Materialismo dialético se faz moderno ao passo que a luta de classes se acirra nos EUA
Crédito: noeltock/Flickr
Sobre a greve dos motoristas de aplicativo e a anomia da juventude
Por Débora Binatti* [Informe OPEU]
Em 14 de fevereiro de 2024, Dia de São Valentim – o Dia dos Namorados comemorado em muitos países no Norte Global –, motoristas dos aplicativos Uber, Lyft e DoorDash, entre outros, fizeram uma de suas maiores greves de todos os tempos. A motivação? Pressionar por salários mais justos e por direitos trabalhistas.
A greve se estendeu por 44 cidades estadunidenses, além de algumas cidades no Reino Unido, nas quais motoristas se recusaram a trabalhar. Em locais como Chicago, Newark e Filadélfia, esses profissionais se reuniram em aeroportos para protestar. Entre as afirmações feitas pelos motoristas durante a paralisação, foi dito que os aplicativos de transporte e de entrega de alimentos estão cobrando quantias desproporcionais de suas tarifas, prejudicando seu rendimento salarial. Vale ressaltar que o protesto aconteceu após a Uber anunciar uma recompra de ações no valor de US$ 7 bilhões. O evento foi noticiado em diversos veículos de comunicação, como Vox, Reuters, USA Today e AP.
A Uber, assim como as demais empresas que seguem o modelo estabelecido por ela, depende de trabalhadores autônomos sem vínculo direto com o empregador e sem um contrato trabalhista formal. Pode-se dizer, com outras palavras, que depende da precarização do trabalho. Contudo, com a deterioração das condições de trabalho e da remuneração fornecida, muitos desses trabalhadores informais estão se organizando e pressionando para se sindicalizar. Isso porque a sindicalização lhes daria a capacidade de negociar remuneração, medidas de segurança e outros direitos. Todavia, a Uber alega que não viu qualquer impacto da greve em suas operações.
Invocando os alemães do século XIX para compreender os estadunidenses
Luta de classes, o conceito cunhado por Karl Marx ainda no século XIX, em um cenário no qual motorista mais se referia a quem conduzia carruagens, e aplicativo de smartphone não seria imaginado sequer nas mais criativas peças de ficção científica, é o termo que melhor explica a relação entre a Uber e seus acionistas e os trabalhadores precarizados que atuam como motoristas da empresa. “A sociedade burguesa moderna que brotou das ruínas da sociedade feudal” – diz o autor em seu clássico texto panfletário O Manifesto do Partido Comunista, publicado em 1848 – “não aboliu os antagonismos de classe. Não fez mais do que estabelecer novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta em lugar das que existiram no passado”. Esse antagonismo de classe, como demonstram outros autores, entre os quais podemos citar o célebre companheiro de Marx, Friedrich Engels, se dá entre a classe que possui e domina os meios de produção e a classe que vende sua força de trabalho para a primeira.
Assim sendo, a relação entre a Uber e outros aplicativos com os trabalhadores em greve é simples: a Uber detém os meios de produção, enquanto os motoristas vendem sua força de trabalho para a empresa. Para que a Uber tenha capacidade de anunciar uma recompra de ações no valor de US$ 7 bilhões, é preciso que seus trabalhadores sejam precarizados, não tenham direitos trabalhistas reforçados e tenham o menor salário possível para aumentar os lucros da empresa. A situação é maquiada pelo discurso liberal de que o motorista é seu próprio chefe, o trabalho é flexível e o trabalhador sequer é um trabalhador, mas um colaborador da empresa. No fim, contudo, as relações de classe são as mesmas: o detentor dos meios de produção oprimindo quem vende sua força de trabalho.
É importante ressaltar que a dinâmica de classes afeta não apenas as relações de trabalho, mas também toda a estrutura do Estado. Como afirma a pesquisadora Aline Fardin (UFES), em seu artigo “Luta de classes e crise da democracia”, publicado em 2021, “o Estado burguês se constituiu a partir do processo de exploração do trabalho, da gradativa generalização da propriedade privada sobre os meios de produção, do trabalho assalariado e da conformação de classes sociais antagônicas. Este Estado, através de seus diversos regimes políticos, busca amenizar os conflitos de interesses entre as classes, aparentando uma unidade social e atuando coercitivamente sempre que necessário”.
