Política Externa dos EUA para a América Latina: uma avaliação preliminar dos anos Biden
Fonte da imagem: Wilson Center
Por Matheus de Oliveira Pereira* [Informe OPEU]
A eleição de Joe Biden em 2020 desencadeou grandes expectativas sobre a nova direção da política externa dos Estados Unidos. Sob o mote “America is back”, a agenda proposta pela campanha democrata reunia um conjunto de metas ambiciosas que tinham como ponto central a restauração da posição norte-americana como líder da ordem global, seguindo o diagnóstico de que esta posição havia sido seriamente comprometida pelos movimentos erráticos da gestão de Donald Trump. A ideia de um “retorno” simbolizava, assim, a reafirmação do liberal-internacionalismo como princípio orientador da atuação externa dos EUA e se traduzia na busca por recompor os laços com aliados estratégicos, especialmente na Europa, e na revitalização do compromisso com o multilateralismo.
Embora estivesse claro que a América Latina não era o foco de nenhuma dessas promessas, a região acolheu-as com entusiasmo. Depois de quatro anos traumáticos em que, sob a presidência de Donald Trump, a América Latina foi alvo de uma escalada retórica que recuperava sem disfarces uma postura imperial típica do início do século XX, a eleição de um político tarimbado e que acumulava muitos anos de experiência pessoal na região ensejava uma série de prognósticos positivos. De fato, diversos analistas antecipavam que a vitória de Biden representaria uma mudança significativa de “tom e substância” na política externa para a região e que Biden poderia “inspirar” a América Latina, ao adotar uma posição de firme defesa da democracia, dos direitos humanos e do enfrentamento das mudanças climáticas. Mesmo uma leitura mais moderada do otimismo então reinante indicava que a América Latina seria o “melhor e mais natural” lugar para iniciar uma transformação mais ampla da política externa norte-americana.
À medida que entramos no quarto e (talvez) último ano do governo Biden, está claro que as iniciativas dirigidas à América Latina ficaram muito aquém dos prognósticos mais otimistas. O aspecto mais notável dessa situação é a falta de uma estratégia clara, coesa e bem articulada que defina e interligue interesses e métodos de ação na região. Enquanto o Oriente Médio e a região Indo-Pacífica recebem abordagens estratégicas bem delineadas, e o debate sobre o envolvimento na África e na Europa é controverso, mas vivo e persistente, a política externa para a América Latina, na definição de um analista, não passa de “um amálgama de tentativas esporádicas de engajamento”. Shannon O’Neil, do Council on Foreign Relations, por sua vez, sintetiza as frustrações em relação à política externa para a América Latina, ao descrevê-la como uma “oportunidade perdida”.
Importa registrar que esses diagnósticos não ficam restritos a círculos críticos do governo na academia ou no Congresso, mas têm se tornando frequente inclusive entre correligionários do presidente. Um dentre vários exemplos é o do senador Tim Kaine (D-VA), líder do Subcomitê do Senado para Assuntos do Hemisfério Ocidental. Em outubro de 2023, Kaine afirmava ter dificuldades em ver ações “de peso” realizadas pelo governo Biden na América Latina. Posteriormente, o senador chegou a escrever uma carta aberta em que demandava um engajamento mais incisivo com a região. Posicionamentos similares são facilmente encontrados em congressistas dos dois partidos e foram amplamente difundidos nas atividades dos comitês temáticos da Câmara e Senado.
(Arquivo) Senador Tim Kaine, em evento na Chatam House, em Londres, em 24 fev. 2017 (Crédito: Chatam House)
Uma ilustração eloquente do quadro atual das relações interamericanas é a imagem oficial da primeira reunião da Americas Partnership for Economic Prosperity (APEP). Apresentada na Cúpula das Américas de 2021 como a principal iniciativa econômica para a região, a APEP é descrita como um tipo “novo de arranjo econômico” baseado na cooperação em setores estratégicos, como energia e desenvolvimento sustentável, que visa a reforçar a integração econômica do hemisfério. Os objetivos ambiciosos da APEP esbarram, porém, em um desenho institucional limitado e, mais grave, no fato de que a parceria reúne, por ora, apenas 12 países, e não conta com a participação de algumas das maiores economias da região, como Brasil e Argentina.
É certo que, à luz do histórico recente, as expectativas de que a América Latina fosse objeto de uma estratégia nos mesmos moldes e densidade daquelas formuladas para Ásia e Europa eram pouco críveis. Contudo, um exame de temas-chave, como migração, relações com Cuba e cooperação econômica, revela que as iniciativas do governo Biden não apenas introduziram mudanças aquém do esperado, como também falharam significativamente em engajar os governos latino-americanos.
