Dombrovskis (2º à esq.) e a vice-presidente-executiva da Comissão Europeia, Margrethe Vestager (3ª à esq.) para a V reunião ministerial do Conselho de Comércio e Tecnologia no Departamento de Estado, em Washington, D.C., em 30 jan. 2024 (Crédito: Chuck Kennedy/ Departamento de Estado/Flickr)
Nesse aspecto, vale a pena mencionar a avaliação de Margrethe Vestager sobre aquele encontro: “Esta reunião ministerial é um pouco especial, porque não temos uma declaração da reunião. Pensamos que precisávamos nos unir para preparar as etapas para a reunião de abril na Bélgica”, afirmando que a sexta rodada seria potencialmente última antes das eleições nacionais da UE e dos EUA. Ela ainda acrescentou: “Da nossa parte, a ambição será mantê-lo, talvez numa segunda geração, mas definitivamente mantê-lo. Como a próxima administração presidencial [dos Estados Unidos] irá encarar isso, é claro que depende deles”.
Qual o objetivo dos EUA com o TTC?
Antes de tudo, é importante salientar que a retomada do relacionamento transatlântico pelo governo de Joe Biden se relaciona com o objetivo estratégico de conter o desenvolvimento da China em nível mundial. Esta preocupação já foi manifestada em diversas cúpulas do G7, como as do Reino Unido (2021), Alemanha (2022) e Japão (2023). Apesar de, aparentemente, significar uma maior coordenação política e estratégica entre EUA e UE, todas as pautas discutidas nos cinco encontros do TTC tangenciam a China.
(Arquivo) Presidente Joe Biden e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von Der Leyen, em 25 mar. 2022, em Bruxelas (Crédito: Adam Schultz/Casa Branca/Flickr)
Em primeiro lugar, sob a desculpa de agir em favor da mudança climática e da mitigação de gases de efeito estufa, foi criado o Global Arrangement on Sustainable Steel and Aluminum, que busca criar argumentos “ambientais” para penalizar a oferta de aço e alumínio da China em um contexto de grande capacidade ociosa e de perda da competitividade das indústrias nos Estados Unidos e na Europa. De acordo com a consultoria Global Efficiency Intelligence, a produção de aço americana e europeia seria menos intensiva em carbono do que a de muitos outros países com grandes indústrias siderúrgicas, particularmente China, Índia e Japão. EUA e União Europeia concluíram as discussões sobre este tema em dezembro de 2023. Outros temas, como desacoplagem e redução de risco das cadeias produtivas, ainda estão em discussão, mas há resistências de países-membros da UE em aderir às medidas propostas pelos Estados Unidos, conforme discutiremos a seguir.
A coordenação sobre as políticas para a cadeia de produção de semicondutores é mais um exemplo disso. Os americanos já instituíram medidas como o supracitado CHIPS Act para fornecer subsídios para a produção doméstica de microchips, proibir a cooperação entre cidadãos americanos e portadores de green card (visto de residência permanente) no setor, além de bloquear a venda de equipamentos avançados para a impressão de chips — notadamente, da empresa holandesa ASML. Nesse quesito, deve ser incluída a tentativa de superar a China na área de Internet 5G e 6G e de contornar a Huawei por meio da tecnologia Open-RAN (Open Radio Access Networks).
Esta articulação de políticas contra a China também avança para o segmento de veículos elétricos, uma vez que acusam a indústria chinesa de distorcer a formação de preços no mercado internacional por meio de subsídios. Interessante notar que a lei IRA (Lei de Redução da Inflação) oferece inúmeros subsídios para a indústria local, fato que prejudica até mesmo os aliados europeus e suas empresas automobilísticas. Embalada por uma série de críticas, a UE reagiu, anunciando seu Green Deal Industrial Plan, o qual traz, entre outros pontos, a revisão e a atualização de suas próprias políticas de concessão de subsídios para o setor, de modo a concorrer em melhores condições com os EUA e a reduzir sua dependência da China.
