América Latina

Uma liberdade seletiva e autoritária: Rede Atlas e a vitória de Javier Milei na Argentina

(Arquivo) Comício de encerramento de campanha de Javier Milei, em uma casa de shows em Buenos Aires, em 18 out. 2023 (Crédito: Oliver Kornblihtt / Mídia NINJA)

Por Camila Vidal, Jahde Lopez e Luan Brum* 

Viva la libertad, carajo!

1º discurso de Javier Milei como presidente da Argentina (2024)

Uma análise centrada nas condições reais da circulação e implementação do ideário neoliberal nos lembra, sobretudo como latino-americanos/as, até que ponto um discurso que prega a “liberdade” oculta tons cruéis de autoritarismo e de opressão. Esse tem sido, aparentemente, o caso de Javier Milei, presidente eleito na Argentina. Ele é, entretanto, apenas uma das várias (e históricas) manifestações do uso autoritário e seletivo de uma dita “liberdade”.

Talvez um dos exemplos mais sintomáticos dessa relação tenha sido o regime de Augusto Pinochet, no Chile (1973-1990). Aconselhado por intelectuais como Milton Friedman e Friedrich A. Hayek, o caráter seletivo de uma suposta “liberdade” econômica era implementado sob a égide de todo um aparato repressivo, autoritário e violento. A “liberdade”, então, diz respeito ao fim de um Estado de Bem-Estar Social e, portanto, ao fim de pilares fundamentais para o desenvolvimento pleno de uma democracia. Assim como no caso da ideia de “liberdade”, a “democracia” é ela também seletiva e autoritária, em uma tentativa de justificar e de legitimar práticas violentas, opressivas e desiguais.

Como relata Hayek em Carta para o The Times, datada de 3 de agosto de 1978:

O fato de uma democracia limitada ser provavelmente a melhor forma de governo conhecida não significa que a possamos ter em todo o lado, ou mesmo que ela seja ela própria um valor supremo. […] Não consegui encontrar uma única pessoa, mesmo no tão difamado Chile, que não concordasse que a liberdade pessoal era muito maior sob Pinochet do que sob Allende.

O próprio general Augusto Pinochet já discorreu sobre a necessidade de “banhar-se em sangue, de vez em quando, para ser uma verdadeira democracia”.

Réquiem para o sonho americano: Os dez princípios de concentração de renda  e poder eBook : Chomsky, Noam: Amazon.com.br: LivrosPara Noam Chomsky, em Réquiem para o sonho americano (Bertrand Brasil, 2017), “todo vislumbre de ascensão do poder popular sempre causou grandes preocupações neles [classe empresarial], que sempre acharam que ‘democracia demais’ é muito perigoso”. Assim, a maior “liberdade”, pregada no discurso neoliberal, assume uma acepção extremamente seletiva. Se o objetivo é a implementação de um plano econômico tão duro que não teria suporte da maioria da população em uma democracia representativa, um regime autoritário cumpre bem a missão.

Ao longo dos anos, contudo, o papel da organização estadunidense Rede Atlas na criação de centros educacionais e institutos difusores do livre-mercado vem servindo como instrumento de criação de consenso, cooptando “corações e mentes” de importantes figuras do campo intelectual, econômico e político na América Latina. Atualmente, com 500 institutos distribuídos em 100 países no mundo, sendo a região da América Latina e Caribe a terceira com maior número de instituições parceiras e contabilizando um total de 121 institutos, a Atlas vem impactando consideravelmente a conjuntura política, econômica e social dos países que a compõem.

Na Argentina, por exemplo, desde muito cedo a Atlas, mediante a liderança de Alejandro A. Chafuen, ex-presidente da organização (1991-2017), e de intelectuais, como Alberto Benegas Lynch, assimilaram o “poder das ideias” e a necessidade de criar um ambiente propício para implementá-las sob a égide de reformas políticas e econômicas. Como resultado deste esforço, a Argentina figura como o país que contou com o maior número de institutos parceiros, contabilizando um total de 365 no período entre 1994 e 2023, à frente de países como Brasil (220 parceiros), Chile (170) e Peru (149). Além disso, somente no ano de 2020, parceiros argentinos, como o Federalismo y Libertad (que recebeu US$ 20 mil), Fundación Libertad (US$ 45 mil) e a Fundación Libertad y Progreso (US$ 110 mil), receberam da Atlas um total de US$ 175 mil, direcionados para programas com títulos vagos como “Promovendo Sociedades Livres”, “Garantir o Governo” e “Erradicando a Pobreza”.

Para Benegas Lynch, principal assessor político do atual presidente argentino, Javier Milei, o que esses espaços fazem é um “verdadeiro trabalho intelectual” aos moldes gramscianos, como se representassem “uma pedra atirada num lago onde existem círculos concêntricos que cobrem áreas cada vez maiores […] quando chega à mídia, quando um jornalista adota a ideia, significa que está quase no último círculo”.

Nesse sentido, vitória de Milei na Argentina simboliza muito bem os esforços dos aliados da Atlas nesse país. Com formação atrelada à Universidad Torcuato di Tella, parceira da Atlas entre 1997 e 2000, Milei também foi homenageado com o título de Doutor Honoris Causa e atuou como professor da Escuela Superior de Economia y Administración de Empresas (ESEADE), parceira da Atlas entre 1994 e 2011.

