EUA ‘versus’ TikTok: a mão visível do mercado na competição com a China
Crédito: Salarko/Dreamstime
Por Edna Aparecida da Silva* [Informe OPEU]
A Câmara de Representantes dos Estados Unidos aprovou, na quarta-feira, 13 de março, com expressiva maioria de votos (352 contra 65), o projeto de lei que exige o desinvestimento da empresa chinesa Bytedance do controle do aplicativo TikTok, o que deverá ocorrer em seis meses, para evitar seu banimento. Agora, o projeto segue para o Senado, onde, em face do consenso bipartidário sobre as políticas dos EUA em relação à competição chinesa, deve ser aprovado, mesmo que com menor vantagem.
Um dia depois, em entrevista ao programa “Squawk Box” da rede CNBC, Steve Mnuchin, secretário do Tesouro no governo de Donald Trump, declarou que está organizando um grupo de investidores, por meio da Liberty Strategic Capital, para comprar o TikTok. Ele afirmou, sem rodeios, que um negócio de tecnologia da natureza do TikTok “não pode” estar na mão de uma empresa que não seja dos EUA e que precisa ser remodelado para usar uma tecnologia dos EUA. A ênfase das respostas foi justificada com duas observações: primeiro, nenhuma empresa como o TikTok poderia atuar na China; e, segundo, a venda para empresa nos EUA é uma “ordem do CFIUS” que deve ser cumprida.
‘Ordem do CFIUS’: charge de Steve Mnuchin adaptada de foto da FEMA em domínio público (Crédito: Donkey Hotey/Flickr)
Em 2020, o governo Trump tentou banir o app por meio de uma Ordem Executiva que exigia o desinvestimento em 90 dias. A Bytedance recorreu à Justiça e negociou um acordo com o Comitê de Investimento Estrangeiro dos Estados Unidos (CFIUS, na sigla em inglês), o comitê interagências do Executivo que analisa investimentos estrangeiros com implicações de segurança nacional. Com isso, o TikTok atendeu a exigência de que os dados dos usuários norte-americanos fossem armazenados em uma nuvem da Oracle, como medida de mitigação dos riscos. Depois, em 2021, o presidente Joe Biden suspendeu a ordem executiva de Trump contra TikTok e WeChat, mas reiterou a exigência de que os departamentos e agências que compõem o CFIUS produzissem “um relatório ao assistente do presidente e ao conselheiro de Segurança Nacional com recomendações para a proteção contra danos decorrentes da venda, da transferência, ou do acesso irrestrito a dados confidenciais de pessoas dos Estados Unidos”.
Agora, as pressões para o banimento do TikTok voltaram a ser colocadas em debate por membros do Congresso, ativistas conservadores e investidores em tecnologia sob a acusação de um viés pró-Palestina do aplicativo, já que seus conteúdos mais populares estariam minando o apoio a Israel entre os jovens norte-americanos. Essa alegação, contestada pelo app, é que o conteúdo pró-Palestina compromete os interesses da política externa dos Estados Unidos. Seria, então, uma nova justificativa para a retomada dessa posição mais radical dos congressistas em relação ao app, apesar das tensões que podem se desdobrar desse ultimato.
A vantagem do superalgoritmo
A preocupação tem fundamento, já que se trata da plataforma de mídia social mais popular do mundo, que, somente nos EUA, tem 170 milhões de usuários. Nos Estados Unidos, os usuários do app chinês são jovens com menos de 30 anos, concentrados na faixa de 10-19 anos (32,5%) e de 20-29 anos (29,5%). Importante observar, como mostrou a análise de Shoshana Zuboff no livro A era do capitalismo de vigilância (Editora Intrínseca, 2021), que as mídias sociais competem pelo número de usuários. Uma variável fundamental é a capacidade de mantê-los conectados, já que o negócio envolve venda de publicidade, exibição de anúncios e compras no aplicativo.
Com seu superalgoritmo, o TikTok é capaz de oferecer o conteúdo que agrada ao usuário, um feed único, personalizado, produzido com base em análise de métricas como: tempo de interação, informação dos vídeos, localização, linguagem e cliques em like (curti) e not interested (não tenho interesse). A eficiência do algoritmo de recomendações que o app chinês utiliza, e que explica seu alcance e influência, é um dos desafios para seus concorrentes, como a Meta, de Mark Zuckerberg, proprietária, do Facebook e do Instagram.
Quanto ao projeto de lei, embora o noticiário do dia tenha destacado o banimento do app, o que se pretende, na verdade, é forçar a transferência do controle do aplicativo para empresas dos Estados Unidos – seus concorrentes na disputa pelo mercado de mídias sociais. Em outras palavras: querem obrigar a venda da empresa para norte-americanos. Isso foi enfatizado pelo representante (deputado) republicano Mark Gallagher (R-WI), presidente do Comitê sobre a China, ao esclarecer que não se trata de proibição, mas: “Isso coloca diretamente nas mãos do TikTok a escolha de romper seu relacionamento com o Partido Comunista Chinês. Enquanto a ByteDance não for mais dona da empresa, o TikTok poderá continuar a sobreviver… A estrutura básica de propriedade precisa mudar”.
Em entrevista à emissora CNN em Beijing, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Wang Wenbing, classificou essa tentativa de banir o app dos EUA, sem base em evidências, como um “ato de bullying” que pode minar a confiança dos investidores e “sabotar a ordem econômica global”.
