Kissinger ao telefone, informando-se sobre os últimos acontecimentos no Vietnã do Sul, em 29 abr. 1975 (Crédito: NARA/Wikimedia Commons)

Por Lucas Amorim*

Seja como secretário de Estado, seja como conselheiro de Segurança Nacional, a influência de Henry Alfred Kissinger na política externa americana e na política internacional provavelmente não encontra rival contemporâneo. Kissinger foi responsável pelas bárbaras campanhas de bombardeio no Camboja e no Laos; implementou a détente entre Estados Unidos e União Soviética; impulsionou a Operação Condor, que garantiu duas décadas de ditaduras sanguinárias na América Latina; foi instrumental na estabilização do Oriente Médio após a guerra do Yom Kippur; autorizou a invasão indonésia do Timor Leste, que resultou na morte de um quarto de sua população; executou o processo de reaproximação entre Washington e Pequim; apoiou um esforço de guerra genocida do Paquistão sobre Bangladesh; e, por fim, foi laureado com o Prêmio Nobel da Paz.

Nascido em Fürth, subúrbio de Nuremberg, em 27 de maio de 1923, recebeu de sua família o nome Heinz, posteriormente americanizado para Henry. Aos 15 anos, no auge da perseguição aos judeus pelo regime nazista, fugiu com a família para os Estados Unidos como refugiado. Serviu no Exército americano durante a guerra e, após sua conclusão, ingressou na Universidade Harvard, onde se destacou academicamente, graduando-se summa cum laude em Ciência Política em 1950. Obteve seu mestrado em 1951, e o doutorado, em 1954, com tese intitulada “Paz, Legitimidade e o Equilíbrio”, sobre os estadistas do Congresso de Viena Castlereagh e Metternich. Por sua tese, recebeu o Prêmio Senador Charles Sumner, reservado ao melhor trabalho do Departamento de Governo de Harvard que colabora com a prevenção da guerra e garantia da paz universal. Após a defesa, juntou-se ao corpo docente da universidade.

Sua atuação política se iniciou quando ele se envolveu nas campanhas de 1960, 1964 e 1968 para a candidatura republicana à presidência do então governador de Nova York, Nelson Rockefeller. Inicialmente oposto à ideia de uma presidência de Richard Nixon, Kissinger mudou de ideia e ofereceu seus serviços a ele após o acordo pelo apoio de Rockefeller na primária de 1968. Uma vez que Nixon assumiu a presidência, foi recompensado pelo apoio com o cargo de conselheiro de Segurança Nacional. De 1969 a 1977, foi a figura central na formulação da política externa do país, seja na figura de assessor ou, após 1973, também como chefe da diplomacia americana.

Henry Kissinger e o presidente Richard Nixon no Salão Oval da Casa Branca, em Washington, D.C., em 10 fev. 1971 (Crédito: National Archives/Wikimedia Commons)

O expoente da Realpolitik morreu em sua casa em Kent, Connecticut, em 29 de novembro de 2023. O falecimento foi anunciado publicamente por sua empresa de consultoria Kissinger Associates. Dada a estatura de Kissinger como teórico e prático da política internacional, sua morte foi amplamente coberta pela imprensa.

Obituários da imprensa americana e mundial

A revista Time descreveu Kissinger como um “secretário de Estado influente e polarizador”, que deixou um legado ambíguo. Por um lado, o estadista havia sido considerado o homem mais admirado nos Estados Unidos em uma pesquisa do Instituto Gallup, destacando-se o Prêmio Nobel da Paz, para o qual foi indicado por um cessar-fogo na Guerra do Vietnã. Por outro, o obituário não se eximiu de abordar as acusações de que Kissinger fosse um criminoso de guerra, nem o fato de que ele sobreviveu relativamente ileso ao escândalo do Watergate. O texto ainda destaca seu papel como conselheiro de diversos governos, democratas e republicanos, após sua saída do cargo de secretário de Estado.

A agência de notícias AP destacou o fato de que Kissinger atuou como secretário de Estado em duas administrações (1973-1977), a de Richard Nixon, que originalmente o nomeou para o cargo, e a de Gerald Ford, que assumiu após o escândalo de Watergate. Destaca-se sua atuação como diplomata e algumas realizações importantes de seu período à frente da diplomacia americana como a saída gradual da Guerra do Vietnã e a détente e impulso desarmamentista em relação à URSS. Nancy Benac, que escreveu o obituário, também destacou sua popularidade na China, fruto da articulação pelo reconhecimento da República Popular da China como governo legítimo chinês em 1979, em detrimento da República da China que governa a ilha de Taiwan. Poucos meses antes de sua morte, Kissinger havia se encontrado com o presidente chinês, Xi Jinping. Apesar do tom geralmente positivo, o texto também toca no lado mais sombrio de seu período no governo, como a autorização de escutas telefônicas de repórteres e membros de sua equipe no Conselho de Segurança Nacional e a “incursão” no Camboja.

