Sociedade

EUA e o longo caminho para a reconciliação com seu passado escravocrata

National Museum of African American History and Culture (Crédito: Arquivo pessoal/Camila Vidal)

Série pelo Black History Month

Por Camila Vidal* [Informe OPEU]

Desde 1976, do dia 1º de fevereiro ao dia 1º de março é comemorado nos Estados Unidos o mês da história preta – o “Black History Month”. Estar na capital do país nesse mês é estar imerso em dezenas de performances, exposições, museus e programas dedicados ao tema, justamente na cidade conhecida pelo seu número impressionante de museus gratuitos. Entretanto, seria imprudente sugerir que essas manifestações são causa e consequência desse único mês em questão.

Busto da sufragista e abolicionista negra Sojourner Truth, no Capitólio, em Washington, D.C. (Crédito: Arquivo pessoal/Camila Vidal)

Ao visitar os vários museus históricos e prédios governamentais de Washington e de suas vizinhas Arlington e Alexandria, percebe-se o esforço feito em trazer a black history como parte integrante da história dos Estados Unidos, por tanto tempo silenciada e/ou romantizada. É, assim, um esforço coletivo de resgatar uma história até pouco tempo atrás ausente — não só nos livros de história, mas nos próprios prédios públicos e museus históricos; e apresentar uma leitura mais crítica da formação de uma nação. No caso dos EUA, isso não é pouca coisa.

Fugindo de perseguição religiosa na Inglaterra, um grupo de peregrinos ingleses assinava, em 1610 e em pleno Oceano Atlântico, o pacto Mayflower. Nascia ali o mito da criação de uma nação verdadeiramente democrática e igualitária. Se difundia a ideia, a partir de então, de uma nação e de um povo excepcional. Povo esse escolhido por Deus para criar uma nação distinta de tudo que havia até aquele momento. Essa nação romperia com o “velho” e “atrasado” que representava a Europa aristocrática e seria fundamentada em uma noção de liberdade (inclusive religiosa) e em uma estrutura governamental flexível onde o cidadão “comum” teria representação na condução desse experimento. O país “berço” da democracia e da liberdade – entendimento que parecem estar no DNA do/a estadunidense até hoje – sobreviveu reproduzindo esse excepcionalismo e, justamente por isso, legitimando ações de política externa.

Criticar essa história e trazer à tona o paradoxo e a hipocrisia de uma nação que foi fundamentada não na igualdade e na liberdade, mas na alteridade e na escravidão, é enxergar com novos olhares um passado que foi deliberadamente silenciado e romantizado. Ainda que o resgate possa ser dolorido, é necessário para um país que busca ainda hoje se assentar em bases mais sólidas de sustentação. Nesse sentido, apresento aqui alguns desses movimentos recentes que merecem destaque.

Na Virgínia, escavação arqueológica e reconstrução para preservar a memória

Fazendo parte da Virgínia segregacionista e sede dos confederados no século XIX, Alexandria é hoje uma cidade tombada pelo patrimônio histórico e que busca resgatar seu passado escravista. Nesse sentido, inciativas como a criação em 2023 da African American History Division é louvável. A instituição municipal recém-criada tem um único, mas robusto, objetivo: o de trabalhar para a inclusão da história preta nos museus da cidade e nos prédios e programas públicos da mesma. Não à toa, o Museu Histórico da cidade agora possui uma exposição, apresentando a cidade como importante rota de tráfico e de venda de pessoas escravizadas. Um programa de escavação arqueológica pôde resgatar fragmentos e reconstruir uma história até então invisibilizada.

Para além da inauguração, em 2013, do African American Hall of Fame – apresentando lideranças pretas históricas e presentes da comunidade – e da abertura em 2004 do Alexandria Black History Museum, a aquisição por parte da cidade de Alexandria e a posterior inauguração, em 2022, da Freedom House parece atestar a importância da preservação de prédios e de espaços históricos e do papel do poder público em tornar acessível a sua história. A Freedom House se refere ao prédio original da mais importante empresa de tráfico doméstico de escravos nos EUA, a Frankling & Armfield, que operou entre 1828 e 1861 e foi responsável por aprisionar (nesse mesmo local) e traficar para o sul segregacionista do país pelo menos 650 mil homens, mulheres e crianças escravizados. Hoje, esse espaço está aberto para contar essa história.

Ainda na Virgínia, na vizinha Arlington, o resgate da história preta também parece ter sido iniciado. Uma das mais importantes evidências está no trabalho de reconstrução de um local simbólico: a casa do comandante geral das tropas confederadas segregacionistas, Robert Lee. A Arlington House, casa de Lee até o início da guerra civil, agora contrasta a ostentação de uma mansão de estilo clássico muito bem ornamentada com os espaços reclusos e simples dos galpões onde viviam famílias de escravizados. A partir da gestão do poder público, em específico, da atuação do National Parks, foram realizadas escavações arqueológicas entre 2003 e 2007 em que, em 2021, foram recriados espaços para fora da casa principal que contam a história de vida de escravizados que ali viviam.

