Afro-latinidade nos EUA: uma importante perspectiva no espectro identitário do país
Crédito: Hola!
Séries Black History Month e OPEU nas Eleições 2024
Por Victoria Louise Quito* [Informe OPEU]
Na miscelânea de identidades existentes na sociedade estadunidense, alguns grupos têm sua história mais bem contada do que outros. Muito se difunde sobre as origens das populações brancas de ascendência europeia; as raízes do racismo e da resistência vivenciados pelos negros após o começo da interminável diáspora africana na modernidade e mesmo os latinos, que experienciam com mais intensidade a imigração contemporaneamente, têm suas perspectivas amplamente difundidas mundo afora. No entanto, é interessante observar a marginalização identitária de grupos que vivem nas intersecções desses grupos, reunindo uma ou mais identidades marginalizadas simultaneamente. Esse é o caso dos afro-latinos, pessoas de origem latino-americana e ascendência africana, que vivem nos Estados Unidos e se relacionam com a sociedade de um modo que só pode ser vislumbrado a partir da complexidade de sua posição.
Kimberlé Crenshaw, especialista em estudos de teorias críticas sobre raça, explica que a interseccionalidade trata da forma como o gênero é articulado com outras identidades, o que gera uma forma particular de desigualdades vivenciadas por cada grupo. Por exemplo, quando determinadas questões são tratadas apenas como raciais, ou exclusivamente como de gênero ou nacionalidade, as pessoas marginalizadas que fazem parte de grupos discriminados tanto pelo gênero, quanto pela cor da pele e pela nacionalidade, tornam-se invisíveis para a resolução do problema. Por essa razão, surge a necessidade de compreensão da estrutura social estadunidense a partir da experiência de um grupo que não é apenas latino, mas afro-latino, com especial atenção para as mulheres desse grupo.
Além de Crenshaw, a socióloga e pesquisadora Patricia Hill Collins, em seu livro Pensamento Feminista Negro, explica como as diferentes características de grupos sociais historicamente identificáveis fazem seus integrantes terem uma posição distinta no âmbito das opressões interseccionais. No caso da população afro-latina nos Estados Unidos, também cabe a ideia de “matriz global de dominação” cunhada pela autora, já que essas intersecções existem graças a uma organização social que faz sua manutenção.
É o que demonstram os dados do estudo publicado pelo Latino Policy & Politics Institute da Universidade da Califórnia-Los Angeles (UCLA) em abril de 2023, intitulado “Centering Black Latinidad: A Profile of the U.S. Afro-Latinx Population and Complex Inequalities” (“Centralizando a Latinidade Negra: Um Perfil da População Afro-Latinx e Desigualdades Complexas”, em tradução livre). Dentre os diversos resultados interessantes da pesquisa, nota-se que, apesar de às vezes vivenciarem situações parecidas com aquelas passadas por pessoas de grupos similares – como o de pessoas negras em geral, ou latinos em geral –, os afro-latinos têm uma história bastante particular no contexto estadunidense.
Entre outros pontos, o estudo mostra que a média da renda recebida por hora no caso dos afro-latinos é menor do que aquela recebida pela população negra não latina, mas é maior do que o valor lucrado pelo restante dos latinos em geral no país. Em todos os casos, é demonstrado que a população branca ganha um salário consideravelmente maior que o da população negra e latina, o que reitera o evidenciado por Collins quanto à estrutura social que mantém as opressões sociais. Outro dado bastante esclarecedor coletado pela pesquisa revela que a maior parte da população afro-latina é nascida nos Estados Unidos, e menos da metade dos integrantes desse grupo é falante de espanhol. Isso pode ser justificado pela experiência discriminatória quanto à língua espanhola relatada por diversos latinos que vivem no país.
Elizabeth Acevedo, poeta nascida nos Estados Unidos e de origem dominicana, comenta os efeitos dessa discriminação linguística em seu poema “Afro-latina”:
The first language [O primeiro idioma]
I spoke was Spanish. [que falei foi o espanhol.]
Learned from lullabies [Aprendi com as canções de ninar]
whispered in my ear. [sussurradas em meu ouvido.]
My parents’ tongue [A língua de meus pais]
was a gift [foi um presente]
which I quickly forgot [que esqueci rapidamente]
after realizing [depois de perceber que]
my peers did not understand it. [que meus colegas não a entendiam.]
They did not understand me. [Eles não me entendiam.]
So I rejected [Por isso, rejeitei]
habichuela y mangú, [habichuela y mangú,]
much preferring Happy Meals [preferindo muito mais os Happy Meals]
and Big Macs. [e Big Macs.]
Straightening my hair [Alisando meu cabelo]
in imitation of Barbie. [imitando a Barbie.]