A CNN descreveu Kissinger como , adjetivos que se repetiram em muitos obituários, da política externa americana. Destacou-se sua atuação à frente da diplomacia dos Estados Unidos, em especial a ambivalência de suas realizações. O texto aborda a polêmica em relação à concessão conjunta do Nobel da Paz de 1973 a Kissinger e ao líder vietnamita Lê Đức Thọ. Este último se recusou a receber o prêmio, e dois membros do Comitê Norueguês do Nobel, encarregado de escolher o vencedor, renunciaram em protesto.

O jornal The New York Times caracterizou Kissinger, por sua vez, como alguém que moldou a história dos EUA na Guerra Fria e deu ênfase ao fato de que ele havia atuado como acadêmico antes de se tornar diplomata. O jornal reconheceu que poucos diplomatas foram tão celebrados e vilanizados como Kissinger. O obituário atribui isso ao fato de ele ter sido o secretário de Estado mais poderoso da era pós-Segunda Guerra Mundial e ter adotado uma linha de atuação prática ultrarrealista, abandonando, segundo muitos, os “valores americanos” em função de sua visão do interesse nacional. É dado destaque à atuação de Kissinger e da máquina da política externa americana na viabilização do genocídio do Paquistão sobre a população bengali da região atualmente identificada como Bangladesh, à época Paquistão Oriental. As ações para evitar melindrar o governo pró-Washington tiveram um custo humano altíssimo: 300 mil mortos e 10 milhões de refugiados na Índia.

O título do obituário da rede catariana Al-Jazeera já expressa as inúmeras contradições ao longo da carreira de Kissinger: “morre aos 100 anos o belicista laureado com o Nobel da Paz”. A matéria explora as diversas facetas da personalidade de Kissinger: adolescente judeu refugiado dos nazistas, libertino que se relacionou com pin-ups, conselheiro maquiavélico que mudou o curso da história e workaholic que permaneceu ativo após seu último aniversário. Talvez mais importante do que isso, expôs o papel de Kissinger ao trazer para a inexperiente superpotência norte-americana o velho realismo europeu e as “leis imutáveis” da dura realidade das relações internacionais.

Iconoclastia póstuma e catarse coletiva

A dubiedade moral de Kissinger garantiu que nem todos os veículos aderissem à formalidade e ao tom hagiográfico típicos de um obituário. A Rolling Stone, revista que cobre música e cultura populares, trouxe um título nada ambíguo em relação ao ex-secretário de Estado: “criminoso de guerra amado pela classe dominante americana finalmente morreu”. O texto segue afirmando que “a infâmia do arquiteto da política externa de Nixon situa-se, eternamente, ao lado da dos piores assassinos em massa da história”. O autor compara Kissinger ao pior assassino em série condenado à pena de morte nos EUA, o terrorista supremacista branco Timothy McVeigh, que matou 168 pessoas, incluindo 19 crianças. Ackerman afirma que McVeigh jamais matou na mesma escala que Kissinger, apesar de o segundo ser quase universalmente aclamado pela elite americana. O historiador Greg Grandin, autor da biografia A Sombra de Kissinger, estima que ele foi responsável por entre 3 e 4 milhões de mortes em seu período como secretário de Estado e conselheiro de Segurança Nacional.

O veículo independente The Intercept também publicou um obituário bastante duro, descrevendo Kissinger como “chefe da diplomacia americana responsável por milhões de mortes”. O retrato pouco lisonjeiro cita o advogado de direitos humanos Reed Broody que diz que “poucas pessoas participaram de tanta morte e destruição, de tanto sofrimento humano, em tantos lugares ao redor do mundo, como Henry Kissinger”. The Intercept destaca o papel de seus jornalistas na descoberta de relatórios previamente secretos que revelam que Kissinger foi responsável por mais mortes no Camboja que previamente conhecido. A matéria também acusa o finado diplomata de permitir a ascensão do sanguinário Khmer Vermelho, um regime tão terrível no massacre de sua própria população que deu origem ao termo autogenocídio.

