América Latina

A Política da Boa Vizinhança nas páginas da revista Foreign Affairs (1941-1946)

(Arquivo) FDR assume a Presidência (Crédito: Everett Collection/Picture Alliance)

Por Beatriz Leal e Roberto Moll Neto* [Informe OPEU]

Book CoverA partir de 1941, a administração de Franklin D. Roosevelt (FDR) (1933-1945) desenvolveu a Política da Boa Vizinhança (PBV), que passou a pautar a política externa dos Estados Unidos da América (EUA) para a América Latina e o Caribe (ALC) de forma significativa. Com o objetivo de oferecer resposta à crise econômica de 1929 e ao crescimento do apoio ao nazifascismo, a Casa Branca, por meio da PBV, substituiu as intervenções diretas dos EUA na ALC por práticas sofisticadas de intervenção indireta.

Como lembra Amy Spellacy (2017, p. 269), no capítulo “Making Pals in Panama. U.S.- Latin American Relations and the Trope of the Good Neighbor in Coca-Cola Advertising during the 1940s”, FDR transformou a metáfora em política no discurso de posse, em 1933, quando teria dito:

“No campo da política global, dedicaria esta Nação à política do bom vizinho – o vizinho que se respeita resolutamente e, por fazê-lo, respeita os direitos dos outros –, o vizinho que respeita as suas obrigações e respeita a santidade de seus acordos em e com um mundo de vizinhos” (tradução própria).

Originalmente, a PBV foi pensada na gestão de Herbert Hoover (1929-1933), porém, foi durante o mandato de FDR, que a mesma ganhou força. No período de 1941 a 1945, a PBV foi uma peça importante na configuração das interações entre os EUA e os países da ALC.

A Política da (nem tão) Boa Vizinhança: indústria cultural e política externa

Da metáfora de Hoover, em 1928, até seu fim, em 1947, a PBV evoluiu de um plano para desenvolver laços econômicos até se tornar uma estratégia em tempos de guerra, com o objetivo de evitar e coibir a influência política e econômica nazista na ALC. Em virtude da ampla capacidade de atingir a população em massa, os filmes da indústria cinematográfica estadunidense ganharam particular importância neste processo.

Valendo-se de investimentos, da aproximação entre representantes de agências governamentais do meio cinematográfico, do intercâmbio de artistas e da consolidação de políticas públicas, a PVB se configurou como uma simbiose entre governo, indústria cultural e indústrias tradicionais. Por exemplo, o governo FDR desenvolveu iniciativas como a Motion Pictures Society for Americas (MPSA), o Studio Foreign Managers Committee (SFMC), o Ideological Production Program, entre outros, visando a facilitar a distribuição de filmes para a ALC. No contexto da Segunda Guerra Mundial, tais iniciativas contribuíram para a propagação de hábitos de consumo, antes, durante e depois deste período, destinados às nações da região. Em suma, a Indústria Cinematográfica se tornou o principal aliado na divulgação da Política Externa dos EUA para a ALC.

Fora das salas de cinema, contudo, a administração FDR continuou a utilizar as ferramentas tradicionais de pressão econômica e política para inviabilizar qualquer projeto alternativo aos interesses estadunidenses na ALC. Neste prisma, as ações do governo Roosevelt na América Latina tinham como objetivo, no bojo da Segunda Guerra, a defesa do continente e a unidade continental. Aqui, a liderança de FDR se valeu, amplamente, da pressão financeira e econômica como uma estratégia para obrigar governos na ALC a não tomarem nenhuma ação contra interesses de corporações transnacionais vinculadas aos EUA.

Getúlio Vargas (sentado à esquerda) e Franklin Delano Roosevelt (sentado à direita), Rio de Janeiro, 1936 [CPDOC/GV](Arquivo) O então presidente Getúlio Vargas (sentado, à esq.) e FDR (à dir.), no Rio de Janeiro, em 1936 (Crédito: CPDOC/GV/ Domínio Público)

Como alguns exemplos destas ações, há o suporte conferido à ação de Fulgêncio Batista, algo que culminou com a derrocada de Grau San Martín, em Cuba; e a tentativa de isolar a Bolívia, após a junta civil-militar de David Toro Ruilova (1936-1937) ter anulado as concessões de exploração de petróleo da Standard Oil e confiscado seus bens. Cita-se, também, a pressão estadunidense imposta ao governo mexicano de Lázaro Cárdenas (1934-1940), responsável por nacionalizar a exploração e a produção de petróleo no país, a despeito dos interesses de empresas estadunidenses, holandesas e britânicas.

Elos entre a política e a cultura: a Política da Boa Vizinhança nas páginas da Foreign Affairs

A Foreign Affairs (FA) foi a primeira revista estadunidense destinada, exclusivamente, aos assuntos internacionais e originalmente fundada no ano de 1910, em Massachusetts, sob o nome Journal of Race Development. Em 1922, após algumas alterações, o periódico se muda para para Nova York e se torna o carro-chefe do think tank Council on Foreign Relations (CFR): instituição encarregada da publicação da FA até os dias atuais.

O CFR é uma das organizações de maior relevância, influência e prestígio no que diz respeito ao estudo contínuo das relações internacionais nos EUA. O think tank tem ligações com o governo do país, grandes fundações, empresas, instituições financeiras, meios de comunicação, universidades de elite, entre outros – o conjunto de organismos mais conhecido com o establishment estadunidense.