Um lar para dez’: casa onde Selina Norris e Thornton Gray cresceram reproduzida na exposição na Arlington House (Crédito: Arquivo pessoal/Camila Vidal)

Para além da dimensão e da reconstrução material, entretanto, foram recriados também laços familiares. Em 2014, o National Parks obtém uma foto até então desconhecida de uma dessas escravizadas, Selina Gray. A partir de então, houve um trabalho hercúleo em recriar a árvore genealógica de algumas dessas famílias, incluindo a de Selina. O resultado é atualmente exposto em um vídeo emocionante, no qual esses laços familiares são reconstruídos e onde se apresentam os descendentes vivos dessas famílias.

Resgate histórico também passa pela Casa Branca e pelo Capitólio

Por fim, em Washington, o esforço na visibilização da história preta pode ser visto na tentativa de prédios públicos, como a Casa Branca e o Capitólio, de evidenciarem o papel de escravizados na própria construção desses espaços. Agora, ao apresentar a pedra fundacional posta em 13 de outubro de 1792 para a construção da casa do presidente, a Associação Histórica da Casa Branca, responsável por exposições e pelo museu aberto ao público, emprega esforços para evidenciar o papel desempenhado por trabalhadores pretos escravizados na construção da majestosa Casa Branca e mesmo no papel desempenhado por escravizados e pretos/as que trabalharam dentro desse espaço ou para os presidentes que aqui passaram. Exposições dessa associação, como Escravidão e Liberdade, Por trás das Cortinas da Casa Branca e Elizabeth Kekley, entre outras, são também esforços nesse sentido.

Semelhantemente à casa do Executivo, a casa do Legislativo tem buscado resgatar também essa história. Em 2007, o Congresso aprova legislação para nomear o espaço central do centro de visitantes do Capitólio como Emancipation Hall, em reconhecimento do trabalho feito por pessoas pretas escravizadas, responsáveis pela construção do prédio. Ali, uma imponente pedra marca o papel que escravizados tiveram. Para além das estátuas de lideranças pretas como Martin Luther King e Rosa Parks, novos monumentos são colocados em espaços de destaque, a exemplo de Sojourney Truth (2009) – ainda uma das poucas estátuas de mulheres em todo o Capitólio; e de Frederick Douglass (inaugurada em 2013 no próprio Emancipation Hall).

Conheça a história de Frederick Douglass, o escravo que se tornou líder abolicionista nos EUA (Crédito: Biography)

Entretanto, talvez a maior evidência desse esforço de dar vozes a uma história preta silenciada tenha sido a construção pública do National Museum of African American History and Culture. Inaugurado em 2016 com a presença de Barack Obama, esse é atualmente o maior museu nos Estados Unidos dedicado à história e à cultura preta nos Estados Unidos. Seis andares contam a história desde a captura na África e a escravidão nos EUA, até a eleição do primeiro presidente afro-americano no país. Impossível não se emocionar com tamanha história e com tamanho sofrimento que perpassa gerações.

Ainda assim, o fim não parece estar próximo. O Capitólio ainda tem mais estátuas de confederados do que de pessoas pretas; o Museu da História Americana ainda carece de uma maior exposição sobre como o trabalho escravo forjou o capitalismo no país; o National Archives Museum ainda romantiza os documentos fundacionais expostos publicamente abaixo de uma rotunda magistral, silenciando que a frase “all men are created equal” dizia respeito a homens brancos unicamente. Ainda assim, me parece que o caminho para resgatar uma história preta como alicerce dessa nação tão romantizada, ainda que longo, já iniciou.

 

Camila Feix Vidal é professora no Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e faz parte do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea (GEPPIC), do Instituto de Estudos para América Latina (IELA/UFSC) e do Instituto Memória e Direitos Humanos (IMDH/UFSC). Contato: camila.vidal@ufsc.br e camilafeixvidal@gmail.com.

** O presente Informe OPEU foi produzido no âmbito de viagem de pesquisa de campo sobre escolas militares estadunidenses, com apoio e recursos do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 24 fev. 2024. Seu conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora Tatiana Teixeira, no e-mailtatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas Newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mailtcarlotti@gmail.com.

 

Assine nossa Newsletter e receba o conteúdo do OPEU por e-mail.

Siga o OPEU no InstagramTwitterLinkedin e Facebook e acompanhe nossas postagens diárias.

Comente, compartilhe, envie sugestões, faça parte da nossa comunidade.

Somos um observatório de pesquisa sobre os EUA, com conteúdo semanal e gratuito, sem fins lucrativos.

Realização:
Apoio:

Conheça o projeto OPEU

O OPEU é um portal de notícias e um banco de dados dedicado ao acompanhamento da política doméstica e internacional dos EUA.

Ler mais