Mais de 20 anos após Durban, o sistema educacional da América ainda tem um problema de raça
(Arquivo) Fila de meninos afro-americanos caminhando por uma multidão de meninos brancos durante um período de violência relacionado à integração escolar, em Little Rock, Arkansas, em 4 dez. 1956 (Crédito: Thomas J. O’Halloran, cortesia da Library of Congress na Unsplash)
Série pelo Black History Month
Por Danilo Faustino* [Informe OPEU]
Em maio deste ano, o caso Brown v. Board of Education completa 70 anos. A decisão histórica da Suprema Corte dos Estados Unidos revogou a deliberação da ação Plessy v. Ferguson (1896), que permitia a segregação racial nas escolas públicas do país baseando-se no princípio que justificou as políticas do Jim Crow: “separados, mas iguais”. Ainda que o julgamento tenha sido favorável para a população negra, Celly Cook lembra que estudos mostraram como a falta de critérios para a integração racial levou à demora para que a educação de negros e brancos se aproximasse no mesmo espaço.
Print da capa do Informe da pesquisadora Celly Cook para o OPEU
Mais de meio século depois, o sistema educacional estadunidense ainda segue com ações e omissões que impactam não apenas o acesso da população negra às instituições, mas também afeta a dignidade dos estudantes. O posicionamento dos Estados Unidos na III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata serve como um ponto de partida para os entraves encontrados por estudantes negros nas últimas décadas.
Em 2001, a ONU organizou a III Conferência Mundial para tratar de pautas relacionadas a racismo e xenofobia. Sediado na cidade sul-africana de Durban, entre 31 de agosto e 8 de setembro, o evento aprovou uma resolução que foi essencial para as populações negras ao redor do mundo. O encontro sofreu, porém, com dois problemas: a resistência dos Estados Unidos durante as discussões e os atentados de 11/9 três dias depois, que tiraram a atenção das discussões.
Conferência de Durban (2001), resistência estadunidense
O documento final da Conferência estabeleceu uma série de recomendações e observações para a implementação de políticas que visavam a melhorar a vida da população negra, indígena e palestina. Políticas de ações afirmativas para a área da educação estavam entre as orientações, especialmente porque a resolução reconhecia a educação como uma área que apresenta disparidade entre as classes sociais e raciais. Em adição, a Conferência também reconhecia que a educação era uma das principais ferramentas de combate ao racismo, por ser uma forma de ensinar toda a população.
Para as delegações estadunidense e israelense, a temática do ensino não se mostrou como um ponto de prioridade. Os dois países se concentraram na questão do antissemitismo e do povo palestino. No artigo “Durban: The Third World Conference Against Racism, Racial Discrimination, Xenophobia and Related Intolerance”, publicado em 2002 na revista International Review of Penal Law,a diplomata Ulrika Sundberg observa que a delegação de Washington tinha a intenção de agir como um intermediário entre os países árabes e Israel, mas o relatório do NGO Forum, reunião de organizações não governamentais, serviu como motivo de rompimento dos EUA e Israel com o resto da Conferência. A pressão imposta pelos debates envolvendo a Palestina em um dos grupos de trabalho também contribuiu para a decisão de se afastar das conversas.
Como mostra a transcrição da coletiva de imprensa do dia 4 de setembro, os Estados Unidos não se retiraram completamente da Conferência, mas mandaram embora a delegação que chegou de Washington e deixaram o corpo diplomático de Durban. Os representantes que permaneceram não participaram da elaboração do relatório final.
(Arquivo) O então secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, discursa na abertura da Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Conexa, em Durban (Crédito: ONU/Evan Schneider)
No ano seguinte, o governo estadunidense exigiu que a Assembleia Geral das Nações Unidas abrisse uma votação para discutir o documento que esclarecia as decisões de Durban e estabelecia diretrizes de acompanhamento das políticas antirracistas. Entre as observações, estava o uso das instituições educacionais como forma de combate ao racismo. A delegação estadunidense, junto com a de Israel, votou contra o documento, enquanto o Canadá se absteve.
