O Manual de Sobrevivência da Superpotência, segundo Samuel Huntington
Crédito: Ryan Stone/ Unsplash
Por Vitória Martins Queiroz* [Resenha OPEU]
“The Lonely Superpower”, artigo de Samuel Huntington (1999) para a Revista Foreign Affairs, é um manual de como os Estados Unidos, a única superpotência no globo à época, deveriam conduzir sua política externa em um sistema multipolar em ascensão.
Huntington (1927-2008) foi um cientista político americano, professor da Universidade de Harvard durante 58 anos. Considerado um importante ideólogo da política externa dos EUA, esse democrata trabalhou na Casa Branca para o Conselho de Segurança Nacional no governo Jimmy Carter (1977-1981) entre os anos 1977 e 1978. Entre seus trabalhos mais relevantes, destaca-se a obra O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial, publicado pela primeira vez no Brasil em 1997, pela Objetiva.
Poder versus polaridade
No primeiro dos cinco tópicos do artigo, “A nova dimensão de poder” (tradução nossa), o autor define os conceitos de unipolaridade, bipolaridade e multipolaridade, a fim de situar os Estados Unidos ante as mudanças sistêmicas no pós-Guerra Fria.
O sistema internacional do período é descrito como uni-multipolar, marcado pela presença de uma superpotência somada às grandes potências regionais e às potências regionais secundárias – os Estados menores e menos influentes em uma região, que vivem em conflito com as primeiras.
A dissociação feita entre polaridade e poder é um ganho teórico. A partir desta diferenciação é concebível um sistema uni-multipolar, em que um dos polos, o da superpotência, destaca-se dos demais Estados em termos relativos de poder. Portanto, a superpotência seria o único Estado, cujo poder, em suas dimensões militar, econômica, diplomática, ideológica, tecnológica e cultural, e influência perpassam todas as regiões do mundo.
O declínio do poder americano
Em meio ao debate entre hegemonia e declinismo do poder americano, o autor se posiciona como declinista e faz referência à fala do ex-conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos Zbigniew Brzezinski: “os Estados Unidos serão a primeira, última e única superpotência global” (tradução nossa).
Segundo Huntington, o século XXI seria multipolar, ocorrendo a mudança do status quo dos Estados Unidos para o de uma potência, equiparando-o às demais potências de influência regional no globo.
Nos primeiros 20 anos do século, o poder americano tem alcance global, ao menos nas dimensões econômica, pois o dólar americano continua sendo a moeda de referência mundial, e militar. O país tem, no entanto, perdido influência nas dimensões cultural e ideológica do poder, mesmo que o capital financeiro, a expressão última do sistema e da ideologia capitalista, esteja em contínua expansão.
O futuro do hegemon global
No segundo tópico, “Não tão benigno” (tradução nossa), o autor argumenta ser ineficaz formular a política externa americana como se o sistema ainda fosse unipolar, e os Estados Unidos, uma superpotência. A defesa deste país enquanto “hegemon benevolente” também ameaça o exercício de seu próprio poder.
Huntington define a “hegemonia benevolente” como uma “síndrome”, na qual estadistas e políticos americanos compartilham a crença de que os “valores, práticas, instituições, cultura e princípios” dos Estados Unidos são congruentes com aqueles praticados, ou desejados, pelo restante do mundo. E, como consequência, caberia a este Estado, na posição de hegemon, intervir nas regiões do globo, a fim de perpetuá-los.
(Arquivo) Samuel Huntington na sessão ‘Quando as culturas entram em conflito’, no encontro anual do Fórum Econômico Mundial, em Davos, Suíça, em 25 jan. 2004 (Crédito: Fórum Econômico Mundial/Flickr)
Na década de 1990, o ideólogo analisa uma rejeição generalizada e em cadeia desta ideia como justificativa para as políticas intervencionistas, à medida que as potências regionais aumentavam seu poder relativo no sistema uni-multipolar.
