Sociedade

O internacionalismo de Malcolm X

Malcolm X em manifestação política da Organização pela Unidade Afro-Americana por direitos dos trabalhadores negros nos Estados Unidos. Nas mãos, capa de jornal islâmico dos EUA com a manchete: ‘Pela liberdade não se pode esperar’ (Arquivo)

Série pelo Black History Month

Por Lucas Barbosa*

Não há sistema mais corrupto do que um sistema que representa a si mesmo como o exemplo de liberdade, o exemplo de democracia que pode ir mandando em todos os povos dessa Terra sobre como arrumar sua casa, e haver cidadãos desse país que ainda têm que usar armas se eles quiserem votar. A maior arma que as forças coloniais usaram no passado contra nosso povo sempre foi dividir e conquistar.

(Malcolm X, 1964)

O internacionalismo de Malcolm X é um aspecto muitas vezes ignorado do pensamento de um dos maiores ativistas dos direitos humanos do século XX. Além de grupos reacionários, especialmente nos Estados Unidos, dificultarem a devida circulação de suas ideias e distorcerem seu legado, a adoção de uma visão global na luta contra o racismo se tornou acentuada tardiamente na vida de Malcolm. Veremos a seguir, contudo, que ela já estava indiretamente presente desde sua infância.

Herança familiar

Louise e Earl Little eram membros da Associação Universal para o Progresso Negro (UNIA, na sigla em inglês) em Omaha, Nebraska, quando seu filho, Malcolm, nasceu em 19 de maio de 1925. A organização havia sido fundada em 1914 pelo empresário jamaicano Marcus Garvey, cujas propostas de combate à supremacia branca incluíam a união de afro-americanos, afro-caribenhos e outros indivíduos de ascendência africana de qualquer origem. Além disso, Garvey defendia uma união dos povos asiáticos, que também sofreram os processos de colonização europeia, em associação com o continente africano e a diáspora negra. Eram os princípios da UNIA que circulavam na casa dos Little e foram eles que fundamentaram a criação de Malcolm e seus sete irmãos. Sendo Louise uma mulher negra e imigrante de Granada, não seria surpresa que essa abordagem internacionalista ao problema do racismo lhe parecesse atraente.

Uma rara imagem de Louise Little, ano desconhecido (Fonte: Roots Renaissance Organization)

Louise e Earl eram constantemente perseguidos pela Ku Klux Klan (KKK), que fez a família se mudar para Indiana e depois para o Michigan, onde sua casa chegou a ser incendiada em 1929. Malcolm tinha quatro anos e, mesmo após o incêndio, já era levado pelo pai às reuniões da UNIA. Dois anos depois, Earl morreu, no que foi oficialmente registrado como um acidente de trânsito – ele teria tropeçado nos trilhos e sido atropelado por um bonde. Os Little, no entanto, sempre acreditaram que o atropelamento foi planejado pela Legião Negra, outro grupo supremacista branco.

Após a morte de Earl, a pressão de sustentar oito crianças levou Louise a um colapso mental, sendo internada no Hospital Estadual Kalamazoo (hoje Hospital Psiquiátrico Regional Kalamazoo) em 1939. Lá permaneceu por 24 anos, até 1963. Malcolm e seus irmãos entraram no sistema de assistência social e foram alocados em diferentes instituições.

Escola, prisão e a Nação do Islã

Na escola, Malcolm era um excelente aluno, chegando ao posto de melhor da turma. Quando contou para um professor branco que aspirava à carreira de advogado para ajudar a mãe, foi prontamente desencorajado por ele, que disse que esse não era um objetivo realista para um negro. Malcolm rapidamente perdeu o interesse na escola, sendo expulso aos 14 anos e entrando para o mundo do crime no Harlem. Em 1946, com 20 anos, Malcolm foi preso por furto. Ele passaria sete anos na prisão, onde conheceu a Nação do Islã.