No entanto, a conciliação de classe não está bastando, vide a insatisfação dos motoristas de aplicativo, sua tentativa de sindicalização crescente e o mal-estar civilizatório que se estende a partir dos conflitos de classe. Mal-estar esse que não se limita aos trabalhadores dos aplicativos de transporte de passageiros e de entrega de comida.
A anomia, tendo a classe como sua origem, é epidemia nos EUA
No dia 2 de fevereiro, o site Real Clear Politics noticiou, no artigo intitulado “A insatisfação dos jovens eleitores”, que, “há quatro anos, a Geração Z, ou seja, os nascidos de 1997 a 2012, bateu o recorde de comparecimento de jovens às urnas. Seu campeão? Joe Biden, então com 77 anos. Quatro anos depois, menos de 50% dos jovens de 18 a 29 anos planejam votar de fato, e apenas 33% da faixa etária aprova o desempenho do presidente Biden no cargo”. Embora tenha um enfoque muito cultural e pouco material, o artigo deixa duas coisas claras: primeiro, o cenário que os jovens americanos estão vivendo é desolador; segundo, o niilismo e a desesperança avançam entre a nova geração.
(Arquivo) “Lute pelo nosso futuro”, diz Geração Z nas ruas de Pittsburgh, Pensilvânia, em 24 set. 2021 (Crédito: Flickr/Mark Dixon)
O Real Clear Politics não é o único a reportar esse sentimento generalizado de insatisfação. O site Vox publicou, em 11 de fevereiro, o artigo “Por que o trabalho é tão miserável nos Estados Unidos?”, no qual uma especialista fala como a ética do trabalho vigente é contra os trabalhadores, o que dá origem às péssimas condições de trabalho. Já o jornal The Washington Post publicou, em 15 de fevereiro, o artigo “Como os americanos definem um estilo de vida de classe média – e por que não conseguem alcançá-lo”, que demonstra perfeitamente a deterioração da qualidade de vida do trabalhador estadunidense. Já em 18 de fevereiro, o site Axios demonstrou, assim como o Real Clear Politics já havia feito, de que forma esse sentimento está afetando a eleição dos EUA em “A eleição de 2024 é o ‘Dia da Marmota’ de ‘Feitiço no Tempo’ para jovens eleitores desiludidos”. Por fim, no dia 19 de fevereiro de 2024, The Washington Times indica o que já era esperado, em seu artigo “Os americanos não estão acreditando na ‘Bidenomia’”: o trabalhador estadunidense não está vivenciando a melhora na economia.
A resposta, novamente, está na luta de classes. Embora a empregabilidade tenha aumentado no governo Biden, as políticas públicas do Estado neoliberal não vieram para melhorar as condições de vida da classe trabalhadora, mas sim viabilizar que essa classe continue trabalhando mais e em condições piores para que as grandes empresas sigam acumulando capital.
Se a juventude estadunidense se sente perdida frente às eleições, é porque eles não percebem nos republicanos, e tampouco nos democratas, uma fonte de representação política de suas necessidades essenciais – isto é, necessidades de classe. Esse niilismo vivenciado pela classe trabalhadora jovem dos Estados Unidos, que cresceu em meio a episódios de tiroteios em escolas depois da crise de 2008 e se insere no mercado de trabalho com a chegada da pandemia da covid-19, é uma espécie de anomia originária do conflito de classes.
Embora, classicamente, em sua obra O suicídio (1897), Durkheim sintetize a anomia como o sentimento de insatisfação e desolação em decorrência da quebra dos princípios e estruturas antigas que mantinham a coesão social, é possível descrever esse processo vivenciado como uma forma de anomia causada pelo conflito de classes. A sociedade estadunidense vivia sob uma ética e sob princípios do neoliberalismo, que mantinham a coesão social do país, mas o acirramento do conflito de classes deixa evidentes os limites do neoliberalismo e o descaso com a classe trabalhadora. É uma ruptura com as regras que regem os indivíduos.
Agora, cabe ao futuro descobrir se essa anomia levará à revolta e à rebelião, a partir da disputa de classes, ou se caberá à juventude dos Estados Unidos sucumbir ao suicídio anômico.
* Débora Magalhães Binatti é graduanda em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora de iniciação científica do INCT-INEU e do INANA. Contato: dmfcbinatti@gmail.com. Twitter: @debs_binatti. Instagram: @debs_binatti.
** Primeira revisão: Simone Gondim. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Segunda revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 26 fev. 2024. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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