‘Por uma outra forma de (re)pensar as Relações Internacionais: hegemonia e criação de consenso’, uma resenha crítica
Crédito da ilustração: Liu Rui/GT
Por Vitor Braga* [Resenha OPEU]
Camila Feix Vidal e Luan Correa Brum são os autores do artigo científico “Por uma outra forma de (re)pensar as Relações Internacionais: hegemonia e criação de consenso”, publicado em 2020 na Revista Conjuntura Austral: Journal of the Global South.
Graduada em Relações Internacionais pela Florida International University (FIU), Camila concluiu seu mestrado e doutorado em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e fez um estágio doutoral na École de Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Seus principais temas de pesquisa são Teoria das Relações Internacionais, Teoria Política e Política Estadunidense.
Atualmente, a autora é professora adjunta no Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde atua no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI) e no Curso de Graduação em Relações Internacionais. Vidal também integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).
Luan Brum, o segundo autor, é formado em Relações Internacionais pela Universidade do Rio Grande (FURG), tem mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (PPGRI-UFU) e é doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGRI-UFSC). Por último, os principais interesses de pesquisa de Brum são: política externa estadunidense e sua relação com a América Latina; hegemonia dos Estado Unidos e neoliberalismo e a atuação dos institutos liberais.
O artigo “Por uma outra forma de (re)pensar as Relações Internacionais: hegemonia e criação de consenso” tem como objetivo repensar as Relações Internacionais pela Sociologia e por conceitos neogramscianos, analisando como a hegemonia estadunidense e suas classes dominantes influenciam o contexto latino-americano por meio de práticas de consenso.
Na introdução, os autores destacam os pontos a serem discorridos ao longo do texto e expõem conceitos e ideias que guiaram a pesquisa, como, por exemplo, a crença de que a classe dominante precisa persuadir – seja por meio da força, seja pelo consenso – a sociedade a pensar e a agir de maneira que legitime o status quo de dominância desse grupo. Além disso, Vidal e Brum afirmam que a abordagem estadocêntrica das Relações Internacionais, que coloca o Estado como figura central e detentor de legitimidade, favorece as elites, pois as classes dominantes, que normalmente compõem o aparato estatal, usam desse meio para transformarem seus interesses particulares em interesses nacionais, subjugando as classes subalternas às suas vontades.
Ainda na introdução, Camila Vidal e Lucas Brum (2020, p. 110) deixam claro que consideram, ao longo da publicação, “a dimensão da ideologia na criação de consenso para a manutenção do modelo econômico neoliberal hegemônico”, ou seja, torna-se possível dizer que a ideologia das elites é forçada nas minorias sociais até serem naturalizadas e perpetuadas.
Para mais, os pesquisadores utilizaram na pesquisa o conceito de hegemonia elaborado por Antonio Gramsci, que prega uma combinação de força e consenso na formação hegemônica. Logo, para os autores do artigo, a hegemonia americana é a internacionalização da ideologia (saberes e valores) e dos interesses nacionais estadunidenses. Assim, de acordo com um “saber técnico” (Cox, 1981 apud Vidal; Brum, 2020, p. 110), a ideologia e o conhecimento científico do centro (Estados Unidos) se tornaram dominantes e legítimos e passaram a ser reproduzidos pela periferia, contribuindo para uma espécie de “dominação em matéria cultural” (Vidal; Brum, 2020, p. 111). Um exemplo disso é a naturalização e a internacionalização da ideologia neoliberal, um componente importante da estratégia de domínio da elite americana no contexto internacional.
Por fim, para espalhar o neoliberalismo pelo mundo, Vidal e Brum afirmam que os EUA estão utilizando os think tanks como “aparelhos privados de hegemonia” (Gramsci, 2007 apud Vidal; Brum, 2020, p. 111), ou seja, essas organizações voluntárias civis ditas apartidárias são usadas pelas elites estadunidenses na propagação de seu sistema de dominação.