Com a deportação de Marcus Garvey dos Estados Unidos, a Nação do Islã foi uma organização de nacionalismo negro de influência islâmica que preencheu o vácuo deixado pelo declínio da UNIA. Criada por W. D. Fard, a Nação do Islã tinha semelhanças com as pautas que já eram familiares para Malcolm e seus irmãos: pregava a separação completa de brancos e negros, o desenvolvimento da autossuficiência da população negra e a unidade afro-asiática. No entanto, havia diferenças: enquanto Garvey baseava sua separação de raças em diferenças de cunho determinista, Fard afirmava que essa separação era necessária porque os brancos seriam – literalmente – demônios.

Além disso, a Nação do Islã sugeria uma cisão completa dos negros com o sistema político vigente, uma vez que ele foi criado por brancos e não estaria aberto para apoiar as demandas da população negra. Esta característica em particular teve grande peso sobre Malcolm, que passaria o resto de sua vida defendendo que os negros deveriam se proteger da violência promovida pelos brancos por qualquer meio necessário, inclusive aqueles que não eram legitimados pelo Estado – o maior ponto de discordância entre ele e um de seus principais contemporâneos, Martin Luther King Jr., que acreditava na transformação social pela não violência.

The Autobiography of Malcolm X: As Told to Alex Haley | Amazon.com.brMalcolm passou a trocar correspondência com Elijah Muhammad, que tomou a liderança da Nação do Islã após o desaparecimento de Fard, de quem foi seu maior discípulo. Muhammad jurava, e assim ensinou a Malcolm e seus demais seguidores, ser a encarnação de Alá, assim como Fard teria sido antes dele.

Foi também na prisão que Malcolm passou a rejeitar o sobrenome Little, que ele via como uma ferramenta de opressão, símbolo do apagamento ao qual as famílias escravizadas nos Estados Unidos e em outros países foram submetidas. Em sua autobiografia (ainda não publicada no Brasil), Malcolm escreveu: “Para mim, meu ‘X’ substituiu o nome branco do senhor de escravos ‘Little’, que algum demônio de olho azul chamado Little impôs aos meus pais”.

Idas e vindas

Após sua saída da prisão, em agosto de 1952, Malcolm X se tornou rapidamente um dos nomes mais proeminentes da Nação do Islã. Quando Rosa Parks incendiou o boicote aos ônibus de Montgomery em dezembro de 1955, ele era chefe do templo da Nação no Harlem. Foi neste ano que Malcolm se voltou para o internacionalismo de forma direta.

A Conferência de Bandung, também conhecida como a Conferência Afro-Asiática, realizada em abril daquele ano na Indonésia, chamou a atenção de Malcolm. Nações da África e da Ásia, recém-independentes ou ainda travando guerras de independência, reuniram-se para discutir como, apesar de individualmente fracas, poderiam construir uma força coletiva de benefício mútuo em um mundo pós-colonial. De acordo com Manning Marable, biógrafo de Malcolm X:

A Conferência de Bandung representou o início de uma época e cristalizou nas ideias de Malcolm as possibilidades de unificação, internacional e nacionalmente, com outros afro-americanos e seguidores do Islã. Ele agora insistia em dizer que os líderes negros americanos precisavam ‘realizar uma Conferência de Bandung no Harlem’. […] Seus sermões traziam referências cada vez mais frequentes a acontecimentos na Ásia, na África e em outras regiões do Terceiro Mundo, e ressaltavam a proximidade dos americanos negros com a humanidade não ocidental de pele escura…

Como a Nação do Islã era contra o engajamento político tradicional, essa foi uma divergência discreta entre Malcolm X e a organização, a primeira de outras que se seguiriam nos anos seguintes.

Em 1958, Malcolm foi enviado por Muhammad ao Oriente Médio com a missão de estabelecer laços entre a Nação e o mundo islâmico – que, embora o recebesse de forma oficial aonde quer que fosse, não retribuía o mesmo interesse. Durante suas visitas, Malcolm X percebeu que os ensinamentos da Nação eram considerados sacrilégio em países islâmicos: considerar brancos demônios seria blasfêmia, uma vez que o Islã seria uma religião universal que não acreditava na noção de raça, e Elijah Muhammad se autoproclamar a voz de Alá na Terra, heresia.