I was embarrassed [Eu ficava envergonhada]
by my grandmother’s [com as saias coloridas]
colorful skirts [da minha avó]
and my mother’s [e o ‘brokee inglee’]
eh brokee inglee [da minha mãe]
which cracked my pride [que quebrava meu orgulho]
when she spoke. [quando ela falava.]
So, shit, I would poke fun [Então, merda, eu mesma tirava sarro]
at her myself, [com ela,]
hoping to lessen [na esperança de diminuir]
the humiliation. [a humilhação.]
Proud to call myself [Orgulhosa de me considerar]
American, [americana,]
a citizen [uma cidadã]
of this nation, [desta nação,]
I hated [eu odiava]
Caramel-color skin. [A pele cor de caramelo.]
(Trecho do poema “Afro-latina”, por Elizabeth Acevedo. Tradução nossa entre colchetes)
De acordo com estudo realizado pelo Pew Research Center entre novembro de 2019 e junho de 2020, os afro-latinos constituem 2% da população nos Estados Unidos, ou seja, 6 milhões de pessoas. No entanto, nota-se, nessa mesma pesquisa, que o grupo não costuma se descrever como sendo de origem hispânica (considerando-se essa identidade individualmente), dado que apenas 800 mil dessas pessoas assim o fazem. Dentro do grupo maior, daqueles que não se identificam como “latinos” individualmente, 59% dizem que são negros.
É exatamente isso o que diz Melania Luiza Marte, em seu poema mais famoso. Ao ser confrontada com a alegação de que é latina, a poeta de ancestralidade caribenha lembra aos interlocutores de que sua negritude vem, para ela, antes de sua latinidade, como no trecho abaixo:
Dicen que soy latina.. [Dizem que sou latina..]
Until I start talking about colorism, [até eu começar a falar sobre colorismo,]
until I check them on erasure, [até eu examiná-los quanto ao apagamento,]
until I choose to speak on my own behalf, [até eu escolher falar em meu próprio nome,]
until I remind them my Afro comes before Latina. [até eu lembrá-los de que meu Afro vem antes de Latina.]
(Trecho do poema “Afro-latina”, de Melania Luisa Marte. Tradução nossa entre colchetes)
É graças a elementos histórico-sociais como esses que é possível perceber a importância da visão interseccional sobre os diferentes grupos que compõem os Estados Unidos. Somente a partir dessa leitura é possível compreender o comportamento dos atores sociais, o que buscam e a que reagem. Não é coerente, por exemplo, afirmar que todo o grupo de pessoas latinas vivendo no país se comportará homogeneamente, dada essa maior proximidade de identificação com a população negra. E essa própria proximidade também pode ser justificada pela similaridade das opressões vividas por pessoas negras nos EUA de maneira geral, independentemente de sua ancestralidade. É por isso que, dentre as conclusões do supracitado estudo da UCLA, destaca-se o fato de que o racismo contra o grupo de afro-latinos em suas evidências econômicas e sociais é bastante próximo ao sofrido pela comunidade negra em geral, conforme trecho abaixo:
“Apesar das taxas mais elevadas de escolaridade e de participação no mercado de trabalho dos afro-latinos, eles vivenciam a anti negritude na economia e na sociedade. Os seus resultados, especialmente nos rendimentos familiares e na propriedade de casa própria, estão ligados aos da comunidade negra não-hispânica”.
Comportamento político: possibilidades e particularidades do grupo afro-latino nas eleições americanas de 2024
Nesse sentido, e considerando-se todas as informações aqui reunidas, cabe a reflexão quanto ao cenário político dos Estados Unidos atualmente e como essa população pode influenciar nas eleições deste ano. Levando-se em conta o fato de que a maior parte dos afro-latinos são nascidos no país e, portanto, cidadãos americanos, eles representam uma expressiva parte da comunidade votante dentre o total de pessoas de ascendência latina. Além disso, sabendo que a maioria alinha seu posicionamento político de modo similar ao das pessoas negras estadunidenses, isso pode significar que não terão, necessariamente, um comportamento homogêneo com relação ao grupo latino como um todo.
Ainda, postas suas diferentes imbricações identitárias, pode ser que afro-latinos e afro-latinas no país tenham demandas específicas de seu lugar social. É esse o caso da recente movimentação para que o Partido Democrata eleja uma mulher afro-latina para o Congresso, uma vez que não existe, hoje, nenhum membro da instituição que se identifique dessa maneira. Na ausência de pesquisas específicas sobre o comportamento político desse importante grupo populacional, nos resta ponderar e questionar: como votarão os afro-latinos nas eleições de 2024?
* Victória Louise Quito é mestranda do PPGRI da PUC-Rio, bacharela em Relações Internacionais pela UFRJ e pesquisadora colaboradora do OPEU. No Observatório, cobre a área de relações EUA-América Latina e faz parte da equipe de gestão do Observatório. Contato: victorialouiseq@ufrj.br.
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. 1ª versão recebida em 28 fev. 2024. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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