China e Rússia

CSIS e a Rota da Seda Marítima: a criação da narrativa como ferramenta de política externa

Sede do Center for Strategic and International Studies (CSIS), em Washington, D.C. (Crédito: Creative Commons)

Por Gabriel Antônio Barboza Ferreira* [Informe OPEU]

Um dos principais pilares da estratégia chinesa para renegociar a ordem internacional sob seus próprios termos é a iniciativa da Rota de Seda Marítima, iniciada em 2013, com o objetivo de conectar a China com múltiplos polos comerciais ao redor do mundo, por meio de numerosas rotas marítimas e maciços investimentos em infraestrutura portuária. No total, o projeto soma 92 portos estrangeiros com recursos chineses ativos, sendo 13 deles com propriedade majoritária chinesa. A região de maior interesse para a alocação do capital do gigante asiático parece ser o oceano Indo-Pacífico, localidade que já tinha grande importância na dinâmica do comércio internacional, importância esta alavancada pelo empreendimento chinês.

Mesmo o Partido Comunista Chinês (PCC) alegando que as intenções desse ambicioso projeto são reforçar os laços comerciais e econômicos dos países ao redor do mundo, as principais potências da “velha” ordem internacional desconfiam das motivações de Xi Jinping. Ao longo dos últimos anos de desenvolvimento da Rota de Seda Marítima, os grupos de pesquisa aplicadas – ou think tanks – dos Estados Unidos não mediram esforços na construção de uma narrativa de exposição, crítica e denúncia do potencial bélico da investida marítima chinesa. Desse modo, o objetivo deste texto é identificar de que maneira o o Center for Strategic and International Studies (CSIS), um dos principais think tanks do mundo, acompanha e narra o desenvolvimento da empreitada chinesa.

A Rota da Seda Marítima sob o olhar do CSIS

Logo em seu primeiro relatório sobre o tema, “China’s Maritime Silk Road Iniciativa: Economic Drivers and Challenges”, de Matthew Funaiole e Jonathan Hillman, publicado em abril de 2018, o CSIS anuncia sua inquietação com o possível uso dos portos integrados ao projeto chinês para fins militares e estratégicos, tendo em vista a crescente preocupação da China para com sua segurança e presença marítima. De modo a sustentar sua tese, Funaiole e Hillman destacam o fato de que grande parte dos recursos chineses se destina a portos na região indo-pacífica, região esta que, para além de sua relevância nas rotas comerciais do comércio global como um todo, é palco de alguns dos principais conflitos marítimos que o país asiático está, de alguma maneira, envolvido – a citar, a constante tensão entre a China continental e a ilha de Taiwan.

O think tank norte-americano ainda especifica quais portos são alvo dos críticos da Rota da Seda Marítima, em razão de seu potencial bélico. Entre esses estão Gwandar, no Paquistão; Hambantota, no Sri Lanka; e Kyaukpyu, em Mianmar. Na seção final do texto, o diagnóstico dos autores conclui que o investimento chinês nas três infraestruturas citadas não será recompensado em termos comerciais, dando pistas de que os interesses do Partido Comunista Chinês não se resumem ao desejo de um mercado global integrado.

Evento “China’s Maritime Silk Road: Strategic and Economic Implications for the Indo-Pacific Region”, no CSIS, em 12 abr. 2018 (Fonte: canal do CSIS no YouTube)

Em outro texto, “China’s Maritime Silk Road: Strategic and Economic Implications for the Indo-Pacif Region”, o CSIS, por meio da análise de sete especialistas, deixa claras suas preocupações com o uso estratégico militar das bases incluídas no projeto chinês no oceano Indo-Pacífico. Em determinada parte do texto, Gurmeet Kanwa – um dos responsáveis pelo relatório – chega a avaliar, em sutil tom de conselho, o potencial de uma resposta articulada entre Índia, Japão Austrália e Estados Unidos para conter um suposto perigo resultante da presença chinesa na região.