Os debates em curso também miram a indústria chinesa relacionada à produção de equipamentos para a produção de energia limpa. Nesse aspecto, vale citar a criação da Iniciativa Transatlântica de Comércio Sustentável (TIST, na sigla em inglês).
Deve-se, ainda, mencionar a preocupação com a cadeia de produção de minerais críticos, como lítio, nióbio, cobalto, níquel, manganês e terras raras. Recentemente, a China respondeu às sanções no setor de semicondutores dos Estados Unidos com o controle de exportação de minerais relacionados às terras raras, como gálio e germânio, além de diversos tipos de grafite. Nesse sentido, é interessante notar como os EUA e a UE estão aumentando a pressão sobre países da África e da América Latina para restringir o acesso da China a esses minerais críticos.
Sede da DARPA, em Ballston, Virgínia (Crédito: ajay_suresh/Wikimedia)
Adicionalmente, os debates do TTC sobre economias que “não são de mercado” – uma alusão à China – buscam criar medidas adicionais para conter as exportações chinesas sob a acusação de interferências políticas que distorcem a competição. De fato, isso é uma hipocrisia, pois EUA e UE têm amplos programas de apoio público para o desenvolvimento de tecnologias de ponta, do qual a Agência de Pesquisa Avançada em Projetos de Defesa (DARPA, na sigla em inglês) é o exemplo mais bem acabado, sem mencionar a leis CHIPS, IRA e a Agência de Pesquisa Avançada em Projetos de Saúde (ARPA-H, sigla em inglês). Ainda neste ponto, EUA e UE acordaram em dar respostas contra a chamada “coerção econômica” por parte de governos autocráticos, como seria o caso da China.
O tema de regulamentação da Inteligência Artificial é essencial, no momento em que esta tecnologia está se disseminando rapidamente, sobretudo, quando se popularizam os Chatbots, como o ChatGPT, Copilot, Bard etc. Em novembro de 2023, juntamente com Reino Unido, EUA, UE e Austrália, a China concordou em que a Inteligência Artificial representa um risco potencialmente catastrófico para a humanidade, na primeira declaração internacional para lidar com a tecnologia emergente, a chamada “Declaração de Bletchley”, após a cúpula de segurança da IA, organizada pelo governo britânico. As medidas acordadas por americanos e europeus buscam, no entanto, dificultar o acesso da China às tecnologias de ponta para avançar em um setor em que o país já está bem-posicionado.
O tema dos direitos humanos e das liberdades individuais também é, mais uma vez, instrumentalizado para atacar a China no setor de Internet, além de buscar alternativas para contornar as medidas de segurança que os países rivais do Ocidente utilizam para evitar a manipulação por meio de redes sociais e ataques cibernéticos. A tentativa de banimento de aplicativos, ou mesmo de carros elétricos chineses, como Gina Raimondo mencionou em diversas oportunidades, teria como argumento proteger os dados dos cidadãos contra governos “autocráticos”. Nesse aspecto, é importante observar a postura corporal da secretária de Comércio dos EUA durante uma entrevista concedida ao think tank estadunidense Atlantic Council sobre as negociações do TTC, em que ela se volta para a comissária Magrethe Vertager, quando descreve a ameaça de coleta de dados por parte dos veículos elétricos chineses, como se a tivesse pressionado para chegar a algum acordo sobre este tema que ainda está em aberto.
Gina Raimondo e Margrethe Vestager sobre o futuro dos laços econômicos EUA-UE (Fonte: canal do Atlantic Council no YouTube)
As ações até aqui acordadas no TTC estão mantendo vivas as relações entre Europa e Estados Unidos, em um contexto de muitas incertezas críticas. Mas, como afirmamos anteriormente, trata-se de uma relação assimétrica, entre um suserano e um vassalo. O poder de pressão dos Estados Unidos é infinitamente maior do que o da Europa, ainda mais se considerarmos que a União Europeia não é um Estado e não possui uma legislação para impor a todas as nações do bloco uma política única. Pelo contrário, pois a Comissão Europeia baseada em Bruxelas depende de um consenso entre todos os 27 países-membros, o que torna a tomada de decisões muito burocrática e demorada.