The Council on Foreign Relations and American Policy in the Early Cold War | Amazon.com.brA FA, por sua vez, foi criada com o objetivo de se tornar a fonte mais qualificada em assuntos internacionais, onde secretários de Estado e da Defesa, diplomatas, reitores de prestigiosas universidades, representantes de órgãos econômicos e financeiros e diretores de organizações internacionais publicaram suas análises ao longo dos anos. É lida, regularmente, por tomadores de decisão. E candidatos à Presidência usam como tribuna de sua agenda de política externa. Michel Wala, em seu livro The Council on Foreign Relations and American Foreign Policy in the early Cold War (1994), afirma que Edwin Gay considerava a publicação de uma revista como um primeiro passo crucial para “educar o público”, objetivando que o conhecimento disposto em suas páginas fosse utilizado como base pelas autoridades políticas em Washington. Gay foi secretário e tesoureiro do CFR no momento de sua fundação, bem como um dos principais responsáveis pela sugestão inicial de publicar a FA.

No contexto da Segunda Guerra Mundial e da PBV, três análises estabeleceram os pilares do debate sobre a relação entre EUA e ALC na revista. Os artigos destacados foram An American Commonwealth of Nation (1944), de Frank Tannenbaum; Good Neighbors in the War, and After (1943), de Percy Bidwell; e The Inter-American Bank: Prospects and Dangers (1941), de Eduardo Villaseñor. De modo geral, os artigos mencionados se referiram à ação dos EUA na ALC de maneira objetiva. Descreveram a região como um espaço destinado à exploração de matérias-primas, tal como necessário para a garantia da segurança do poderio estadunidense – inclusive no pós-guerra. Com isso, reforçaram a necessidade de dominação da ALC, sem se preocupar com a necessidade de atenuar os objetivos dos EUA, diferentemente da política cultural desenvolvida no esforço da PBV.

Os artigos em questão colocaram em evidência aquilo que Alves Junior, no trabalho Discursos Americanos de Cooperação no Contexto da 2a Guerra Mundial, de 2014, menciona como o cerne da PBV: a defesa e a unidade do continente ante a ameaça externa, em um momento em que a indústria estadunidense buscava, nos países da ALC, matérias-primas para alimentar os esforços de guerra.

Tannenbaum foi um historiador, sociólogo e criminologista austríaco-estadunidense. Sua família, de origem judaica, emigrou do Leste Europeu para os EUA em 1905. Durante a crise econômica de 1914 a 1915, ele se tornou um dos líderes do sindicato Industrial Workers of the World (IWW). Bidwell, por sua vez, concluiu seu doutorado na Universidade de Yale no ano de 1915. Ao longo de sua vida, defendeu a redução de tarifas para estimular o comércio internacional. Foi professor assistente de economia em Yale, pesquisador em história agrícola para a Carnegie Institution de Washington, economista para a Comissão Tarifária dos Estados Unidos (em Washington e em Bruxelas) e, por último, professor de economia na Universidade de Buffalo. Por fim, menciona-se Villaseñor, um economista, banqueiro, editor, escritor e funcionário público mexicano. Villaseñor ocupou os seguintes cargos: adido comercial em Londres (1929-1931), cônsul na cidade de Nova York (1935), subsecretário do Ministério da Fazenda e Crédito Público (1938-1940), delegado e promotor do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), membro da instituição Colegio de México (1939-1960), diretor-geral do Banco do México (1940-1946) e muitos outros.

Sendo assim, aqui dispõe-se um esforço para compreender a Política Externa dos Estados Unidos para a América Latina e o Caribe – no período da Segunda Guerra Mundial, quando seu principal paradigma de formulação foi a Política da Boa Vizinhança –, por meio da análise de artigos selecionados da revista Foreign Affairs sobre o tema. O trabalho se soma, então, a uma tendência, entre aqueles que se dedicam ao estudo das relações internacionais, de considerar o papel da cultura na história das dinâmicas de poder entre Estados. Isto é, considera-se a representação enquanto a exibição teatral do poder. Do mesmo modo, o discurso é uma das principais formas de representação – e, por isso, funciona como uma instância de interação moldada por relações de poder e diferentes ideologias.

Celebrating a Century | CFR at 100: From the Foreign Affairs ArchivesImagem de divulgação (Crédito: CFR)

Nesse sentido, a Foreign Affairs – enquanto um produto cultural calcado no discurso e, portanto, na representação – apresenta-se como um agente mobilizador de discursos, valores e ideologias. Com isso, entende-se este tipo de periódico enquanto um produto não apenas cultural como, também, político. E, por isso, aquilo que é ou deixa de ser abordado no âmbito da revista estadunidense estudada gera impactos importantes – o que confere relevância à presente análise proposta.

 

* Beatriz Leal é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM/USP), coordenadora da Associação de Pós-Graduand@s de seu Programa (APG PROLAM), revisora no BJLASBrazilian Journal of Latin American Studies e representante discente no Conselho de Pesquisa e Inovação da Universidade de São Paulo (PRPI/USP). Tem mestrado em Estudos Estratégicos pela Universidade Federal Fluminense (PPGEST/INEST/UFF) e graduação em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (IRID/UFRJ). Contato: lealbeatriz@usp.br.

Roberto Moll Neto é professor de História da América na Graduação em História do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional e da Pós-Graduação de Estudos da Defesa e da Segurança, ambos na Universidade Federal Fluminense. Também é pesquisador do INCT/INEU.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Recebido em 12 dez. 2023. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU. A versão integral deste texto foi publicada na Revista Mosaico – Revista de História, Goiânia, Brasil, v. 16, n. 3, p. 159–173, 2023.

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