Os think tanks como vetores da política externa dos EUA

Think Tanks e a Sua Influencia na Politica Externa dos Eua, os - 1 | Amazon.com.brAqui, é válido tomarmos algum tempo para analisar um comportamento característico dos think tanks, em especial os presentes nos EUA, expresso na sugestão de Kanwa. Em seu denso trabalho “Os think tanks e sua influência na Política Externa dos EUA” (Editora Revan, 2007) sobre o processo de atuação dessas instituições, Tatiana Teixeira identifica que a premissa da produção livre de ideias mascara o real poder (intenção e propósito) dos think tanks: a produção de narrativas, que orientam o desenho da ação política dos órgãos de Estado. Essa habilidade, segundo a autora, à página 85 do referido texto, reside em sua capacidade de “construir, por meio da coerção pela razão, uma cadeia simbólica que explica uma dada realidade, formulando verdades que, associadas a certos mecanismos e fatores de poder, justificam todo um projeto”.

O tom de recomendação presente – ora mais evidente, ora mais disperso – nas publicações dessas organizações não apenas orienta, como legitima quase que moralmente a ação ofensiva da Casa Branca. No caso em questão, a justificativa para uma intervenção norte-americana já se encontra fundamentada sob a defesa contra um perigo eminente: a China. Não por acaso, o texto encerra reforçando a orientação para que Estados Unidos, Austrália, Japão e Índia articulem uma resposta para as “inseguranças trazidas pela Rota da Seda Marítima”.

Ao analisar sob quais condições se dá a expansão militar chinesa no oceano Índico, o pesquisador de Assuntos Asiáticos na organização e autor de “Security Implications of China’s Military Presence in te Indian Ocean”, Zack Cooper, associa diretamente o militarismo chinês ostensivo na região com a crescente atividade marítima comercial chinesa, deixando claro que o diagnóstico geral do Center for Strategic and Internacional Studies sobre a Rota da Seda Marítima sublinha o potencial bélico do empreendimento chinês. A associação feita por Cooper demonstra a capacidade de construção simbólica e lógica dos think tanks, como bem identificou Teixeira. Seguindo o tom de advertência do texto, Cooper conclui que a movimentação chinesa na região, mesmo quando para fins comerciais, deve ser cautelosamente acompanhada.

Zack Cooper (@ZackCooper) / X

Zack Cooper (Fonte: X)

O que pode parecer, em um primeiro momento, um texto de caráter avaliativo, revela-se um perigoso instrumento ideológico, capaz de construir símbolos e representações da realidade que legitimem a ação política dos Estados Unidos na defesa de seus interesses. A constelação de textos analisada é capaz de atribuir ao empreendimento chinês um sentido simbólico distinto do objetivo comercial declarado pelo Partido Comunista Chinês: o interesse da maior potência da Ásia seria o de garantir a expansão da presença de sua Marinha ao redor do mundo, em especial no oceano Indo-Pacífico. Uma vez consolidada, a narrativa construída pelo think tank norte-americano possibilita e legitima a ação de Washington na defesa de seus interesses e na preservação de sua hegemonia.

De qualquer maneira, a China realmente se posta como uma ameaça aos Estados Unidos: seja pelas razões advogadas pelo CSIS, seja por sua iniciativa de contestação da ordem internacional vigente, ao integrar o mundo de maneira menos desigual. Sendo a função do pensamento científico crítico diferenciar a forma e o conteúdo do objeto de estudo, a pesquisa de Tatiana Teixeira é de grande ajuda no processo de expor os reais interesses políticos por trás das análises e avaliações dos think tanks.

 

* Gabriel Antônio Barboza Ferreira é graduando em Relações Internacionais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e bolsista de IC do INCT-INEU, orientado pelo prof. Williams Gonçalves (Uerj/INCT-INEU). Contato: gbuerjri@gmail.com.

** Primeira revisão de conteúdo: prof. Williams Gonçalves. Revisão e edição finais: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 7 mar. 2024. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora Tatiana Teixeira, no e-mailtatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas Newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mailtcarlotti@gmail.com.

 

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