É preciso considerar que as decisões do TTC também estão sujeitas a um contexto partidário nos Estados Unidos marcado pela polarização entre democratas e republicanos, principalmente os partidários de Donald Trump, adeptos de seu slogan político “Fazer a América Grande de Novo” (MAGA, na sigla em inglês). Os primeiros têm uma grande afinidade com os valores professados pela União Europeia, como a defesa dos direitos individuais e das minorias, como o dos homossexuais e imigrantes, o direito ao aborto, a defesa de pautas ambientalistas e relacionados à economia verde, à mudança climática e a garantia de direitos básicos aos trabalhadores. Já do lado MAGA, é justamente o oposto: os valores da União Europeia se chocam frontalmente com o conservadorismo, o autoritarismo, o protecionismo e o negacionismo defendido pelos seguidores de Trump.
É provável que quaisquer acordos que signifiquem alguma concessão econômica para a UE, como incluir empresas europeias em pacotes de subsídios previstos pela CHIPS Act, ou pela IRA, sejam bloqueados pelo Congresso, independentemente da eventual vitória de Donald Trump em 2024. Em primeiro lugar, democratas e republicanos disputam o título de “rei do protecionismo”. Além disso, nenhum partido terá, no curto prazo, uma maioria de 60 assentos no Senado para aprovar medidas de longo alcance. Vale lembrar que mesmo um avanço significativo na reunião do TTC no próximo mês, na Bélgica, não impactará as eleições, pois grande parte do eleitorado está voltado para problemas do dia a dia, como inflação, emprego, salários, aborto, imigração e saúde, e não em temas sobre comércio internacional e que podem lhes impactar a vida em médio e longo prazos. O horizonte do cidadão médio americano, com hipotecas a pagar e uma eleição presidencial pela frente, é curto.
(Arquivo) MAGA: eleitores de Trump, em evento em Baltimore, Maryland, em 12 set. 2016 (Crédito: Elvert Barnes/ Wikimedia)
Quando se pensa sobre a contenção da China no setor de alta tecnologia, é preciso considerar que a União Europeia tem seus próprios interesses na China. Por um lado, pode até concordar em alguns casos, como no setor de semicondutores, já que os Estados Unidos são os desenvolvedores primários do setor e seria muito difícil evitar sanções à holandesa ASML, produtora de equipamentos de litografia para a produção de chips. Por outro, não há consenso sobre o setor de veículos elétricos (EVs), pois a indústria europeia, principalmente a alemã, tem sua própria agenda que conflitua com os interesses da indústria americana, particularmente com os subsídios para o setor anunciados na IRA. Nesse contexto, a Associação Europeia de Fabricantes de Automóveis (ACEA, na sigla em inglês) demandou à Comissão Europeia a criação de uma comissão para analisar a suposta concorrência desleal da China na produção de veículos elétricos.
Caso fosse possível anunciar um grande acordo na reunião de Leuven na primeira semana de abril, do ponto de vista dos Estados Unidos, a adesão da União Europeia às suas políticas de contenção da China, seria um trunfo na mão de Joe Biden para sua reeleição, pois mostraria liderança e a importância das relações transatlânticas para os Estados Unidos. Mas este acordo seria viável apenas se tivesse cláusulas que efetivamente pudessem dar uma vantagem estratégica para os americanos, como a adesão total da Europa às políticas globais defendidas por Washington – algo que parece improvável até o momento. Se ocorrer o contrário, com os Estados Unidos parecendo fracos diante da Europa, os partidários de Trump e sua máquina de comunicação e de desinformação irão desgastá-lo, dizendo que traiu os interesses americanos e colocou a América em Segundo Lugar.
