Setor de Defesa dos EUA e a lacuna racial presente há mais de 150 anos
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Spc. Shykeen McClellan, um soldado do 5º Esquadrão, 73º Regimento do Calvário, 3ª Brigada de Combate, 82ª Divisão Aerotransportada, recebe treinamento de novos equipamentos (NET) durante o teste operacional aerotransportado da Família de Armas Sights-Individual (FWS-I), em 6 abr. 2018 (Crédito: Chris O’Leary, Diretoria de Testes Aerotransportados e de Operações Especiais, Comando de Testes Operacionais do Exército dos EUA)
Série pelo Black History Month
Por Yasmim Abril M. Reis* [Informe OPEU]
O racismo estrutural na sociedade estadunidense não é algo novo. Em outras palavras, o racismo existente nos Estados Unidos não se restringe ao campo da desigualdade econômica, sendo, portanto, transbordado para os diferentes setores da sociedade. Em vista disso, quando observado o campo das Forças Armadas do país, bem como temas ligados à raça e à política externa, é possível constatar, de uma perspectiva histórica, que a segregação racial também se faz presente nesse âmbito.
É pertinente destacar a formação histórica dos Estados Unidos, sobretudo, o caso da Guerra Civil (1861-1865), para compreensão das questões raciais no campo das relações internacionais do país. Visto isso, sublinha-se que o país é oriundo de uma “biformação” territorial, uma vez que havia a divisão política e econômica entre os estados do norte e do sul. Os estados do norte eram vistos como desenvolvidos economicamente e contra a escravidão, enquanto os estados do sul eram considerados escravocratas e racistas. Cabe aqui uma observação sobre as ponderações históricas dos estados do norte: mesmo contrários à escravidão, utilizavam-se dessa mão de obra para o desenvolvimento econômico da região, o que já demonstra um mito sobre o combate à segregação racial.
(Arquivo) Arlington, Virgínia. Banda da 107ª Infantaria Colorida dos EUA no Forte Corcoran, 1865 (Fonte: Library of Congress)
Além disso, sublinha-se que, após a Guerra Civil, muitos afro-americanos identificaram o alistamento militar como uma forma de romper o preconceito e melhorar sua condição de trabalho. Como relata o historiador Vitor Izecksohn, do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS/UFRJ), na pesquisa “O recrutamento de negros nas tropas da União durante a Guerra Civil Americana”, “muitos afro-americanos reconheceram as oportunidades oferecidas pela guerra, a despeito do preconceito e das condições de serviço. A guerra forneceu uma plataforma valiosa para combater décadas de preconceito racial, elevando novas expectativas, oportunidades e uma consciência entre os negros do Norte e do Sul que serviram nas fileiras do exército da União”.
Ademais, enfatiza-se aqui que o contraste do alistamento nos EUA desde o século XIX foi um importante ponto para o início das reformas sociais promovidas no Sul, visto que os soldados negros conseguiram, por meio desse processo, a reparação ao que se referia a igualdade de salários e das pensões militares.
Do ponto de vista da política doméstica dos EUA no que tange ao tema das Forças Armadas, o fim da segregação racial dentro das Forças Militares nos EUA aconteceu tempo depois da Guerra Fria. O decreto Executivo que findou a segregação racial no âmbito das patentes militares foi assinado em 1948 pelo então presidente Harry S. Truman (1945-1953), apesar de a estrutura racista ainda perdurar na sociedade norte-americana nos anos subsequentes. Para mais, a primeira tropa de Fuzileiros Navais negros foi incorporada às fileiras dos Marines somente em 1943, sendo treinados no Campo Montford Point em Jacksonville, na Carolina do Norte.
Em consonância com o mencionado acima, para os pesquisadores Naima Geen-Riley e Andrew Leber, “historicamente, o campo das relações internacionais não demonstrou muito interesse em estudar como as divisões raciais moldam as atitudes em relação à guerra”. Com isso, a temática foi por muito tempo negligenciada nos debates, devido ao não interesse da área em estudar essa dinâmica.
Pesquisador Christopher Shell (Fonte: LinkedIn)
Com os avanços das teorias das Relações Internacionais após a década de 1990, a temática foi incorporada aos estudos de gênero e raça dentro desse escopo, apesar de ainda serem poucas as análises da relação entre a população negra e a população branca no envio de vidas para a guerra. Em relatório publicado em 2023, o historiador Christopher Shell, do think tank americano Carnegie Endowment for International Peace, afirma que “há uma crescente apreciação entre os estudiosos de Relações Internacionais dos temas ligados à raça e à política externa”.
Do ponto de vista histórico, havia, por um lado, uma maior participação e envio para guerras da população negra do que da população branca, dado que a população negra buscava no alistamento militar uma forma de ascensão socioeconômica. Aqui, nota-se que, para além da ascensão do ponto de vista econômico, a mudança também se constituía como social, já que se tornar um veterano de guerra tirava esse indivíduo da estrutura racial invisível, colocando-o em uma posição de destaque dentro da nação. Por outro, do ponto de vista político estadunidense, fruto de uma visão racista, esse alistamento da população negra era uma forma de poupar a vida da população branca nos campos de batalha no exterior.