Ao retornar para os Estados Unidos, Malcolm mudou seu discurso de forma tímida. Em vez de dizer que brancos eram demônios, por exemplo, passou a dizer que suas atitudes eram comparáveis às de demônios. Malcolm agora também dirigia seus sermões a todos, não apenas aos negros, tornando-se um palestrante popular entre os universitários da década de 1960. Essas transformações começaram a incomodar seus correligionários da Nação, embora Malcolm ainda afirmasse sua lealdade.

Tal lealdade foi levada ao limite em 1964, quando Malcolm investigou pessoalmente, e descobriu serem verdadeiras, as acusações de adultério e assédio sexual levantadas contra Muhammad. Nesse período, a Nação do Islã também estava envolvida em sérias acusações de corrupção. Em março, desencantado com seu maior guia até então, Malcolm X deixou o grupo, declarando à imprensa que agora ele poderia se envolver no movimento pelos direitos civis da forma que ele realmente gostaria, o que alimentou ainda mais a fúria daqueles que viam em Malcolm um traidor.

Em abril, após fundar a Muslim Mosque, Inc., que Malcolm esperava ser uma organização que ensinaria o Islã tradicional aos negros estadunidenses, ele viajaria para o Oriente Médio mais uma vez, dessa vez para visitar Meca.

A Organização da Unidade Afro-Americana

Malcolm voltou aos Estados Unidos transformado após sua peregrinação na Arábia Saudita. Em uma carta para seu biógrafo, Alex Hayley, ele diz: “Comecei a me dar conta de que ‘homem branco’, como a expressão é comumente usada, significa cor da pele apenas secundariamente; primariamente descreve atitudes e ações”. Como explica Marable,

a poderosa visão de milhares de pessoas de diferentes nacionalidades e etnias rezando em uníssono para o mesmo deus comoveu Malcolm profundamente […] No mundo muçulmano, ele viu indivíduos que nos Estados Unidos seriam classificados como brancos e que, no entanto, “eram mais genuinamente fraternos do que qualquer outra pessoa jamais foi”. Malcolm não demorou para atribuir ao Islã o poder de transformar brancos em não racistas.

Malcolm X of the Organization of Afro-American Unity and t… | Flickr

Malcolm X conversa com a escritora Maya Angelou, em Gana, em maio de 1964, quando o ativista visitou o país (Fonte: Abayomi Azikiwe/ Flickr)

Antes de voltar para casa, contudo, Malcolm também visitou Gana a convite do então presidente Kwame Nkrumah – um convite que também foi aceito por outros 300 indivíduos, incluindo personalidades como a escritora Maya Angelou e o ativista Pauli Murray. No momento de pós-independência de Gana, Malcolm foi recebido por um conjunto de revolucionários anticapitalistas que também moldaram novas tendências em suas ideias.

De acordo com esses revolucionários socialistas de origens variadas, inclusive europeia, asiática e latino-americana – influenciados principalmente por W. E. B. Du Bois, cuja esposa, Shirley Graham, Malcolm conheceu em Gana –, o sistema capitalista depende da exploração e, porque a exploração depende do racismo, há uma relação de interdependência entre os dois. Para Marable, essa é a primeira vez que Malcolm X associa a opressão racial com a economia capitalista, o que seria impossível se ele continuasse sob a luz de Garvey ou de Muhammad. O pensamento de ambos fundamentava que a libertação dos negros nos Estados Unidos dependia de um capitalismo negro, ou seja, não perpassava transformações na economia política. A partir de então, Malcolm passa a associar a superação do racismo com a superação do capitalismo.

É com essa nova visão de mundo que Malcolm retorna aos Estados Unidos em maio de 1964 e, no mês seguinte, funda a Organização da Unidade Afro-Americana (OAAU, na sigla em inglês). Em seu discurso fundador, Malcolm reconhece o caráter intelectualmente transformador que sua última viagem exerceu sobre si e expressa admiração pelo processo de independência política que os países africanos experimentavam:

Há apenas dez anos no continente africano, nosso povo era colonizado. […] E em pouco tempo, eles ganharam mais independência, mais reconhecimento, mais respeito como seres humanos do que você e eu temos. E você e eu vivemos em um país que supostamente é o epicentro da educação, liberdade, justiça, democracia e todas essas palavras que soam tão bem.