Há ainda outros aspectos a serem considerados. Um tema priorizado pelos democratas como a transição energética encontra uma grande barreira entre os republicanos. Trump já se manifestou como um grande defensor da indústria do carvão e contrário aos carros elétricos, sob o argumento de que isso destruiria a economia dos Estados Unidos e provocaria uma enorme onda de desemprego. Este discurso agrada tanto aos trabalhadores do setor de petróleo do Sul do país, como os operários (ou ex-operários) do Cinturão da Ferrugem, que ainda sonham com o retorno no país ao auge da produção fordista, com muitos empregos e elevados salários. A propósito, Trump utilizou mais uma vez a expressão “banho de sangue”, não apenas relacionado à sua derrota em novembro, mas também para se referir à eventual eletrificação dos veículos.
Rust Belt, o Cinturão da Ferrugem, nos EUA (Crédito: Britannica)
Por fim, especificamente quanto à expansão da aliança transatlântica para outros aliados, como o Japão, os Estados Unidos já firmaram um acordo sobre minerais críticos (CMA, na sigla em inglês), em 28 de março de 2023, algo que tentam fazer com a UE nas negociações do TTC. As partes se comprometeram a não restringir a importação ou a exportação de minerais críticos, nem a impor direitos de exportação. Concordaram em se consultar sobre potenciais medidas nacionais para abordar as políticas e práticas não mercantis de outros países (diga-se, China). Da mesma forma, comprometeram-se a desenvolver cadeias sustentáveis de abastecimento de minerais críticos, por meio do trabalho sobre normas internacionais sobre rotulagem e reciclagem, melhorando as leis nacionais de proteção ambiental para minerais críticos, garantindo o fornecimento responsável, avaliando o impacto ambiental de projetos de minerais críticos e promovendo a economia circular por meio da reciclagem desses minerais em equipamentos descartados. O acordo executivo entrou em vigor após a assinatura de Biden e não necessitou de aprovação do Congresso.
Quais os objetivos da Europa no TTC?
Conforme ressaltado na introdução deste relatório, a posição da Europa frente aos Estados Unidos é muito fraca, pois o bloco não tem soberania estratégica sobre seu próprio destino, seja em assuntos militares, seja em assuntos diplomáticos. Recorda-se de que o acordo de gás firmado entre Alemanha e Rússia ocorreu em contrariedade às opiniões dos Estados Unidos. Para Washington, não se tratava de um tema exclusivamente relacionado à segurança, mas econômico, pois a produtividade industrial da Alemanha ameaçava a indústria dos Estados Unidos. Hoje, já existem diversos relatos de que os estadunidenses destruíram o gasoduto Nord Stream, logo após o começo da guerra na Ucrânia, para aumentar a dependência dos alemães em relação à produção de petróleo e gás americanos, principalmente da oferta do Golfo do México. Com a guerra, a economia dos Estados Unidos está crescendo, enquanto os países da Europa estão estagnados, ou em recessão.
Do ponto de vista econômico, a UE está descontente com a legislação protecionista criada pelos EUA na área do aço e do alumínio, de semicondutores, transição energética, minerais críticos e biotecnologias. É importante ressaltar que não foi fechado um acordo sobre ambos os metais. Por enquanto, além de anunciar uma parceria global sobre aço e alumínio verdes, União Europeia e Estados Unidos concordaram apenas em que Washington continuará a suspender as tarifas sobre essas duas commodities da UE até março de 2025 e que Bruxelas não irá reimpor suas medidas retaliatórias. Sob esta prorrogação, os Estados Unidos abster-se-ão das tarifas de 25% sobre o aço da UE, e de 10%, sobre o alumínio europeu, impostas em 2018, durante o governo Trump.