A necessidade de legitimação de suas intervenções militares pelas organizações internacionais é apresentada como outro sinal do enfraquecimento da hegemonia americana. Historicamente, porém, os Estados Unidos vêm contrariando as decisões destas instituições, sem que isto cause danos relevantes ao seu status de hegemon global. É importante observar que a publicação do artigo é anterior aos atentados do 11/9, um evento amplamente usado pelo governo dos Estados Unidos para tentar reafirmar e fortalecer sua posição de superpotência.
Já o uso de ações coercitivas, como sanções de caráter econômico, ou militar, na tentativa de manutenção de sua hegemonia, é retratado por Huntington como práticas insustentáveis no sistema multipolar, no longo prazo. A retirada das tropas militares dos Estados Unidos do Afeganistão, em agosto de 2021, expôs como, em um século XXI cada vez mais multipolarizado, as intervenções lideradas por este país sofrem a influência de seus aliados e dos opositores, como China e Rússia.
“Recuperar moral” é preciso
No terceiro tópico, “A superpotência pária” (tradução nossa), a preocupação central de Huntington é com a diminuição crescente de apoio da comunidade internacional às ações dos Estados Unidos.
A classificação de governos estrangeiros como “Estados pária” têm efeito colateral para os Estados Unidos, pois a comunidade internacional poderia proclamá-los como “heróis do anti-imperialismo americano” por sua capacidade de resistir às intervenções da “maior potência do mundo”. Além disto, acrescenta, as potências regionais defendem que a política externa americana é conduzida fora das normas de conduta da comunidade internacional, alcunhando o país de “superpotência pária”.
O autor afirma, ainda, que os países e regiões, em sua maioria, não veem os Estados Unidos como seu porta-voz, sendo inevitável que este Estado se torne “solitário e isolado”, restando-lhe apenas alguns parceiros – como a região anglo-saxã, Israel e Ucrânia.
“Invejosos e ressentidos” não cooperam
Em “Respostas Flexíveis” (tradução nossa), o autor trata dos níveis de respostas que as potências regionais dão à superpotência. De acordo com Huntington, em um nível relativamente baixo estão os sentimentos de inveja, humilhação, raiva e ressentimento em relação aos Estados Unidos. Em um nível mais significativo, o ressentimento pode se transformar em dissidência e em recusa de cooperação. Em outros casos, a dissidência se torna rejeição e oposição total ao país.
O nível mais alto de resposta seria a formação de uma “coalizão contra-hegemônica”, envolvendo várias grandes potências. Para o autor, este último nível é um fenômeno natural de um sistema uni-multipolar. Em um mundo globalizado e multicultural, as grandes potências regionais tenderiam a buscar uma “política global multicivilizacional”, equilibrando a distribuição de poder no sistema.
Com o fim do faroeste, é preciso compartilhar a liderança
No mundo multipolar, insistir na ação unilateral, intervencionista e coercitiva levaria o hegemon ao isolamento. Assim, o caminho mais seguro para os Estados Unidos seria o da cooperação e da liderança compartilhada. Huntington também explica que a identificação em termos de poder e cultura definiria as alianças e os antagonismos formados no sistema internacional atual. Em “O xerife solitário” (tradução nossa), o autor propõe duas possíveis estratégias de atuação diante deste cenário.
Os Estados Unidos poderiam se aliar às potências regionais secundárias, devido ao interesse comum em limitar o poder das grandes potências. Como mais vantajoso, porém, o autor sugere a cooperação com as principais potências do sistema para manter a estabilidade em suas respectivas regiões e, consequentemente, a ordem internacional. A adoção do “policiamento comunitário” permitiria ao país abandonar o papel de “xerife solitário” e transferir a “responsabilidade” e os “custos” pela ordem regional para as principais potências.
Neste contexto, a intervenção americana deveria se restringir às situações de potencial violência e a casos que envolvem Estados de diferentes civilizações. Além disso, os EUA deveriam parar de intervir na Europa, pois a cooperação transatlântica seria o primeiro “antídoto” para a prática do policiamento solitário. Crente do declínio do poder americano e do fim definitivo da era unipolar, Huntington preferiu afirmar que, “… no mundo multipolar, os Estados Unidos teriam uma posição menos exigente, menos contenciosa e mais recompensadora” do que aquela de única superpotência do mundo.