Enquanto a Muslim Mosque, Inc. seria a organização de cunho religioso de Malcolm, a OAAU seria estritamente política, inspirada nos esforços que levaram à criação da Organização da Unidade Africana (OUA, hoje União Africana). Da mesma maneira que a OUA era composta por Estados africanos dispostos a cooperarem em nome do combate ao colonialismo, Malcolm queria reproduzir o modelo com o intuito de reunir distintas organizações do movimento negro estadunidense.

Impulsionado por suas experiências internacionais, Malcolm esperava que a OAAU se expandisse para além dos Estados Unidos:

Nós começamos primeiro em Nova Iorque. […] com a intenção de nos espalharmos por todo o estado, e então do estado pelo país, e do país por todo o hemisfério ocidental. Porque quando dizemos afro-americano, nós incluímos cada um no hemisfério ocidental de descendência africana. A América do Sul é América. A América Central é América.

Uma vez que a OAAU já tivesse se espalhado pelo “Ocidente”, o próximo estágio seria a aproximação com organizações na África: “Uma vez que estejamos unidos entre nós no hemisfério ocidental, nos uniremos aos nossos irmãos na nossa terra-mãe, no continente africano”.

O projeto de Malcolm estava alinhado à percepção de outros líderes do movimento pelos direitos civis de seu tempo: o entendimento comum de que, embora novas legislações favoráveis ao movimento fossem conquistadas ao longo do tempo, não havia disposição por parte do Estado de garanti-las na prática. Os negros estadunidenses estavam à mercê da boa-vontade das instituições de cumprir seus direitos recém-adquiridos. Aproximar-se da África, da Ásia e da América Latina, propor um modelo de organização internacional, adotar um discurso de direitos humanos em substituição aos direitos puramente civis, tudo isso contribuiria para elevar a pressão no cenário internacional.

Em julho de 1964, Malcolm X foi recebido na segunda reunião da OUA, no Cairo, como representante da Organização da Unidade Afro-Americana. Ele pediu que os representantes africanos denunciassem formalmente na ONU as violações de direitos humanos por parte dos Estados Unidos, o que foi rejeitado pela organização. Malcolm persistiu, viajando por diversos países do continente, procurando o apoio de pelo menos um Estado disposto a abrir o tema para debate na ONU.

Malcolm X na Grande Mesquita de Mohammed Ali, no Cairo, 1964 (Fonte: blog Finwise)

Em outubro, o Parlamento do Quênia aceitou, mas o governo estadunidense já considerava Malcolm X um inimigo do Estado. J. Edgar Hoover, então diretor do FBI (a Polícia Federal dos EUA), havia enviado alguns meses antes ao escritório da agência em Nova Iorque um telegrama que dizia “Faça algo sobre Malcolm X”.

Quando ele foi assassinado em fevereiro de 1965, durante um evento da OAAU no Audubon Ballroom, as circunstâncias de sua morte abriram margem para todo tipo de especulação, incluindo o envolvimento das forças federais. O que se sabe, porém, e o que já foi admitido pela procuradoria do distrito de Nova Iorque, é que a polícia escondeu evidências fundamentais para o esclarecimento do caso. Infelizmente, a Organização da Unidade Afro-Americana não continuou por muito tempo após a morte de Malcolm.

Hoje, Malcolm X permanece uma figura divisiva na história dos Estados Unidos, assim como era na década de 1950 e 1960, mas seu desejo por uma cooperação transnacional que pusesse fim ao racismo e às demais mazelas do colonialismo continua tão relevante quanto nunca.

 

* Lucas Barbosa é mestrando em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGCP-UNIRIO). Graduado em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IRID/UFRJ), cobre a área de relações Estados Unidos-América Latina como pesquisador colaborador do OPEU/INCT-INEU. Contato: lucasmabar@gmail.com.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. 1ª versão recebida em 21 fev. 2024. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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