Portanto, considero a contextualização e a conceituação feita pelos autores na introdução muito bem elaboradas e de extrema importância para o entendimento do restante do texto. Além disso, a bibliografia usada deixa claro o embasamento teórico do artigo e ajuda o público-alvo – normalmente a comunidade acadêmica de Relações Internacionais e Ciência Política – a compreender que esta pesquisa se encaixa mais nas vertentes marxista e na Teoria Crítica das Relações Internacionais.
Dando prosseguimento, nas próximas seções, os pesquisadores aprofundam e discorrem mais sobre pontos e hipóteses apresentados na introdução. Sendo assim, no tópico “A construção hegemônica”, os autores explicam como ocorre a formação da hegemonia no contexto de uma determinada ordem internacional. Ademais, para Vidal e Brum, a existência de uma hegemonia na ordem mundial é um fato e, de acordo com Gramsci, no Estado, a sociedade civil é fundamental para a sustentação da dominação de classes, pois, sem o consenso da população, não há legitimidade, e uma elite deslegitimada sucumbiria. Desse modo, “a hegemonia é característica dessa classe dominante, não propriamente do Estado” (Vidal; Brum, 2020, p. 112).
Além disso, como dito anteriormente, segundo Antonio Gramsci, a condição hegemônica é uma combinação de força e consenso, porém a força não pode sobrepor o consenso. Portanto, um sistema de regras baseado mais no poder consensual do que no poder coercitivo é essencial para a manutenção da hegemonia. Sendo assim, diferentes elites detentoras do capital estariam lutando para conquistar o controle do Estado e sua “capacidade estatal em produzir e impor a legitimidade de uma dada ordem social” (Bourdieu, 1996, 1998 apud Vidal; Brum, 2020, p. 112). Logo, o detentor da hegemonia precisará batalhar constantemente para conservar os meios simbólicos e materiais necessários para manutenção do poder hegemônico.
Outrossim, a hegemonia internacional é a expansão da hegemonia nacional de uma classe dominante transportada por intermédio do Estado (Vidal; Brum, 2020, p. 112). Essa hegemonia é transportada por meio de estratégias de universalização de objetivos e visões de mundo, segundo Vidal e Brum. A globalização, que consiste na expansão do capitalismo e depois do neoliberalismo, é um dos maiores exemplos dessa universalização. Posto isso, considero fundamental e positiva a caracterização da globalização feita pelos pesquisadores deste ensaio. Ainda, talvez coubesse um pouco mais de detalhamento para deixar mais claro os reais objetivos neoliberais de formação de consenso embutidos no processo globalizador, que, apesar de prejudicar as periferias (Santos, 2008), é vendido como benéfico.
Agora, retomando o texto, a expansão da ideologia dominante é aceita pela elite dos outros países. Esses valores também beneficiam-nos, já que há uma proximidade entre as classes dominantes de diferentes Estados, ou seja, existe uma convergência de interesses entre essas elites, facilitando o nascimento de uma classe dominante global que funda instituições e práticas transnacionais interconectadas propagadoras de suas visões de mundo (Bigo, 2011 apud Vidal; Brum, 2020, p. 113). Por último, os pesquisadores concluem esse tópico, dizendo que, para manter a hegemonia, é preciso que o país hegemônico sempre atualize sua estratégia de atuação. Desse modo, nos últimos anos, os Estados Unidos fazem prevalecer internacionalmente seu poder hegemônico, por meio de um imperialismo cultural e de uma “hegemonia indireta e aparentemente consensual” (Brzezinski, 1998, p. 36 apud Vidal; Brum, 2020, p. 113).
Na seção “A formação do consenso e aparelhos privados de hegemonia”, Vidal e Brum discorrem sobre a principal tática de hegemonia americana desde a Guerra Fria, que é empregar seu imperialismo cultural e ideológico para formar consenso por meio de instituições internacionais e aparelhos privados de hegemonia, dando enfoque nesses últimos.