Boicotes a Durban II e III
A ONU se reuniu novamente em 2009 na reunião que ficou conhecida como Durban II, cujo objetivo era revisar os planos definidos na África do Sul. Os Estados Unidos anunciaram um boicote ao encontro, três meses após a posse de Barack Obama como presidente. Na declaração, a Casa Branca justificava que as adições recentes relacionadas à “incitação” no documento preparatório geravam conflito com o direito à livre-expressão garantido pela Constituição americana.
Na comemoração dos dez anos de Durban I, a ONU propôs que os países se reunissem em sua sede em Nova York para comemorar a década da primeira reunião em Durban. Os Estados Unidos informaram que não participariam, porque o relatório preliminar do encontro reafirmava a Declaração de Durban e suas instruções para ação. O problema seria o mesmo motivo que fez o país não se envolver nas discussões finais em 2001: a sinalização da ocupação de Israel nas áreas palestinas e o reforço do direito palestino de autodeterminação. O documento, para a Casa Branca, tinha como base o antissemitismo.
Ações afirmativas para a educação após Durban
As Nações Unidas reafirmaram as instruções do documento original em todos os encontros. Enquanto alguns países, como Brasil, Índia e África do Sul, buscaram uniformizar as políticas voltadas para a educação, os Estados Unidos se preocuparam em questionar as iniciativas de Durban e focar sua atenção na Guerra ao Terror. Em paralelo, as ações afirmativas se tornaram um ponto de disputa e inconsistência, influenciadas pelas políticas estaduais e as composições da Suprema Corte. A dinâmica federalista americana, na qual cada estado tem forte autonomia para decidir sobre as próprias leis, também contribuiu para a dificuldade de uniformizar a luta por políticas de inclusão.
Os julgamentos de Grutter v. Bollinger e Gratz v. Bollinger, em 2003, foram essenciais para o entendimento da Suprema Corte sobre políticas afirmativas. Ficou entendido que reserva de vagas ou benefícios raciais em processos de admissão das universidades, tanto na graduação quanto na pós-graduação, seria inconstitucional. Entretanto, o critério de raça poderia ser levado em consideração individualmente, caso a pessoa estivesse apta a ser selecionada para o programa. Na prática, as instituições poderiam usar critérios raciais como desempate para “promover” diversidade, mas não podiam garantir que haveria de fato uma quantidade mínima de pessoas não brancas.
(Arquivo) Estudantes protestam a favor de políticas de ação afirmativa, na frente da Suprema Corte americana, em Washington, D.C., em 10 out. 2012 (Crédito: National Education Association/Flickr)
Até a publicação deste texto, nove estados instituíram leis para banir quaisquer práticas de ação afirmativa. Os banimentos partiram do argumento de que critérios raciais iam contra o Título VI do Ato dos Direitos Civis (1964), que determina que nenhum indivíduo pode ser discriminado por qualquer razão envolvendo raça ou origens. De acordo com uma matéria do jornal britânico The Guardian, as legislações levaram ao aumento das disparidades raciais nas universidades, especialmente para os estudantes negros e indígenas.
O último golpe contra a Declaração de Durban e a população negra no país aconteceu no ano passado, quando a Suprema Corte deliberou que ações afirmativas e considerações raciais são inconstitucionais. A decisão afeta um sistema, no qual não só a possibilidade de entrada merece atenção, mas também é preciso cuidar dos estudantes negros que chegaram ao ensino superior e daqueles que ainda estão no ensino fundamental, especialmente para garantir que não haja desistências.
Direto à dignidade no sistema educacional e o caso do Texas
Políticas afirmativas servem também para promover a inclusão e a permanência daqueles que já estão na instituição de ensino ou profissional. O movimento pela aprovação das leis CROWN (acrônimo de Creating a Respectful and Open World for Natural Hair, ou “Criando um mundo aberto e respeitoso para os cabelos naturais”, em português) pensa exatamente na promoção de ambientes que respeitem por inteiro a identidade de pessoas negras. O projeto busca garantir que ninguém sofra discriminação por causa do cabelo.
