Doutrina Monroe completa 200 anos ante nova disputa hegemônica EUA-China
Ilustração da época do anúncio da Doutrina Monroe (Fonte: Prensa Bolivariana)
Por Yasmim Reis e Victória Louise Quito* [Informe OPEU]
O Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU) promoveu seu seminário internacional anual no dia 30 de novembro de 2023, em São Paulo. O encontro reuniu diversos pesquisadores brasileiros e estrangeiros para debater o tema “Encruzilhada: a América Latina frente à disputa hegemônica global”. Dentre as várias mesas que compuseram o evento, a primeira tratou dos 200 anos da Doutrina Monroe no contexto da atual disputa hegemônica entre EUA e China na América Latina.
“Doutrina Monroe remonta à formação de Nação para os EUA”
Ao longo das últimas décadas, o mundo tem observado o acirramento da disputa entre EUA e China pela influência hegemônica, sobretudo, no governo de Donald Trump (2017-2021), o qual, por meio de seu então conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, resgatou uma nova reinterpretação da Doutrina Monroe. Essa doutrina é considerada a política externa basilar dos EUA para a região do hemisfério ocidental.
Desse modo, para iniciar a discussão, alguns pontos se apresentaram como importantes para a compreensão de como uma Doutrina do século XIX ainda poderia ecoar na política externa norte-americana na contemporaneidade. O primeiro ponto é que a Doutrina foi lançada e perdurou por aproximadamente 40 anos sob a ideia da formação de uma nação que precisava consolidar a noção de hemisfério ocidental. Além disso, sublinha-se que a Doutrina é associada ao presidente James Monroe (1817-1825), que a institucionalizou em 2 de dezembro de 1823. Porém, também se destaca a participação de Thomas Jefferson (1801-1809), presidente anterior, que teve grande influência em sua formação, a partir do incentivo à expansão para o Oeste dentro do território norte-americano. Portanto, infere-se que a referida Doutrina se refere, no imaginário norte-americano, à ideia de Nação.
Nesse sentido, o pesquisador Raúl Rodríguez, da Universidad de La Habana, Cuba, apresentou seus estudos sobre o tema, partindo da concepção de que essa expansão para o Oeste pavimentou o caminho para uma internacionalização da Doutrina. Nesse contexto, para o debate em relação ao expansionismo transfronteiriço, o pesquisador resgatou a relação dos EUA com dois países da América Latina: Guatemala e Cuba.
Fonte: Representaciones Diplomáticas de Cuba en el Exterior
Segundo Rodríguez, a Doutrina foi invocada em diferentes momentos sob a justificativa de uma arquitetura de segurança regional, em que a preocupação dos EUA era a manutenção de sua influência na área considerada como seu “quintal”. No caso cubano, identifica-se que a Doutrina Monroe foi aplicada sob o argumento de expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos (OEA), em razão de sua aproximação com a então União Soviética, em 1962.
Assim, percebe-se que a ferramenta de aplicação de sanções é tão antiga quanto a Doutrina Monroe per se. Nesse sentido, Trump e Bolton anunciaram sanções aos países latino-americanos como forma de reação e censura a sua recente aproximação com a China. Com efeito, Raúl Rodríguez constatou que a Doutrina Monroe se caracteriza como uma política de Estado norte-americano, já que, ainda que sob diferentes formatos, perdurou ao longo dos anos, independentemente do partido governante. No contexto da atual disputa entre EUA e China, inclusive, percebe-se que o atual presidente, o democrata Joe Biden (2021-presente), não renunciou à Doutrina Monroe. Por fim, concluiu-se também que mudar o regime político de Cuba é uma política de Estado dos EUA.
“Há uma institucionalidade no Departamento de Estado sobre o uso da Doutrina Monroe”
Segundo Robert Sean Purdy (USP), a Doutrina Monroe tem sido ajustada de acordo com os interesses do império norte-americano em diferentes contextos. Isto significa que esse mecanismo tem-se adaptado aos diferentes desafios, sofrendo, portanto, diferentes reinterpretações, cada qual para um diferente cenário social, político, econômico, por exemplo.
Apesar de reconhecer a importância da política tema do seminário, Purdy explicitou diversas vezes durante sua fala que discorda das análises que consideram que todas as relações entre Estados Unidos e América Latina podem ser parte da Doutrina Monroe vigente. Sua perspectiva é que a implementação das políticas não deve ser desvinculada de seu contexto inicial, que data do ano de 1823.
Nesse sentido, o professor citou alguns exemplos de períodos em que a política externa norte-americana é puramente atribuída à doutrina quando, na verdade, o contexto traz muitos outros detalhes, para além dela. Um deles foi o momento da Guerra Hispano-Americana pela tomada do território cubano em 1898. À época, os Estados Unidos já tinham adquirido bastante experiência com métodos expansionistas, dadas as guerras internas contra os povos originários locais. Segundo Purdy, os últimos territórios indígenas foram invadidos pelo Estado americano em 1880.
Durante esse período, outros fatores facilitaram a aplicação da política expansionista e discriminatória, como a ascensão do darwinismo social, o contexto de depressão econômica interna e a circulação de ideais imperialistas entre os membros do Partido Republicano. Também se ressalta a disseminação de tecnologias que permitiam a circulação de mais de 1 milhão de cópias de jornais por dia para uma população que era majoritariamente alfabetizada e poderia ler as propagandas diárias de teor racista em relação aos espanhóis. Tudo isso é parte de uma conjuntura específica que proporcionou aos EUA condições favoráveis para seus objetivos expansionistas, para além da simples vontade de aplicação generalizada da Doutrina Monroe.