Tensões e limites de ação do governo Biden
Esses limites são ilustrativos não apenas das características conjunturais das relações interamericanas, mas refletem também duas tensões que atravessam a política externa do governo Biden de modo mais abrangente. A primeira diz respeito às contradições e aos limites práticos da estratégia de contenção da China, enquanto a segunda se refere aos reflexos da polarização interna sobre questões de forte apelo doméstico.
Cuba
Começando pelo segundo ponto, o que se observa é que alguns dos temas centrais para as relações interamericanas – a política migratória e as relações Cuba e Venezuela – estão crescentemente envolvidos nas disputas político-partidárias internas dos Estados Unidos. O fato em si, especialmente no caso de Cuba, não é particularmente novo, mas uma sucessão de resultados eleitorais desfavoráveis elevou o custo político de manutenção das promessas de campanha de Biden. As eleições de 2020 e de 2022 foram marcadas por importantes vitórias republicanas na Flórida, tradicional reduto da comunidade cubano-americana, que aumentaram as margens obtidas pelos republicanos em outros pleitos, contribuindo decisivamente para consolidar o domínio do partido no estado.
Este cenário explica em boa medida o caráter tardio e incompleto dos esforços de reversão das medidas draconianas impostas durante o governo Trump, que efetivamente interromperam o processo de “normalização” iniciado sob Obama. Apesar dos avanços, como a retomada do programa de reunificação familiar e a expansão de serviços consulares, o governo Biden não apenas deu continuidade às sanções financeiras como manteve Cuba na lista de países apoiadores do terrorismo.
Essas ações impõem significativas dificuldades ao setor privado cubano, contradizendo as declarações de que o objetivo do governo Biden seria “empoderar” o povo cubano e fomentar o empreendedorismo na ilha. Conforme destacado por Eric Hershberg, a alegação de que as sanções se justificam, devido ao aumento das violações dos direitos humanos em Cuba não se sustenta, especialmente porque não houve mudanças nessas sanções antes dos protestos de julho de 2021.
Migração
As relações com Cuba e, também com a Venezuela, sobrepõem-se, ainda, à política migratória, outro ponto contencioso da política estadunidense atual. Biden foi eleito sob promessas de reverter as medidas de Trump, como a interrupção dos processamentos de green cards e o polêmico muro na fronteira com o México, mas muitas de suas tentativas esbarraram na oposição legislativa. Nos últimos meses, as pressões para adoção de uma política mais restritiva têm crescido em meio à crise sem precedentes na fronteira sul do país. Dados da autoridade migratória dos Estados Unidos mostram que, somente em dezembro de 2023, 302.000 pessoas foram presas ou expulsas ao tentarem entrar ilegalmente no país, sendo a fronteira sul responsável por 84% deste número.
Além de ser extensamente politizado pela oposição republicana, a situação da fronteira sul tem criado divisões entre os democratas ao se sobrepor com a questão das sanções aplicadas à Cuba e Venezuela. Por um lado, a ala mais progressista do partido entende que o aumento nos fluxos de migrantes venezuelanos e cubanos se deve ao agravamento da situação econômica desses países, que, mesmo com o relaxamento de algumas medidas, ainda são alvo de extensos pacotes de sanções dos EUA. Por outro, figuras proeminentes do partido, como o senador Robert Menendez (D-NJ), presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, criticam o governo Biden por sua postura considerada indulgente com Havana e Caracas.
A divisão política e a sobreposição entre a agenda doméstica e a política externa não são tão marcantes quando se trata da política hemisférica em termos mais amplos. De fato, neste aspecto, a administração Biden enfrenta críticas de todo o espectro político representado no Legislativo, em particular no que diz respeito às respostas formuladas em reação à presença chinesa na região.
China na AL
Em março de 2023, uma audiência no Comitê de Relações Exteriores do Senado convocou o subsecretário de Estado para o Hemisfério Ocidental, Brian Nichols, para discutir o estado das relações entre Estados Unidos e Brasil. Embora o contexto da audiência envolvesse as repercussões da tentativa de golpe em 8/1 e a preparação para a visita de uma delegação parlamentar ao Brasil, questões relacionadas à China foram frequentemente levantadas. Em um desses momentos, o senador Benjamin Cardin – democrata de Delaware (D-DE) – travou com Nichols um diálogo que exprime com clareza os termos em que a questão estava posta.
(Arquivo) Subsecretário Nichols na ONU, Nova York, em 22 set. 2023 (Crédito: Departamento de Estado)
O senador Cardin questionou o subsecretário acerca da estratégia dos EUA para diminuir a influência da China no Brasil. Em sua resposta, Nichols declarou que os EUA seguem uma estratégia que ele chamou de “investir – alinhar – competir”, que visa a promover investimentos nos Estados Unidos, alinhar políticas com aliados e competir – denunciando o caráter predatório das ofertas chinesas. Nichols foi interrompido pelo senador Cardin, que expressou ceticismo em relação à abordagem, ressaltando que, na ausência de alternativas viáveis, a China muitas vezes se torna a única opção para atender às necessidades, sobretudo de financiamento, da região.
