América esquece palavras de Mateus ao utilizar gás nitrogênio para pena capital
(Arquivo) Câmara de execução em Oklahoma, em 7 de maio de 2010 (Crédito: Josh Rushing/Flickr)
Por Débora Binatti* [Informe OPEU]
Mateus, na Bíblia, narra as palavras de Jesus em um de seus encontros, no capítulo 5 de seu livro. Neste trecho, ele conta como Jesus se juntou à população, saudando a todos conforme suas individualidades e lembrou-lhes que, como Filho de Deus, não estaria ele ali para desdizer nenhum dos outros profetas, mas para cumprir os mandamentos anteriores. Nesse contexto, afirma-se:
“Vocês ouviram o que foi dito aos seus antepassados: ‘Não matarás’, e ‘Quem matar estará sujeito a julgamento’. Mas eu lhes digo que qualquer um que se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento. Também, qualquer um que disser a seu irmão: ‘Racá’, será levado ao tribunal. E qualquer um que disser: ‘Louco!’, corre o risco de ir para o fogo do inferno”.
O que será do destino espiritual da Suprema Corte Americana depois que se recusou a intervir na execução de Kenneth Smith em 25 de janeiro deste ano, utilizando o método não testado de hipoxia de nitrogênio?
Como noticiado no jornal The New York Times, o caso ocorreu no estado do Alabama, quando o réu confesso de um assassinato, cujo júri já havia votado para ter sua vida poupada, foi morto a partir da decisão que coube à Suprema Corte. Esse incidente abre uma nova fronteira na forma como os estados executam prisioneiros no corredor da morte. Tal fronteira não é apenas prática, como moral, visto que esse novo método de execução, segundo especialistas, pode levar à dor excessiva, ou até mesmo à tortura.
Kenneth Smith (Fonte: print de matéria publicada na ABC7 News)
Antes mesmo da segunda recusa, a Suprema Corte dos EUA já havia se negado a intervir no caso de Smith pela primeira vez na quarta-feira, depois que os advogados da defesa tentaram argumentar que uma segunda tentativa de execução violaria a proteção da Constituição dos EUA contra punições cruéis e incomuns. A equipe de Smith recorreu novamente na manhã de quinta-feira à Suprema Corte, sem sucesso.
Observa-se que, apenas em 2022, o estado do Alabama tentou prosseguir com três execuções em sequência, as quais poderiam ser consideradas “execuções fracassadas”, isto é, que não seguiram o protocolo estabelecido. Em dois dos casos, incluindo o do próprio Smith, os presos sobreviveram, graças ao cancelamento das execuções. O recuo das autoridades se deu por não conseguirem definir uma linha intravenosa usada para administrar as drogas fatais antes que os mandados de morte expirassem. Dessa forma, chega-se à seguinte situação: Alabama, junto com Oklahoma e Mississipi, tem o uso de nitrogênio em execuções aprovado, contudo, diferentemente dos outros dois estados, ela se torna pioneira em seu uso, sentenciando Smith, como reporta a CNN.
Como noticiado pela rede Al Jazeera, a morte de Smith marca a primeira vez que um novo procedimento de execução é utilizado nos Estados Unidos desde que a injeção letal, atualmente o método mais utilizado, foi introduzida em 1982. Nesse mesmo artigo, destaca-se que a “execução de Smith durou cerca de 22 minutos e, segundo a agência de notícias Associated Press, Smith pareceu tremer e se contorcer na maca, por vezes puxando contra as amarras, durante alguns minutos. Seguiram-se vários minutos de respiração pesada até que a respiração deixou de ser perceptível”.
Nesse contexto, é importante buscar uma perspectiva biológica e material da hipoxia por nitrogênio, nome técnico do processo que causou a morte de Smith na execução pelo estado de Alabama.
A hipoxia é a condição decorrente da redução da quantidade normal de oxigênio no corpo humano, que normalmente pode ser causada por obstrução do trato respiratório superior, se exposto a grandes altitudes, ou no caso da inalação de gases inertes. Esse último caso, o de inalação, foi o que causou a morte do condenado. Destaca-se que a morte não é causada pela toxicidade do gás, mas pela ausência e supressão do oxigênio a partir da mistura de gás respirada. Dessa forma, o coração continua a bater durante um curto período, após a parada do sistema respiratório. Por fim, os relatórios das necropsias não descrevem nada senão a asfixia, conforme o artigo de Kevin M. Morrow. Ainda na mesma obra, o ator afirma que a utilização de nitrogênio em execuções resultará em dores imensas e grave sofrimento.