Primeiro, os autores começam essa parte escrevendo que o neoliberalismo é a ideologia usada para reproduzir o sistema econômico, político e social que auxilia na conservação da ordem mundial dominada pelos interesses estadunidenses. Ademais, o liberalismo tem como sua principal característica a sobreposição do individualismo sobre a coletividade, havendo uma valorização do “privado” como uma depreciação da coisa pública. Dessa forma, a supremacia dos Estados Unidos consiste no esforço da elite americana em estabelecer uma maneira neoliberal de globalização, mas não coercitivamente, e sim consensualmente.
Logo, essa globalização neoliberal consensual ocorre através de think tanks (exemplo de aparelho privado de hegemonia) neoliberais, que são classificados como apartidários para separar o público do privado e mascarar possíveis interesses de um determinado grupo. Assim, essas instituições se apoiam na justificativa intelectual de pessoas ditas “especialistas”, ou “técnicas”, em algum assunto, seja em economia, política, ou cultura. Os think tanks também se aproximam, no entanto, do poder político e buscam um acesso a esse mundo de disputas políticas.
Para exemplificar, a Atlas Network é um think tank “guarda-chuva voltado a orientar a criação e a manutenção de institutos neoliberais chamados de parceiros” (Vidal; Brum, 2020, p. 114), criado em 1981, em um contexto internacional que contribuiu para a internacionalização de políticas neoliberais. Portanto, de forma neoliberal, o Atlas procura “fortalecer uma rede global de organizações independentes da sociedade civil, que promovam a liberdade individual e removam as barreiras ao desenvolvimento humano” (Atlas, 2019).
No Brasil, de acordo com Camila Vidal e Luan Brum, o Movimento Brasil Livre (MBL) é um dos parceiros da Atlas Network, que, graças a essa parceria, desempenhou um papel importante no impeachment de Dilma Rousseff. Além disso, a própria Atlas teve seu envolvimento no impeachment, divulgando manifestações contra o então governo petista em seu website, ou até mesmo de maneira física presencial.
Rede Atlas e a disseminação da agenda neoliberal (Fonte da imagem: Fundação ANFIP)
Outrossim, para Vidal e Brum (2015, p. 115), a estratégia usada pela Atlas Network (2019) é como uma “colonização pedagógica” (Jauretche, 1975 apud Vidal; Brum, 2020, p. 115) que busca educar economicamente por intermédio de recursos materiais e simbólicos que universalizam, na forma de consenso, os interesses das elites dominantes. Ainda, a Atlas e seus parceiros inserem sua ideologia aos poucos, fazendo os valores neoliberais parecerem inevitáveis. Em seguida, os autores do artigo afirmam que, ao receber suporte financeiro oriundo do National Endowment for Democracy (NED) – um organismo privado ligado ao Governo dos EUA e que surgiu para substituir as ações militares da Agência Central de Inteligência (CIA): “a Atlas atua enquanto extensão tácita da política externa estadunidense contribuindo para a promoção de políticas neoliberais e na desestabilização daqueles governos que desafiem a hegemonia estadunidense – algo já recorrente na história da América Latina” (Vidal; Brum, 2020, p. 115).
Ademais, o NED é uma ONG privada, porém fundada e financiada pelo Congresso dos Estados Unidos. Por conseguinte, com essa roupagem privada e liberal, o National Endowment for Democracy consegue financiar e “desenvolver políticas que normalmente seriam impedidas por princípios de soberania e não-intervenção” (Scott; Walters, 2000, p. 255 apud Vidal; Brum, 2020, p. 116). Com isso, foi possível incluir a participação da sociedade civil no contexto internacional dos institutos neoliberais.