A falácia da segurança
Os argumentos de segurança nacional, no projeto de lei aprovado e em dezenas de outros que vêm sendo apresentados no Congresso desde 2018, enfatizam que a ByteDance, com matriz em Beijing, está sob o alcance da Lei de Segurança Nacional chinesa, que poderia exigir o acesso aos dados – embora tanto a empresa quanto o governo chinês neguem, repetidamente, qualquer demanda de dados privados. Esse é o ponto crucial do embate com o app: a dimensão geopolítica das tensões entre os EUA e China. Por esse motivo, não se estende às demais mídias sociais, como Facebook e Instagram, como se pretende contra-argumentar, quando a discussão se desloca para o tema da proteção do direito de privacidade de dados dos cidadãos.
Um argumento forte no debate tem sido a defesa da liberdade de expressão, em nome dos usuários da plataforma. O foco nos direitos dos usuários, lembrando sua importância para os produtores que monetizam seu conteúdo on-line, ou pequenos negócios, foi mobilizado pelo TikTok, que pediu aos usuários que telefonassem para seus representantes (deputados) em defesa da plataforma.
Muitos estados e órgãos da administração federal nos EUA já proibiram a instalação do app nos telefones e computadores oficiais. Essa medida foi adotada por outros países, como Reino Unido, Canadá, Austrália, França, Bélgica, Holanda, Dinamarca e Nova Zelândia, assim como pelo braço executivo da União Europeia, que desinstalaram e baniram o uso do app nos dispositivos oficiais. Nestes casos, alegou-se medida de precaução. Outros países também proibiram o TikTok, como Índia em 2020, por razões de privacidade e cibersegurança, e Afeganistão, em 2022, por veicularem conteúdos contrários às leis islâmicas, com impacto sobre as novas gerações.
Nos EUA, o consenso bipartidário na Câmara de Representantes e no Senado quanto à percepção de que a China e as empresas chinesas com capacidade competitiva representam uma ameaça aos interesses econômicos e de segurança nacional vem escalando as tensões e a rivalidade geopolítica com o país asiático desde o governo de Donald Trump, com ações de guerra comercial e restrições nos setores de tecnologia, afetando empresas como Huawei e ByteDance.
Representante Mike Gallagher (Crédito: Kaz Sasahara/Lancer Photography)
Ou seja, nos EUA, o TikTok está sob pressão porque o app é considerado um potencial instrumento de espionagem do Partido Comunista Chinês (PCCh), ou para produzir dados de Inteligência. Isso porque o algoritmo do aplicativo coleta e armazena grandes volumes de dados privados, com identificação de face e voz, de milhares de norte-americanos e “de usuários ocidentais”, o que permitiria – assim afirma o governo americano – influenciar e/ou manipular informações que são acessadas pelos usuários, promovendo narrativas pró-China, ou desinformação. Ou seja: o TikTok pode fazer o mesmo que outras plataformas fazem, por exemplo, como agiram contra a regulamentação das mídias sociais no Brasil.
A mão do mercado
Em resumo, o argumento de que a privacidade de dados e a cibersegurança estão em risco é muito frágil, e falacioso. Além disso, até o momento não foram apresentados casos concretos para legitimar o banimento do app, já que a alegada tecnologia pervasiva é um traço comum a todas as mídias sociais.
A questão importante, que é objeto de preocupação dos congressistas e senadores, é a presença do TikTok no mercado de mídia social nos EUA, e em clara posição de vantagem sobre as empresas concorrentes em nível global. Isto mostra que as pressões para banir o app dos mercados, ou forçar desinvestimento por meio da venda de ações, dizem respeito à atuação do Estado na política de competição e da rivalidade geopolítica entre EUA e China.
É, claramente, a mão visível do mercado. Com base nos argumentos de segurança por parte do Congresso ou por concorrentes no mercado doméstico, o CFIUS atua produzindo recomendação para justificar as restrições, ou a exclusão da participação de empresas estrangeiras nos setores sensíveis e/ou estratégicos. Nos EUA, desde 2018, após a aprovação da Foreign Investment Risk Review Modernization Act (FIRRMA), o setor de tecnologia, informação e dados foi indexado nos setores-alvo das regulações de segurança nacional, que pode proibir ou exigir o desinvestimento.
Porta-voz Wang Wenbin (Crédito: Ministério chinês das Relações Exteriores, mfa.gov.cn)
Nesse caso, a tentativa de transferir o controle da empresa para seus concorrentes, muito mais do que banir o app, parece ser a aposta mais realista para interpretar a aprovação deste projeto de lei. A declaração de Mnuchin, que atuou no governo Trump para forçar a venda do TikTok, abre, assim, a discussão para a mobilização de investidores e grupos domésticos sobre quem vai abocanhar a posição de mercado da ByteDance.
Mas é preciso levar em conta, também, o cenário eleitoral e as críticas ao apoio dos EUA às guerras, em particular, à violência de Israel contra a população civil palestina. Esse é um contexto que reforça a ênfase ao sentimento anti-China entre os eleitores norte-americanos, apesar das resistências e das queixas dos usuários que utilizam a plataforma para pequenos negócios e conteúdos monetizados. Em ano eleitoral, a métrica das posições parece ser a do cálculo doméstico.
Enquanto o projeto aguarda a votação no Senado, o presidente Joe Biden declarou que assinará o banimento, se for aprovado. O porta-voz Wang Wenbing reagiu com um alerta: “Acabará saindo pela culatra para os próprios EUA”. Ele parece, então, lembrar do princípio da reciprocidade.
* Edna Aparecida da Silva é doutora em Ciência Política pela UNICAMP, professora substituta no curso de Relações Internacionais da FFC/UNESP e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). Também é autora do capítulo “Investimento e segurança no governo Trump: CFIUS e a proteção da inovação como política de segurança nacional” no livro A economia política do governo Trump (Editora Appris, 2021). Contato: ednasilva@uol.com.br e edna.silva@unesp.br.
** Revisão e edição finais: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 13 mar. 2024. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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