Percebe-se que as críticas tecidas ao comportamento americano no sistema internacional têm o objetivo de aprimorar sua ação de política externa e de propor soluções de como este Estado pode prolongar uma “boa posição” de potência nessa “inevitável” passagem do sistema uni-multipolar para o multipolar.
Huntington e o sistema internacional no século XXI
O declínio do poder americano é uma realidade do século XXI. Apesar disto, o país continua sendo o hegemon do sistema internacional, pois ainda tem preponderância econômica, militar e cultural entre os demais. A hegemonia em termos políticos e geopolíticos sofre, contudo, antagonismos cada vez mais acirrados.
A “inevitável passagem” para a multipolaridade também pode ser considerada uma realidade sistêmica atual. A escolha teórica por separar os conceitos de poder e de polaridade explica como os Estados Unidos continuam exercendo hegemonia em um mundo multipolar. Esta dissociação possibilita coexistir um poder preponderante, cujo alcance seja global, o hegemon, que dialoga com os outros polos de poder, as grandes potências e as potências secundárias limitadas a disputar entre si por influência regional.
Embora o autor tenha destacado a China como um dos fortes opositores à política externa dos Estados Unidos, ele não a considerava uma superpotência em ascensão. Huntington acreditava que os Estados Unidos seriam “a primeira e última superpotência” e que assumiriam uma posição de potência regional ao longo do presente século. Ao contrário do afirmado por ele, a influência global americana permitiu a este país manter seu status quo de superpotência. No entanto, a China também é considerada uma superpotência por alguns estudiosos, uma vez que tem exercido crescente influência durante os últimos 20 anos no cenário global.
Por um lado, a análise de Huntington sobre o fim definitivo da era unipolar foi pertinente. Por outro, a multipolaridade do sistema internacional do século XXI não é uma certeza, como defendia o autor. O decrescimento americano somado à expansão chinesa leva a afirmações sobre a forte tendência de consolidação de um mundo bipolar, com Estados Unidos e China como os dois principais polos de poder.
Essa presunção desconsidera, no entanto, que a bipolaridade prevê a constante superação de uma superpotência sobre a outra em termos de poder, como aconteceu na corrida armamentista entre Estados Unidos e URSS durante a Guerra Fria. Ou, minimamente, uma paridade entre os pares.
No contexto atual, a China não superou os Estados Unidos em nenhum dos âmbitos do poder, e há indicações de que haverá uma desaceleração de seu crescimento econômico. A previsão de superar a economia americana, anteriormente em 2030, deve ocorrer em 2040, porém os Estados Unidos logo tendem a retornar à primeira posição. De toda forma, com a China em seu encalço, os Estados Unidos podem não ser o último país a ser uma superpotência.
Os presidentes Joe Biden (EUA) e Xi Jinping (China), e a disputa pela hegemonia (Crédito: Matthew Absalom-Wong/The Sydney Morning Herald)
Apesar do declínio do poder dos Estados Unidos nas últimas décadas, o dólar americano ser a moeda de referência mundial concede certa “imunidade” às suas ações de política externa – e interna –, dificultando a formação de uma coalizão contra-hegemônica.
Huntington focou na cultura e no poder como os princípios organizadores das alianças e dos antagonismos do sistema, mas não previu como todo o mundo está sob a égide do dólar americano, podendo considerá-lo o maior protetor da hegemonia desse país.
O sistema internacional não é exatamente como previsto por Huntington, apesar de suas ideias auxiliarem na compreensão da dinâmica atual das relações internacionais. Ao longo do século XXI, os Estados Unidos devem continuar sendo uma (super)potência solitária, assombrados pela China e protegidos por sua moeda.
* Vitória Martins Queiroz é graduanda em Relações Internacionais (IRID/UFRJ) e pesquisadora bolsista de Iniciação Científica INCT-INEU/OPEU (PIBIC-CNPq). Contato: vitoriamartins488@gmail.com.
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. A primeira versão desta Resenha OPEU foi entregue como avaliação parcial na minha disciplina de “Hegemonia x Declinismo: o debate do Pós-Guerra Fria nos EUA”, referente ao período 2021/2, no Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ). Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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