Na prática, porém, a realidade socioeconômica dos soldados negros não se alterava no retorno da guerra, já que a mentalidade da segregação racial persistia na sociedade estadunidense. Em sua matéria para a coletânea sobre o retorno da Guerra produzida pelo jornal The new York Times, o jornalista Alexis Clarck enfatizou que “os soldados negros que voltavam da guerra encontraram as mesmas mazelas socioeconômicas e de violência racista que enfrentavam antes. Apesar de seus sacrifícios no exterior, eles ainda lutavam para serem contratados para empregos bem remunerados, enfrentavam segregação e sofriam brutalidade direcionada”. Desse modo, identifica-se que o reconhecimento dos veteranos negros era uma questão a ser tratada na sociedade dos Estados Unidos ainda no fim da Guerra Fria.
Apesar dos avanços nesse debate nas últimas décadas, ainda é preciso lembrar da existência dessa lacuna no que se refere à política externa e de defesa dos Estados Unidos.
2024 e ainda precisamos falar dessa lacuna racial no exercício militar
Ao longo dos últimos anos, “o establishment da política externa dos EUA se tornou mais atento às questões raciais. O Departamento de Estado expandiu os programas de bolsas de estudo para diversificar o corpo diplomático e, em 2022, o departamento nomeou uma diplomata líder, Desirée Cormier Smith, como sua primeira representante especial para equidade racial e justiça”, de acordo com os pesquisadores Naima Geen-Riley e Andrew Leber em seu trabalho intitulado “The race gap that shapes American views of war”.
Dessa forma, nos últimos anos “o percentual de minorias raciais e étnicas nas Forças Armadas tem crescido constantemente nas últimas décadas”, segundo uma pesquisa realizada pelo Pew Research Center sobre a mudança do perfil das Forças Armadas nos EUA. A mesma pesquisa mostra, no entanto, que, em 2017, houve uma mudança significativa no perfil étnico-social nas Forças Armadas: “em 2017, o percentual de militares em serviço ativo que eram brancos não-hispânicos tinha caído, enquanto as minorias raciais e étnicas representavam 43% – e, dentro desse grupo, os negros caíram de 51% em 2004, para 39%, em 2017, tal como o percentual de hispânicos aumentou de 25% para 36%”. O gráfico abaixo ilustra essa modificação:
Gráfico 1– A mudança do perfil étnico-racial nas forças armadas dos EUA (2004-2017)
O caso de ascensão do primeiro negro a ocupar o cargo de secretário de Estado mais conhecido na área foi do general Colin Powell. Falecido em 2021, seu nome é lembrado como um marco na história militar dos EUA em diferentes aspectos. O general Colin foi um oficial do Exército altamente condecorado que serviu no Vietnã e foi primeiro general negro a alcançar o cargo de secretário de Estado em 2000 durante o governo do então presidente George W. Bush (2001-2009). Dessa gestão republicana, carregou uma mancha em seu legado, da qual viria a se arrepender, profundamente, anos depois: seu comparecimento e discurso no Conselho de Segurança da ONU, em 5 de fevereiro de 2003 (foto abaixo), para tentar convencer a comunidade internacional de que o iraquiano Saddam Hussein desenvolvia armas de destruição em massa. Esses armamentos nunca foram encontrados.
(Arquivo) Na ONU, Colin Powell segura um modelo de frasco de antrax, enquanto argumenta que o Iraque provavelmente possuía armas de destruição em massa (Fonte: Wikipedia)
Diferentemente do que o senso comum tenha percebido, o governo Barack Obama (2009-2017) não trabalhou com ênfase nessa agenda de importância significativa para o combate ao racismo estrutural nos EUA. Com efeito, o primeiro secretário de defesa negro foi nomeado pelo atual presidente Joe Biden, que escolheu o general Lloyd Austin para ser o primeiro homem negro a comandar o Pentágono em mais de 150 anos nos EUA.
Ainda que, nos dias de hoje, haja maior promoção de inserção de diferentes grupos étnicos-raciais e de gênero no setor de Defesa, trata-se de uma área pouco explorada no que tange à lacuna racial e ao uso da força militar estadunidense em sua atuação em política externa. Dessa forma, por último, considera-se que “reconhecer a lacuna racial persistente no apoio à guerra pode abrir a porta para um engajamento significativo com líderes intelectuais negros, veteranos e ativistas sobre como lidar com suas preocupações”. Conclui-se que é necessário criar e disseminar mais esse debate dentro da própria sociedade dos Estados Unidos, com a finalidade de diminuir essa lacuna que perdura há mais de um século.
* Yasmim Abril M. Reis é doutoranda em Relações Internacionais no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa da Escola Superior de Guerra (PPGSID/ESG), pesquisadora colaboradora no OPEU e vice-líder e assistente de pesquisa voluntária no Laboratório de Simulações e Cenários na linha de pesquisa de Biodefesa e Segurança Alimentar (LSC/EGN). Contato: reisabril@gmail.com.
** Primeira revisão: Simone Gondim. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Segunda revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 26 fev. 2024. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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