A revista de esquerda Jacobin já tinha preparado um livro-obituário intitulado The Good Die Young: The Verdict on Henry Kissinger (Os bons morrem cedo: o veredito de Henry Kissinger, em tradução livre). Organizada por Rene Rojas, Bhaskar Sunkara e Jonah Walters, a obra de 200 páginas é composta de ensaios escritos por acadêmicos prestigiados e conta com uma introdução de Greg Grandin, célebre professor da Universidade Yale. Já a Teen Vogue, que vem-se destacando por sua linha editorial bastante progressista, publicou uma matéria que traz como título “Kissinger foi um criminoso de guerra responsável por milhões de mortes”, destacando que, na Internet, sua morte foi mais celebrada que a de outra representante centenária da ordem imperial, a rainha Elizabeth II.

(Reprodução) Captura de tela da página @DidKissingerD1e no X (ex-Twitter)

A Internet, especialmente a rede social X (ex-Twitter), realmente entrou em um frenesi com a morte de Kissinger. A página “Is Henry Kissinger dead yet?” (em tradução livre, “Henry Kissinger já morreu?”), que desde 2021 postava atualizações diárias, geralmente monossilábicas, a respeito do estado de Kissinger, pela primeira vez publicou “Yes”, em vez do típico “No”. No momento da escrita deste informe, o post tinha sido visualizado por mais de 23 milhões de pessoas e recebido 455 mil curtidas e 129 mil repostagens. Como atesta o livro pré-escrito em antecipação à sua morte, os preparativos simbólicos para a morte de Kissinger já vinham sendo feitos há algum tempo. Sempre que uma celebridade política veterana morria, um meme que consiste na Morte lamentando não ter conseguido o prêmio máximo no jogo de grua, Kissinger, era publicado nas redes. Tão logo foi anunciado o falecimento, o meme foi atualizado. Agora a Morte comemora ter conseguido agarrar o antigo secretário de Estado.

(Reprodução) A Morte lamenta ter capturado a senadora Dianne Feinstein (D-CA) e depois comemora ter conseguido finalmente “agarrar” Henry Kissinger

Leia mais: Spitting on Kissinger’s Corpse as Conceptual Art, por Noah Berlatsky (em inglês)

Reações de líderes mundiais

Em tom mais institucional, diversos chefes de Estado e governo, chanceleres e líderes diversos se manifestaram a respeito da morte de Kissinger.

O presidente Joe Biden destacou que, durante sua carreira, “frequentemente discordou” de Kissinger “e muitas vezes intensamente”. Biden afirmou que a primeira vez que encontrou o então secretário de Estado era um jovem senador e que já era possível notar que era evidente “seu intelecto feroz e profundo foco estratégico”. O presidente estendeu seus pêsames à viúva, aos filhos e aos netos de Kissinger.

(Arquivo) O então vice-presidente Joe Biden encontra Kissinger na 45ª Conferência de Segurança de Munique, em 7 fev. 2009 (Crédito: Munich Security Conference/Wikimedia Commons)

O atual secretário de Estado, Antony Blinken, admitiu que “o secretário Kissinger realmente estabeleceu o padrão para todos que lhe sucederam neste trabalho”. Revelando que havia buscado o conselho de seu antecessor no cargo cerca de um mês antes da sua morte, o chefe da diplomacia dos EUA seguiu: “Ele foi extraordinariamente generoso com sua sabedoria, com seus conselhos. Poucas pessoas eram estudiosas da história mais dedicadas. Ainda menos pessoas fizeram mais para moldar a história do que Henry Kissinger”.

Para o secretário de Defesa, Lloyd Austin, “ele foi um caso raro de acadêmico que se tornou estrategista e tem sido amplamente aclamado como um dos nossos mais poderosos e influentes secretários de Estado”. Austin afirma que recorreu ao conselho de Kissinger muitas vezes durante sua carreira e que, todas as vezes, foram exercícios profundamente provocadores intelectualmente.

O ex-presidente George W. Bush foi um dos primeiros a se manifestar a respeito da morte de Kissinger. Bush afirmou que “os EUA perderam uma das vozes mais confiáveis e distintas nas relações exteriores”. Bush segue afirmando que sentirá falta “do seu serviço e conselho, mas ainda mais de sua amizade”. O republicano segue expressando que ele e sua esposa, Laura, “sentirão falta de sua sabedoria, seu charme e seu humor”.