Junto a isso, a Atlas Network direciona o financiamento recebido do NED e de outras instituições, como o Center for International Private Enterprise (CIPE), para institutos liberais ao redor de todo mundo, mas principalmente na América Latina, “transformando o dinheiro do contribuinte estadunidense em uma importante fonte de financiamento para uma rede cada vez maior” (Fang, 2017 apud Vidal; Brum, 2020, p. 117). Portanto, o “capital estatal” acaba assegurando o poder e permitindo a reprodução das classes dominantes no espaço social (Bourdieu, 1996 apud Vidal; Brum, 2020, p. 117).
Por último, no tópico “Classe dominante local e a formação de institutos liberais no Brasil”, Camila Vidal e Luan Brum falam que a construção do consenso só pode ser efetiva com o apoio da classe dominante local e como a criação de institutos neoliberais brasileiros contribuiu para isso. Logo, com o apoio e o financiamento principalmente da Atlas Network, surgiram instituições como o Instituto Liberal-RJ, permitindo que ocorra “uma simbiose entre elementos de uma classe dominante brasileira com uma estadunidense” (Vidal; Brum, 2020, p. 118). No final, as classes dominantes brasileiras e americanas têm o mesmo interesse: manter sua hegemonia e seus privilégios por meio do consenso.
Nas considerações finais, os pesquisadores concluem que não é possível falar do subdesenvolvimento latino-americano sem abordar o papel da política externa dos Estados Unidos na América Latina e sem observar que as estratégias de hegemonia neoliberal consensual funcionam apenas com a aliança entre as classes dominantes latino-americanas e estadunidenses. No entanto, apesar de não ser o foco do artigo, acredito que Vidal e Brum também poderiam ter citado brevemente o papel da colonização europeia no subdesenvolvimento dos países latino-americanos, pois “a empresa colonial […] é precursora do desastre e da catástrofe” (Césaire, 2020, p. 70). Logo, para mim, esta é uma pequena lacuna no artigo que poderia, mesmo que rapidamente, ser mais explorada.
Para concluir, o artigo de Camila Vidal e Luan Brum aqui abordado é uma excelente publicação, e compartilho com os autores grande parte de sua visão sobre o assunto, principalmente quanto ao papel da hegemonia americana na América Latina.
* Vitor Braga é graduando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID-UFRJ).
** Texto escrito como parte da avaliação proposta pela disciplina eletiva Hegemonia dos Estados Unidos, ofertada em 2022/2 pela professora colaboradora do IRID/UFRJ e editora do OPEU, Tatiana Teixeira, responsável por sua revisão e edição final. Nova versão recebida em 20 fev. 2024. Esta Resenha OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora Tatiana Teixeira, no e-mail: tatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas Newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mail: tcarlotti@gmail.com.
Obras citadas nesta Resenha OPEU
ATLAS NETWORK. Website oficial.
BIGO, Didier. Pierre Bourdieu and international relations: Power of practices, practices of power. International Political Sociology. Oxford, v.5, n.3, p.225-258, 2011.
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.
BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: Táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
BRZEZINSKI, Zbigniew. El gran tablero mundial. La supremacia estadounidense y sus imperativos geoestratégicos. Barcelona: Paidós, 1998.
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Veneta, 2020.
COX, Robert. Social Forces, States and World Orders: Beyond International Relations Theory. Millenium, v. 10, n. 2, p. 126-155, 1981.
FANG, Lee. Esferas de Influência. The Intercept, 11 agosto, 2017.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. v.3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2007.
JAURETCHE, Arturo. Los Profetas del Odio y la Yapa: La Colonización Pedagógica. Buenos Aires: Pena Lillo, 1975.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. 15ª ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008.
SCOTT, James.; WALTERS, Kelly. Supporting the wave: western political foundations and the promotion of a global democratic society. Global Society, New Jersey, v. 14, n. 2, 2000, p. 237-257.
VIDAL, Camila Feix; BRUM, Luan Correa. Por uma outra forma de (re)pensar as Relações Internacionais: hegemonia e criação de consenso. Rev. Conj. Aust., v. 11, n. 56, out./dez. 2020, p. 109-21.
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