Conforme destaca o pesquisador Lucas Araldi, Milei esteve presente em conferências e eventos promovidos pelos parceiros da Atlas na Argentina, a exemplo da Fundación Libertad y Progreso, Federalismo y Libertad e Fundación Atlas, além de ter participado do Fórum da Liberdade (2022) organizado pelo Instituto de Estudos Empresariais, maior evento da agenda neoliberal na América Latina.

Para Araldi:

… a relação entre Milei e Atlas parece constituir um laço benéfico mútuo: Milei ganha acesso a uma infraestrutura consolidada de think tanks neoliberais e canais de comunicação para difundir suas ideias, enquanto think tanks na Argentina e em outros países usam ele [Milei] para acessar novas audiências (de jovens em particular) para propor uma agenda reacionária.

Além disso, Milei promoveu para sua equipe de governo importantes nomes de indivíduos vinculados aos institutos parceiros da Atlas na Argentina, tais como Diana Elena Mondino (ministra das Relações Exteriores, Comércio Internacional e Culto), Eduardo Filgueira Lima (secretário de Saúde), Martin Krause (conselheiro na área da educação), Emilio Ocampo (economista da equipe de Milei e principal idealizador do projeto de dolarização da economia Argentina), entre outros.

Com afinidade entre a “liberdade” neoliberal e o autoritarismo fascista que caracterizou o governo Pinochet no Chile, Milei foi assessor econômico de Antonio Domingo Bussi, general do Exército durante a ditatura militar argentina, julgado e condenado por crimes contra a humanidade. Morto em 2011, Bussi deixou a política como legado para seu filho, Ricardo Bussi, que recebeu apoio de Milei quando da disputa eleitoral para a província de Tucumán em outubro de 2022.

A correspondência entre autoritarismo e neoliberalismo se dá, ainda, na escolha, por parte do suposto “libertário”, de sua vice: a filha de militar condenado Victoria Villarruel. Villarruel, que defende o “revisionismo” histórico da ditadura para reconstituição histórica “do outro lado” – ou seja, uma leitura que privilegie os militares às custas dos mortos e desaparecidos –, busca interromper os julgamentos contra militares por crime contra humanidade, desmobilizar o museu na antiga Escuela Mecanica da Armada (ESMA) – um dos maiores centros de tortura e extermínio na Argentina durante a ditadura militar – e acabar com as pensões sociais que as vítimas dessa mesma ditadura recebem. Seguindo os passos de sua vice, Milei chegou a questionar os números oficiais (substanciados em dados e testemunhos) de 30 mil desaparecidos, alegando que seriam 8 mil.

Apesar da carga autoritária e da seletividade na dita “liberdade”, o governo Milei não é percebido como risco para a democracia para quem trabalhou, precisamente, para alçar um outsider à Presidência. Em nota divulgada pelo Instituto Millenium, parceiro da Atlas no Brasil, Alejandro Bongiovanni, presidente da Fundación Libertad (também parceira da Atlas na Argentina), afirma: “não acredito que Milei represente um risco para a democracia”.

Já o atual presidente da Atlas Network, Brad Lips, fez questão de escrever no site da Rede uma longa matéria sobre as qualidades do agora presidente argentino e a necessidade da agenda pregada por ele. Para Lips, a eleição de Milei demonstra como é possível a reversão do que é considerado normal, ou tradicional, no âmbito político e substituí-lo por um “governo mínimo”, algo de que a Argentina “precisa desesperada e urgentemente”. Para o presidente da Atlas, institutos aliados com o Fundación Libertad e acadêmicos, como Alberto Benegas Lynch, “têm gastado décadas explicando as vantagens do livre-mercado, comparado ao estatismo que tem dominado a Argentina”.

DSC_0281 | Atlas Network's CEO Brad Lips spoke during a brea… | Flickr(Arquivo) CEO da Atlas Network, Brad Lips, na conferência International Students for Liberty, em Washington, D.C., em 20 fev. 2011 (Crédito: Rede Atlas/Flickr)

Evidenciando o papel de persuasão desempenhado por esses institutos, Lips argumenta que o parceiro Libertad y Progreso, “tem trabalhado incansavelmente para educar o público sobre os perigos de um governo expansivo”. Por fim, finaliza o artigo parabenizando a eleição como “um exemplo para o hemisfério” e uma aprendizagem de que “instituições da sociedade livre só irão permanecer com nosso ativo engajamento”.

Como sempre, a dita “democracia” e a “liberdade” tendem a ser muito específicas: aquelas relacionadas com o livre-mercado (e sua aplicação pela força, quando necessário), em que uma classe dominante segue impondo seus interesses privados no âmbito público e lucrando com eles, às custas do restante da população.

Notas

Utilizou-se da ferramenta Wayback Machine para recuperar dados dos parceiros antigos da Atlas em anos anteriores do seu website.

 

Camila Feix Vidal é professora no Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e faz parte do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea (GEPPIC), do Instituto de Estudos para América Latina (IELA/UFSC) e do Instituto Memória e Direitos Humanos (IMDH/UFSC). Contato: camila.vidal@ufsc.br e camilafeixvidal@gmail.com.

Jahde de Almeida Lopez é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea (GEPPIC). Contato: jahdelopez@gmail.com.

Luan Corrêa Brum é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea (GEPPIC). Contato: luan.brum1996@hotmail.com.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. 1ª versão recebida em 20 fev. 2024. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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