O secretário de Estado do governo Trump, Mike Pompeo, elogiou seu antecessor como “um modelo de serviço”, relembrou sua fuga da Alemanha nazista, seu serviço militar na Segunda Guerra Mundial e sua “marca indelével na história americana e mundial”. Pompeo agradeceu pelos conselhos e pela ajuda durante seu tempo à frente do Departamento de Estado e afirmou que admira o fato de Kissinger se mostrar “sempre solidário e informado”. Acrescenta que “sua sabedoria me deixou melhor e mais preparado após cada uma de nossas conversas”.

O presidente russo, Vladimir Putin, destacou a reputação de pragmático do ex-chefe do Departamento de Estado e elogiou seu envolvimento com a détente entre as superpotências durante o período da Guerra Fria. Putin prestou homenagem, afirmando que Kissinger era um “diplomata de destaque e um estadista sábio e prudente” em telegrama endereçado à viúva, Nancy Kissinger.

Nem todas as manifestações públicas foram elogiosas.

O chanceler de Bangladesh relembrou o papel de Kissinger no genocídio do povo de seu país em 1971. Abdul Momen afirmou que “é muito triste que um homem tão inteligente tenha feito coisas tão desumanas”. E lamenta que ele não tenha “pedido desculpas ao povo de Bangladesh pelo que fez”. Nessa mesma linha, o atual presidente do Timor Leste e laureado com o Nobel da Paz, José Ramos-Horta, afirmou que “quem acompanha a história, quem acompanha a política internacional, conhece o passado [de Kissinger], que foi trágico e vil”. Kissinger deu “sinal verde” à invasão do país pela sua antiga potência colonial, a Indonésia, que dizimou um quarto da população timorense.

O representante (deputado) Gerry Connolly (D-MA) foi uma das vozes solitárias no Congresso que se manifestaram de forma crítica sobre o legado de Kissinger. Connolly postou em seu perfil no X: “Seu legado precisa urgentemente de uma reavaliação. Ele desencadeou alguns dos piores atos de violência dos últimos cinquenta anos no Chile, no Camboja, no Irã e no Vietnã – só para citar alguns. Sua indiferença ao sofrimento humano manchará para sempre seu nome e moldará seu legado”.

A fama de Kissinger na China

A ambivalência registrada até mesmo nos obituários mais elogiosos ao legado de Kissinger no Ocidente não encontraria a mesma recepção na China, onde o diplomata americano era reverenciado como um herói que garantiu à República Popular o reconhecimento internacional pleno e assento permanente no Conselho de Segurança da ONU – uma vaga que traz consigo o status de grande potência.

(Arquivo) O presidente Gerard Ford e sua filha Susan observam o então secretário de Estado, Henry Kissinger, apertar a mão de Mao Tsé-Tung, em visita à China (Crédito: NARA/Wikimedia Commons)

Em matéria intitulada “Henry Kissinger, um estadista irrepreensível, pelo menos na China”, a revista britânica The Economist afirmou que “nem a Xinhua, nem qualquer outro meio de comunicação estatal [chinês] deram muita importância aos seus pecadilhos, muito menos aos seus alegados crimes de guerra”. A irreverência que se espalhou nas redes sociais ocidentais não encontrou tração no equivalente chinês da rede X, o Weibo. Lá, apesar de mais de 700 milhões de visualizações sobre a morte de Kissinger, poucos usuários fizeram menção à crueldade do americano.

O próprio presidente Xi Jinping enviou carta de condolências ao presidente Joe Biden. Já Wang Yi, que além de chanceler é líder para relações exteriores no Partido Comunista Chinês, utilizou a morte de Kissinger para, ao mesmo tempo, elogiar o falecido e alfinetar a atual gestão na Casa Branca. Em transmissão na emissora estatal CCTV, o ministro afirmou que “o Dr. Kissinger sempre defendeu que China e Estados Unidos deveriam se respeitar mutuamente, evoluir juntos e cumprir suas devidas responsabilidades internacionais”. Wang Yi afirmou, ainda, que “[Kissinger] reiterou que os Estados Unidos deveriam compreender plenamente a importância da questão de Taiwan para a China. O legado diplomático que deixou é digno de promoção e desenvolvimento pelas gerações futuras”.

* Lucas Silva Amorim é pesquisador colaborador do INCT-INEU/OPEU e doutorando pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP). Contato: amorimlucas@usp.br.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 13 dez. 2023. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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