Mas as divergências persistem. De acordo com o site POLITICO, os negociadores americanos ficaram muito insatisfeitos com os delegados europeus do TTC, porque eles impediram a inclusão de menções duras à China durante a reunião na Suécia. Veja-se: “Dois responsáveis americanos, que falaram sob condição de anonimato para discutir deliberações internas, expressaram sua frustração sobre a forma como os responsáveis da UE estavam tentando remover referências à China que refletissem de perto as declarações públicas agressivas de Von der Leyen. Questionaram qual seria o propósito de o presidente da Comissão adotar uma posição mais dura em relação a Pequim, se esta não fosse acompanhada de compromissos robustos”. Para Emily Benson (foto), especialista em comércio do Center for Strategic and International Studies (CSIS), um think tank com sede em Washington, D.C., “a UE está muito mais relutante em construir uma política anti-China”. Ela complementa: “Os americanos estão se inclinando para a ideia de que a Europa está aderindo à sua política para a China. Não sei se concordaria com isso”.
Na visão de Ian Bond, vice-diretor do Center for European Reform, um segundo mandato de Trump impactaria quatro áreas cruciais: defesa e o futuro da OTAN; relações econômicas transatlânticas; a abordagem de Trump em relação à ordem internacional baseada em regras; e as tensões internas dos EUA e seu impacto internacional.
Trump tem um longo histórico de hostilidade ao livre-comércio. Embora a China tenha sido seu alvo número um durante seu mandato (2017-2021), ele foi quase tão hostil à União Europeia, alegando que o bloco tratava os EUA pior do que tratava a China. Quando impôs tarifas sobre as importações de alumínio e aço com base espúria de que “ameaçavam a segurança nacional dos EUA”, as novas taxas se aplicaram tanto aos produtores europeus como aos chineses. Existe um elevado risco de que, em um potencial segundo mandato, Trump utilize a desculpa da “segurança nacional” para impor tarifas sobre mais produtos, independentemente da oposição da UE, ou do risco de litígios na Organização Mundial do Comércio (OMC).
A resposta habitual da Comissão Europeia em tais casos seria a imposição de tarifas retaliatórias dirigidas a indústrias ou a regiões politicamente sensíveis, na expectativa de que governadores e membros do Congresso pressionariam a Casa Branca para reverter o curso. O risco com Trump é que, em vez disso, ele possa escalar. Nesse caso, uma guerra comercial em grande escala seria mais prejudicial para a UE do que para os EUA, uma vez que o comércio representa uma parcela maior do PIB da Europa. Ainda assim, as economias de ambos os lados do Atlântico seriam atingidas.
A vulnerabilidade da Europa é evidente. Ela tenta resistir às pressões dos Estados Unidos, mas não dispõe mais do poder que teve até o começo da Segunda Guerra Mundial. Assim, as negociações do TTC servem para manter seu nível de importância para Washington, mas não servirão para restabelecer seu papel de uma potência como ainda as elites europeias imaginam que são.
Quais os resultados alcançados?
Conforme descrito, buscamos ressaltar as diferenças e os consensos entre os parceiros. Não foram encontradas informações adicionais que possam balizar uma resposta explícita a esta questão. Resta apenas reforçar as ideias que já foram discutidas.
(Arquivo) Donald Trump assina, na Casa Branca, em 23 jan. 2017, decreto que retira EUA do TPP, acordo assinado em out. 2015 por mais 11 países (Crédito: Ron Sachs/POOL/EPA)
Há poucos avanços concretos. Na melhor das hipóteses, há orientações e concertações. Vale lembrar que o governo Biden avançou nas negociações do TTC com “ordens executivas”, não com leis que foram aprovadas no Congresso. Logo, se Trump ganhar as eleições, os acordos podem ser revogados rapidamente, como já aconteceu no caso da Parceria Trans-Pacífico (TPP, sigla em inglês) e da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimentos (TTIP, sigla em inglês), quando o então presidente dos EUA impôs tarifas retaliatórias sobre o aço e o alumínio europeus. Outro fator a ser considerado é que o processo decisório da União Europeia é ainda mais complexo, pois os acordos fundamentais firmados pela Comissão Europeia necessitam da ratificação dos parlamentos de todos os países do bloco.
