2022: o ano da inflexão histórica
T-72AV ucraniano durante a contraofensiva ucraniana de Kharkiv em 2022 (Crédito: Forças Armadas ucranianas/Wikimedia)
Num mundo sob o capitalismo global e voraz, qualquer centro produtivo que pareça uma ameaça de mercado é considerado já não um concorrente, mas um inimigo
A expansão e o auge do globalismo unilateral, regido por regras ditadas conforme os interesses de um polo, parece ter chegado ao seu fim. Começa a ganhar mais nitidez o recorte geopolítico de placas tectônicas até recentemente opacadas por uma homogeneidade imposta, de um mundo de regras unilateralmente ditadas. A lenta e consistente emergência dessas placas, talvez pelo seu caráter pacífico, passou inadvertida para um prematuramente envelhecido “ocidente ideológico”, dependente da análise estratégica e das decisões políticas dos Estados Unidos. Num mundo caracterizado pela fase do capitalismo global e voraz, qualquer centro produtivo que possa parecer uma ameaça de mercado é considerado já não um concorrente, mas um inimigo à sua segurança, e, enquanto tal, deve ser combatido, desgastado, dividido, eliminado.
Com o fim da Guerra Fria (sem vencedores nem vencidos, é bom lembrar) se inicia o desmonte do Pacto de Varsóvia e o desmembramento da União Soviética, com o qual desaparecia a ameaça existencial da Europa e dos Estados Unidos e o fundamento institucional da OTAN. A perspectiva de uma tão esperada paz mundial permitiu manifestações otimistas que chegaram a anunciar o “Fim da História” – como se a conflitividade, dínamo da história, não fosse intrínseca à espécie. Um mundo em paz permitiria à Europa dissolver a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), aliança criada para enfrentar o Pacto de Varsóvia e que já perdia seu sentido. Agora os europeus podiam pensar eventualmente num sistema especificamente europeu, assim como orientar suas economias, liberadas dos encargos da Defesa aliancista, para fortalecer o Estado de bem-estar social e decidir seu futuro com a autonomia europeia.
Poderia ter sido o início de um mundo mais pacífico, mas poderia ser o fim da dependência estratégica de Europa com relação aos Estados Unidos, além do fim do polpudo negócio dos armamentos. Essas eram duas consequências inaceitáveis para o Hegemon que, por outro lado, desde a reflexão neoconservadora, ainda que dissolvida a União Soviética e com uma Rússia empobrecida (em poucos anos perdeu o 50% do PIB), decidiu que era inaceitável a manutenção de capacidade nuclear suficientemente dissuasiva para eventualmente se opor a uma ordem emitida pelo núcleo de poder mundial que se impunha como unipolar.
Alavancados pela exigência de demanda por parte da pujante indústria de armamentos, e assessorados pelos falcões neoconservadores e a RAND Corporation, ligada àquele setor industrial, os Estados Unidos apontaram à esgotada Rússia como uma potencial ameaça à Europa e ao estilo de vida ocidental. Os países do Leste Europeu (antiga URSS) foram aderindo de forma precipitada e desordenada ao capitalismo, e a Rússia não ficou atrás. Então, já não era o comunismo a ameaça: o perigo era que alguém, em defesa dos interesses nacionais, pudesse ignorar as regras casuísticas com que os Estados Unidos ordenavam o mundo em função dos seus interesses. Apoiado numa mídia global adocicada, essa ameaça não era apresentada como especificamente aos Estados Unidos, mas à democracia, ao ocidente, a um “Mundo de Regras” – chegou-se ao maniqueísmo transcendente de considerar uma ameaça do Mal contra o Bem.
Com Putin no governo, a Rússia tentou inicialmente se incorporar à União Europeia, terminar com as percepções de ameaças cruzadas e definir um sistema de segurança comum, mas seu pedido foi rejeitado. Putin sentiu-se humilhado e, sobre o discurso da dignidade do povo russo, iniciou seu fortalecimento político e a recuperação econômica e militar da Rússia. Diferentemente do caso da Rússia, outros países do Leste foram incorporados à União Europeia (UE), e a OTAN foi se esticando em ondas de expansão rumo ao Leste, aproximando perigosamente sua capacidade militar às fronteiras da Rússia. Estava claro para qualquer observador, a OTAN tinha justificado sua existência, definindo um inimigo: Rússia. Para tornar plausível essa ameaça aparentemente inexistente, se abre o teatro de operações psicossocial com um operativo midiático corporativo para modular as percepções sociais do “ocidente”. Mas, por outro lado, quando se identifica um país como “inimigo”, se acaba de fato criando um inimigo.
(Arquivo) Presidente Vladimir Putin, em 19 jan. 2021 (Crédito: Secretaria de Imprensa da Presidência russa/Wikimedia Commons)
Na Conferência de Segurança Europeia de Munique, em 2005, Putin advertiu que a expansão da OTAN para o Leste constituía uma ameaça existencial para a Rússia e que seu país se prepararia para se defender. Não obstante essa advertência, a OTAN continuou se aproximando das fronteiras russas, ofensiva complementada com táticas de guerra híbrida. O intento de incorporar a Geórgia, a 1.957 quilômetros de Moscou, foi a gota d’água, e a resposta russa foi imediata, deixando claro que as ameaças do ocidente tinham sido levadas a sério pela Rússia.
Ante essa resposta, o ocidente muda de estratégia e começa incentivar grupos de extrema-direita financiados pelos EUA para provocar instabilidade social na Ucrânia, ao tempo que treinava e financiava o nazista Batalhão Azov. Todo esse preparo foi detalhado por Victoria Nuland ante o Congresso americano. Esta operação desembocará na “primavera” ucraniana (nome da tática híbrida da desestabilização), no sangrento golpe da Euromaidan em fevereiro de 2014. Tomado o poder, se inicia um movimento russofóbico, com perseguições violentas. As províncias do Donbass, de cultura e língua russa, se levantam pedindo autonomia e recebendo, como resposta, uma guerra civil que cobrou a vida de quase 15 mil civis, sob o silêncio cúmplice da Sociedade Internacional. Com a chegada ao poder do comediante Zelensky, se agudiza a pressão russofóbica, com repressão violenta em Kiev e ameaças ao Donbass. Solicita o ingresso à UE e à OTAN e ameaça renunciar ao Memorando de Budapeste, assinado em 1994, pelo qual a Ucrânia abdicava de contar com armamento nuclear no seu território. Com essa renúncia, ficava colocada a possibilidade de a OTAN apontar seus mísseis desde o território ucraniano, a 7 minutos de Moscou. No começo de 2022 há uma forte concentração de forças ucranianas na fronteira do Donbass, encabeçada pelo batalhão Azov, ameaçando invadir as “províncias rebeldes”. Nessas circunstâncias e com o reconhecimento da declaração de independência das Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk pela Duma russa, Putin move tropas para a sua fronteira com a Ucrânia.
Assim, rapidamente desenhado neste reduzido espaço, fica configurado o cenário montado durante pouco mais de três décadas, a partir do Fim da Guerra Fria, para impor uma ordem mundial regida por regras decididas casuisticamente pelos interesses ocidentais, isto é, dos Estados Unidos. Mas também constitui o ponto de inflexão da história, o ponto em que aquelas camadas tectônicas, mencionadas no começo deste texto, começam a mostrar seu perfil e sua proposta para um novo sistema internacional multilateral, que pretendemos analisar nas próximas colunas.
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