A posição do congressista foi clara ao afirmar que mostrar os supostos vícios das relações com a China não é o bastante para se constituir como alternativa. Neste sentido, a posição que defende uma abordagem mais agressiva, que dispute espaços com meios similares aos empregados pelos chineses, é cada vez mais frequente, resultando inclusive em propostas legislativas, como a apresentada pelo senador Bill Cassidy (R-LA) e pela representante (deputada) Maria Elvira Salazar (R-FL), para a criação da “Americas Trade and Investment Act”.
Fazer frente à China em termos econômicos, de maneira sistemática, é uma agenda complexa que esbarra em uma série de obstáculos. Em primeiro lugar, ela demarcaria uma mudança significativa nas tendências que a política externa para a América Latina vem seguindo desde o início do século XXI. O fracasso da Área de Livre-Comércio das Américas (Alca), somado à crise do neoliberalismo na região e às implicações do 11 de Setembro, consolidaram uma agenda que deixou de lado grandes iniciativas hemisféricas de caráter econômico. Importa registrar que esta tendência não permite caracterizar a posição dos Estados Unidos como negligente, ausente ou retraída. O que se observa desde o início dos anos 2000 é, na verdade, a predominância de uma estratégia ancorada, antes, na dimensão securitária/militar do que econômica, que se expressa em uma agenda focada em temas como o combate ao tráfico de drogas e ao terrorismo, e na reativação do Comando Sul, deixando a negociação de acordos econômicos para o âmbito das relações bilaterais.
O fato de a presença chinesa ser, sobretudo, em termos comerciais e financeiros limitou seu reconhecimento como ameaça durante os governos W. Bush e Obama, mas esta é uma tendência em mudança. Um projeto de lei enviado ao Congresso pelos senadores Marco Rubio (R-FL) e Robert Menendez (D-NJ) introduz a “Western Hemisphere Security Strategy Act of 2022”, cujo preâmbulo enfatiza a “influência nociva maligna” de Rússia e China sobre a América Latina. A proposta vai ao encontro das preocupações expressas pelo almirante Craig Faller, ex-comandante do SOUTHCOM. Em depoimento no Senado, em 2021, o almirante Faller afirmou que o hemisfério estava “sob assalto”, com os EUA perdendo sua posição de vantagem pela ação da China, que, em suas palavras, em muito transcende a economia.
(Arquivo) Senador Menendez, em 4 nov. 2010 (Fonte: Local Initiatives)
A despeito dessas posições, o fato é que, por ora, o apelo chinês na América Latina segue sendo principalmente econômico. A China é o segundo maior parceiro comercial da região, com um volume de comércio de aproximadamente US$ 500 bilhões em 2022, um salto de 3.500% em 20 anos, segundo dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). O investimento chinês na América Latina corresponde a 9% do total investido na região, e Pequim já dispendeu mais de US$ 130 bilhões em empréstimos governamentais. Em termos militares, contudo, a presença é limitada e fortemente concentrada em países como Venezuela e Cuba, países cujas fricções com os Estados Unidos antecedem a ascensão chinesa na região.
Legado Biden
Articular uma resposta organizada no front econômico significa não apenas ir na contramão da tendência dos últimos 20 anos, como tensiona alguns aspectos fundamentais da estratégia que vem norteando o governo Biden. Aqui, deve-se observar uma contradição cada vez mais nítida entre a promessa de retorno do liberal-internacionalismo e a continuidade de uma série de políticas da era Trump. Uma das razões pelas quais a proposta da APEP gerou um apelo tão limitado – além do volume de recursos disponíveis – é a decisão do governo Biden de excluir do acordo o acesso a mercados, eliminando o ponto crítico não apenas para atrair outros países para a parceria como também para barganhar concessões e compromissos em outras áreas relevantes.
A administração democrata parece nutrir a expectativa de que o amálgama das relações interamericanas deve ser a defesa da democracia e dos demais valores historicamente associados aos Estados Unidos, restando ao setor privado a tarefa de dinamizar as relações econômicas, e tirando da mesa de negociação a possibilidade de tratamento recíproco. Seja por húbris ou miopia, ao se posicionar desta forma, o governo Biden desnuda contradições fundamentais de sua agenda, limita decisivamente a capacidade de reação à China na região e deixa como legado nas relações interamericanas o reforço da antiga lição de que boas intenções não são suficientes.
* Matheus de Oliveira Pereira é doutor em Relações Internacionais (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisador de Pós-Doutorado do INCT-INEU. Contato: matheus.o.pereira@unesp.br.
** Revisão e edição finais: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 7 mar. 2024. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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