Alguns resultados podem se revelar importantes, ou ter relevância técnica genuína, conforme abaixo:
a) o objetivo de avançar na gestão da IA. Neste tópico, também está previsto estabelecer um “catálogo” sobre a investigação em IA, no que se refere à previsão de condições meteorológicas e climáticas extremas, gestão de resposta a emergências, melhorias na saúde e na medicina, optimização da rede energética e optimização da agricultura;
b) compatibilidade dos conectores físicos (plugues) e de uma interface de comunicação comum entre os veículos elétricos (EVs) e a rede para todos os níveis de potência;
c) Estados Unidos e União Europeia também concordaram em adotar um mecanismo para evitar corridas de subsídios em fábricas de semicondutores, incluindo uma eventual “recuperação de lucros excessivos” das empresas por meio de taxação;
d) as discussões sobre o caráter disruptivo da criptografia pós-quântica, notadamente nos temas relacionados à defesa e segurança;
c) nos Acordos de Reconhecimento Mútuo, EUA e UE expandiram iniciativas anteriores sobre equipamentos farmacêuticos e marítimos;
d) um plano de trabalho de transição verde que inclui a medição conjunta das emissões incorporadas e a transparência da cadeia de abastecimento. Neste caso, inclui-se uma medida que atinge diretamente a China, o Global Arrangement on Sustainable Steel and Aluminum;
e) o compromisso de ambas as partes de “consultar antes da introdução de controles de exportação sobre itens sensíveis” e “alinhar abordagens sempre que viável” sobre o futuro controle de investimentos no exterior;
f) quanto à conectividade e à infraestrutura digital, ambas as partes concordaram em procurar uma visão dos desenvolvimentos 6G e em acelerar a cooperação em vários países terceiros, bem como em selecionar “fornecedores de cabos submarinos de confiança”. Também discutiram a disseminação da tecnologia de OPEN RAM;
g) acordaram em criar mecanismos para as crianças nas plataformas digitais e para “estruturar o intercâmbio sobre manipulação e interferência de informações estrangeiras”;
h) UE e EUA assinaram um acordo administrativo sobre um plano de ação conjunto para produtos ciberseguros para promover a cooperação técnica e apoiar o reconhecimento mútuo na área dos requisitos de segurança cibernética para a Internet das coisas (IoT), como hardware e software de bens de consumo.
A questão central para os Estados Unidos – obter a anuência da União Europeia para isolar a China – não foi adiante, pois o bloco é bastante diverso. Enquanto países pequenos, como a Lituânia, podem se dar ao luxo de provocar a China, ou mesmo, como no caso da Itália sob o governo de extrema direita de Giorgia Meloni, de abandonar a Iniciativa Belt and Road (BRI, na sigla em inglês), os demais têm laços profundos com a economia chinesa. Adotar a posição americana seria como dar um tiro no próprio pé.
O debate continua. Como já anunciado, nos dias 4 e 5 de abril, a Bélgica hospedará a Sexta reunião ministerial do Conselho de Comércio e Tecnologia (TTC) UE-EUA, na cidade universitária de Leuven. Vamos ver como a apreensão sobre um possível retorno de Trump à Casa Branca irá impactar os debates. Nesse sentido, apostamos fortemente que nenhum grande acordo será concluído.
* Marcos Cordeiro Pires é coordenador do Latino Observatory, professor de Economia Política Internacional (Unesp-Marília) e pesquisador do Instituto Nacional de Estudos dos Estados Unidos (INCT-INEU). Contato: latinobservatory@latinobservatory.org.
Tatiana Teixeira é pesquisadora de Pós-Doutorado pelo INCT-INEU e editora do OPEU. Contato: tatianat19@hotmail.com.
* Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 24 mar. 2024. Este Panorama EUA não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora Tatiana Teixeira, no e-mail: tatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas Newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mail: tcarlotti@gmail.com.
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