Outro caso que Purdy utilizou para ilustrar seu argumento foi o do golpe na Guatemala em 1950. Nesse momento histórico, já faziam 127 anos desde a institucionalização da Doutrina, e o pano de fundo era completamente diferente: havia, por exemplo, uma Doutrina específica de segurança nacional no contexto da Guerra Fria, além dos demais interesses específicos dos EUA naquele momento. Dessa forma, Sean ressalta, apesar de ser possível analisar a atuação da potência norte-americana sob a perspectiva da Doutrina Monroe, não se deve realizar observações a-históricas desta.
“A América Latina é um importante laboratório para aprender as práticas imperialistas dos EUA”
Para a pesquisadora Carolina Silva Pedroso (UNIFESP), a aplicação da Doutrina Monroe nos países da América Latina não foi somente uma prática imperialista, mas também um mecanismo para incorporação e expansão dos valores da democracia liberal norte-americana na região. Com o objetivo de exemplificar a aplicação do excepcionalismo dos EUA, Carolina trouxe para o debate a especificidade de dois países importantes na região: Venezuela e Costa Rica.
Ambos os países, Pedroso explicou, foram considerados “oásis democráticos” a partir da incorporação dos valores norte-americanos. Esse quadro levou suas elites nacionais a projetarem uma imagem de excepcionalismo ante as demais nações latino-americanas, que não compartilhavam tão profundamente dos valores democráticos liberais.
No caso venezuelano, em particular, até mesmo a base de consumo alimentar da população se tornou bastante similar à dos estadunidenses. Já em relação à Costa Rica, o país chegou a abolir suas Forças Armadas – decreto que permanece até os dias de hoje – com a finalidade de consolidar uma imagem pacifista, após o episódio da guerra civil interna nos anos 1940.
No entanto, sublinhou Carolina, esses dois países vêm passando por instabilidades políticas desfavoráveis à política dos EUA nos últimos anos, e os ideais da democracia liberal foram bastante questionados por grupos internos. Além disso, a presença chinesa cresceu na região desde o século XX. No caso venezuelano, esse novo momento de distanciamento das relações com os Estados Unidos e de aproximação com a potência asiática é cada vez mais evidente, sobretudo a partir de 2013, quando a China ultrapassou os EUA como maior parceira comercial da Venezuela durante o governo de Nicolás Maduro.
A Costa Rica foi, por sua vez, o primeiro país da região a reconhecer a China continental e a cortar laços com Taiwan. Com efeito, em 2021, completou-se dez anos da parceria de livre-comércio entre Costa Rica e China. Em síntese, a presença chinesa na América Latina tem sido fonte desestabilizadora do poder hegemônico dos EUA que perdurou durante séculos, analisou Pedroso.
“É uma política ambígua e unilateral dos EUA”
A apresentação do pesquisador Leandro Ariel Morgenfeld (UBA) foi uma síntese de suas pesquisas que resultaram em seu novo livro, intitulado Nuestra América frente a la doctrina Monroe (CLACSO, 2023, 180p). Para o autor, é necessário observar os objetivos da Doutrina Monroe sob dois aspectos principais. O primeiro se refere a evitar a ascensão de uma influência extra-hemisférica no continente, e o segundo, a impedir a implementação do projeto bolivariano de integração e cooperação política na América Latina.
Dessa forma, identifica-se que os diferentes corolários modificaram a política de forma ambígua, ao mesmo tempo em que foi uma decisão política unilateral dos EUA a concepção de uma política de defesa para o continente. Dessarte, se no século XIX a Doutrina Monroe surgiu para combater as interferências europeias no continente, no século XXI, a Doutrina permanece vigente. O que teria mudado seria a potência extra-hemisférica a ser combatida: na atualidade, a China.
Em seguida, Mongerfeld também citou alguns pontos-chave para a compreensão da Doutrina, começando por desmentir alguns mitos, como o fato de que, na verdade, ela não é uma doutrina – dado que não é juridicamente institucionalizada. Também descreveu alguns momentos recentes, quando houve discussões quanto a sua vigência, como durante o governo Barack Obama (2009-2017), que havia declarado em 2009 a necessidade de relações igualitárias em relação aos países latino-americanos.
Ao tratar da situação atual, no entanto, o pesquisador ressaltou que, em 2018, o então secretário de Defesa do governo de Trump (2018-2021), James Mattis, reivindicou a doutrina – o que mostra a permanência de sua validade –, e postulou que a reivindicação dos recursos naturais da região por parte dos EUA seria uma maneira de atualização dessa política imperialista.
Por fim, Leandro enfatizou algumas concepções que considera importantes para a região, como a necessidade de se questionar a ideia do senso comum de que a América Latina seria irrelevante no cenário internacional; além da percepção importante de que o contexto geopolítico é bastante favorável para a contestação da hegemonia americana, incluindo a doutrina. Uma nova era está por vir para o mundo, em especial para a América Latina, acredita o pesquisador.
Assista aqui ao vídeo completo da Mesa 1
* Yasmim Reis é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa da Escola Superior de Guerra (PPGSID/ESG), colaboradora no INCT-INEU/OPEU e vice-líder e assistente de pesquisa voluntária no Laboratório de Simulações e Cenários na linha de pesquisa de Biodefesa e Segurança Alimentar (LSC/EGN). Contato: reisabril@gmail.com.
Victória Louise Quito é graduanda em Relações Internacionais (IRID/UFRJ) e pesquisadora bolsista de Iniciação Científica INCT-INEU/OPEU (PIBIC-CNPq). Cobre a área de relações EUA-América Latina e faz parte da equipe de Gestão do Observatório. Contato: victorialouiseq@ufrj.br.
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 12 dez. 2023. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mail: tatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mail: tcarlotti@gmail.com.
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