Invisibilidade do sofrimento
Kenneth Smith foi acusado de ser um assassino de aluguel e foi sentenciado à morte após sua condenação pelo homicídio de Elizabeth Dorlene Sennett em 1989. Por isso, assim estabelece a lei, merece ter sua morte legalmente assistida e sem seu próprio consentimento, de maneira lenta, decrépita e agonizante até seu último segundo, em 2024.
O ponto central da agonia e do sofrimento não parece chegar ao noticiário estadunidense. A CNN, por exemplo, limita-se a falar que pouco se sabe sobre o método de execução e que “o Estado [Alabama], nos registros do tribunal, indicou que as redações foram feitas para manter a segurança e que acredita que a morte por gás nitrogênio é ‘talvez o método mais humano de execução alguma vez concebido’”.
Fonte: Verdict Justia
Todo o caso vale para questionar não somente o uso de nitrogênio e da morte por hipoxia nos corredores de espera pela pena capital, como a sentença de morte em si. Alabama não é o único. Arizona, Arkansas, Califórnia, Flórida, Geórgia, Idaho, Indiana, Kansas, Kentucky, Louisiana, Mississippi, Missouri, Montana, Nebraska, Nevada, Carolina do Norte, Ohio, Oklahoma, Oregon, Pensilvânia, Carolina do Sul, Dakota do Sul, Tennessee, Texas, Utah, Wyoming também adotam essa prática. Além desses estados, o governo dos EUA e suas Forças Armadas também detêm essa possibilidade jurídica. No total, é uma proporção de 27 estados com pena de morte para 23 estados sem, embora seis estados que a apresentam em sua legislação estejam com execuções suspensas por decisão do governo local. De toda forma, ainda são 27 estados, nos quais sequer a própria entidade legal do Estado está disposta a respeitar a mais fundamental premissa dos Direitos Humanos: Artigo 3, direito à vida.
Vale questionar também a manutenção desse costume legislativo, devido aos custos envolvidos em continuar sentenciando pessoas à morte. Segundo o Death Penalty Information Center, “A pena de morte é muito mais dispendiosa do que um sistema que utilize a pena de prisão perpétua sem liberdade condicional como pena alternativa. Algumas das razões para o elevado custo da pena de morte são os julgamentos e recursos mais longos que são necessários quando a vida de uma pessoa está em jogo, a necessidade de mais advogados e peritos em ambos os lados do caso e a relativa raridade das execuções. A maioria dos casos em que a pena de morte é solicitada não termina com a imposição da pena de morte. E, uma vez imposta a pena de morte, o resultado mais provável do caso é que a condenação, ou a sentença de morte, seja anulada pelos tribunais. A maioria dos réus que são condenados à morte acaba, essencialmente, por passar a vida na prisão, mas a um custo altamente inflacionado, porque a pena de morte esteve envolvida no processo”.
A ONG Interrogating Justice apresenta isso com dados materiais concretos, o que torna evidente tal disparidade. De acordo com a Anistia Internacional dos EUA, a Califórnia gasta em torno de US$ 137 milhões com seu sistema penal com pena de morte, custo que seria reduzido para US$ 11,5 milhões sem a pena capital.
Para além da materialidade financeira, há também outro argumento contra o retrocesso judicial que é a existência da pena de morte: a falibilidade jurídica. Ernest Thomas e Samuel Shepherd passaram 70 anos na prisão para depois terem seu crime absolvido após terem sido inadequadamente condenados pelo crime de estuprar uma mulher branca quando ainda eram adolescentes negros, como pode ser visto na reportagem da NPR e da CNN. Dessa forma, é inegável também as imbricações de classe, raça e gênero, problematizadas pela professora, filósofa e ativista Angela Davis, no que tange à aplicação da justiça por parte do Judiciário e às penas da Justiça penal. Derek Chauvin, assassino de George Floyd, não enfrentará um corredor da morte, assim como Al Capone não enfrentou.
Assim sendo, falar do caso da Suprema Corte dos Estados Unidos que se recusou a intervir na execução de Kenneth Smith na quinta-feira, 25 de janeiro, é falar dos problemas penais de um Estados Unidos que se esquece dos princípios religiosos – da moral judaico-cristã – e seculares – os valores ocidentais e os Direitos Humanos – do próprio império. É observar ruir os pilares, a partir dos quais o império dos EUA se construiu. Por fim, são tempos de se (re)ler a Bíblia.
* Débora Magalhães Binatti é bolsista de Iniciação Científica (INCT-INEU/OPEU, PIBIC/CNPq), graduanda em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IRID/UFRJ) e pesquisadora do INANA. Contato: dmfcbinatti@gmail.com. Twitter: @debs_binatti. Instagram: @debs_binatti.
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Recebido em 29 jan. 2024. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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