A lei já foi promulgada por 24 estados e aprovada pela Câmara dos Representantes em março de 2022, não sendo aceita pelo Senado. O Texas está entre os estados, onde a CROWN foi sancionada e tem a maior população negra, segundo pesquisa do Pew Resarch Center. Esses dois fatos não impediram que a Justiça texana julgasse como correta a discriminação sofrida por Darryl George.
Darryl foi suspenso de sua escola de ensino médio em agosto de 2023 e proibido de frequentar presencialmente as aulas por usar um penteado de dreadlocks que, segundo a escola, feria a política da instituição, porque o cabelo estava abaixo das sobrancelhas e do lóbulo da orelha. A mãe do estudante questionou a decisão, argumentando que os dreads estavam presos acima da cabeça e que o penteado é parte da herança da família. O mesmo colégio em Houston já havia sido acusado de racismo quando impediu um aluno negro de participar da formatura por causa do mesmo penteado. O caso contra Darryl aconteceu na mesma semana que o Texas aprovou a lei CROWN.
Darryl George fala com a imprensa após a decisão judicial à favor da punição realizada pela escola (Crédito: Divulgação/Fonte: O Globo)
No dia 22 de fevereiro, a Justiça do estado julgou como legal a decisão da escola Barbers Hills de impedir a participação de Darryl George. Segundo o entendimento do juiz, a lei CROWN não faz menção sobre tamanho dos cabelos em seu texto. O representante estadual democrata Ron Reynolds (R-TX), um dos coautores da lei, testemunhou a favor de Darryl, afirmando que o tamanho do cabelo não foi uma questão descrita no texto porque já estava subentendida por se tratar de algo inerte aos estilos de cabelo. Em janeiro, o superintendente Greg Poole escreveu, em uma coluna paga do Houston Chronicles, que “ser americano exige conformidade com o benefício positivo da união e de fazer parte de algo maior do que você mesmo”.
Apagar as individualidades e ferir a dignidade da população negra faz parte do algo maior? Enquanto se preocupam com o antissemitismo contra Israel e assim se posicionam em Durban, os Estados Unidos da América renunciam aos seus filhos negros, colocando-os no mesmo lugar que sempre estiveram: como indivíduos que não merecem atenção. O Executivo que boicota as revisões da principal conferência sobre racismo caminha com a Suprema Corte, que julga inconstitucional medidas que buscam ampliar a admissão de pessoas negras em universidades.
No ano em que Durban completa 23 anos, a população negra ganha atenção não por suas necessidades, mas por ser uma peça importante na campanha eleitoral. Podemos nos perguntar: o que é esse algo maior da América e que união é essa da qual Poole fala? Talvez, assim como as mulheres e os homens negros em Galveston Bay (Texas), que foram os últimos a descobrir que estavam livre da escravidão, daqui a alguns anos o povo negro estadunidense descubra.
* Danilo Faustino é bolsista de Iniciação Científica do INCT-INEU/OPEU (PIBIC-CNPq) e graduando em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ). Pesquisa cultura, cinema, educação e sociedade e integra a equipe responsável pela conta do OPEU na rede X (ex-Twitter). Contato: danilo.faustino@ufrj.br.
** Primeira revisão: Simone Gondim. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Revisão e edição finais: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 27 fev. 2024. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mail: tatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mail: tcarlotti@gmail.com. Assine nossa Newsletter e receba o conteúdo do OPEU por e-mail.
Siga o OPEU no Instagram, Twitter, Linkedin e Facebook e acompanhe nossas postagens diárias.
Comente, compartilhe, envie sugestões, faça parte da nossa comunidade.
Somos um observatório de pesquisa sobre os Estados Unidos,
com conteúdo semanal e gratuito, sem fins lucrativos.