Resenha OPEU

Resenha crítica: “The Price of Hegemony: Can America Learn to Use its Power?”, de Robert Kagan

Crédito: Lakshmiprasad S | Dreamstime.com

Por Augusto Fernandes Scapini* [Resenha OPEU]

Robert Kagan - Encounter Books

Robert Kagan (Crédito: Encounter Books)

Robert Kagan nasceu em Atenas, capital da Grécia, em 1958. Filho de um renomado historiador especializado na Guerra do Peloponeso, Kagan seguiu os passos do pai e obteve seu bacharelado em História pela Universidade de Yale, em Connecticut, no ano de 1980. Posteriormente, conquistou os títulos de Mestre em Políticas Públicas pela Universidade de Harvard, Massachusetts, e Doutor em História Americana pela American University.

Considerado um teórico neoconservador, suas obras mais aclamadas são Of Paradise and Power: America and Europe — artigo publicado em 2003 na revista Policy Review e que, posteriormente, foi adaptado para um livro lançado no mesmo ano, com tradução para o português (Do paraíso e do poder, Editora Rocco, 2003, 108p) — e The World America Made, publicado em 2012. Nessas e em outras publicações, Kagan critica as teses de declínio da hegemonia dos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, defende o liberalismo intervencionista como guia da política externa do país.

O acadêmico também escreve regularmente para diversos jornais e periódicos voltados para análise da política estadunidense e para as relações internacionais, como The New York Times, World Affairs, The Washington Post e Foreign Affairs. Esta última é uma revista de referência internacional, fundada em 1922 pelo think tank Council on Foreign Relations (CFR), com sede em Nova York, e que inclui textos e artigos de diversos teóricos, ideólogos e políticos de cargos relevantes no governo do país.

Foi para essa revista, também, que Kagan escreveu o artigo The Price of Hegemony: Can America Learn to Use its Power? (em tradução livre, “O preço da hegemonia: a América pode aprender a usar seu poder?”), publicado na edição de maio/junho de 2022. O texto, um artigo de opinião, aborda o contexto da guerra russo-ucraniana que eclodiu em fevereiro do mesmo ano, quando o líder da potência russa, Vladimir Putin, iniciou uma invasão, intitulada “operação militar especial”, sobre o território ucraniano. Rapidamente, o governo de Joe Biden mobilizou recursos para auxiliar as vítimas do conflito e impôs duras sanções econômicas à Rússia, pressionando outros países a fazerem o mesmo. Ainda que essas punições tenham gerado impactos negativos para a economia russa, o país conseguiu se manter firme por meio da dependência energética europeia, que compra o gás fornecido pela Rússia, e do aumento da parceria comercial com a China. Essa conjuntura resultou na ressurgência dos debates declinistas e no questionamento do poder hegemônico econômico frente à ascensão chinesa.

Resumo da obra

O autor inicia seus comentários, alegando a existência de um debate sobre o papel dos Estados Unidos no mundo, mas que foi interrompido com a eclosão do conflito entre Rússia e Ucrânia. Essa interrupção é, então, comparada ao fim do debate isolacionista/intervencionista da Política Externa que se deu com o ataque japonês à base estadunidense de Pearl Harbor, no Havaí, principal motivador da participação oficial da potência na Segunda Guerra Mundial.

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O argumento central de Kagan é que, apesar de os Estados Unidos não serem a causa direta das recentes ações militares russas, sua política de expansão hegemônica sobre a Europa no Pós-Guerra gerou uma situação de insegurança entre os países do continente e a Rússia, que se sentiu pressionada a proteger seu território. O historiador ainda acredita que, por mais que a população dos EUA defenda uma política externa isolacionista – que não vê os embates geopolíticos europeus como parte de sua esfera de interesse –, os Estados Unidos, como potência hegemônica, não podem ignorar a natureza global de seu poder e sua influência.

A partir disso, Kagan afirma que esses dois fatores – poder e influência – foram construídos pela nação durante o Pós-Guerra, utilizando sua capacidade de atrair as nações do Leste Europeu por meio dos valores liberais que objetivam promover democracia, livre-mercado, institucionalismo, paz, entre outros. Com isso, buscando escapar das décadas de opressão sob o imperialismo russo, a adesão à ordem liberal e suas instituições, controladas em maior parte pelos EUA, era a opção mais viável para essas nações. Em suas palavras, os valores e o poder americano “mudaram o equilíbrio na Europa em favor do liberalismo ocidental em detrimento da autocracia russa”. Mas, até certo ponto, esse poder de cooptação não gerou insegurança para a Rússia ao fim da Guerra Fria, fato atribuído pelo autor ao declínio dos investimentos do país no setor de defesa e à mudança de seu foco para o fortalecimento econômico interno.

Ademais, Kagan busca explicar a relutância dos EUA, governados na época por George H. W. Bush (1989-1993), em expandir a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) sobre o continente europeu. Para o autor, o momento de fraqueza presenciado pela Rússia durante a troca de governo de Gorbachev para Boris Yeltsin era visto pelos governantes e cidadãos estadunidenses como uma ausência de ameaça externa que invalidava a necessidade da OTAN. Mesmo assim, as nações viam na aliança militar atlântica e na ordem liberal-ocidental um meio de proteção contra uma futura investida russa e, também, de prosperidade econômica. A Rússia, então, aceita essa nova conjuntura, pois suas elites estavam mais interessadas nas oportunidades econômicas possibilitadas pela integração ao Ocidente do que na obtenção do status de potência hegemônica.

George H. W. Bush: Foreign Affairs | Miller Center(Arquivo) Presidente Bush sênior se reúne com o presidente Gorbachev, no Salão Oval da Casa Branca, em Washington, D.C., em 1º jun. 1990 (Crédito: George H. W. Bush Presidential Library and Museum)

Esse cenário se modifica, no entanto, quando Putin passa a retomar os ideais de restauração do poder russo por meio da inclusão das nações europeias em sua esfera de interesse. Mas, o problema da Rússia, na visão de Kagan, é que as “esferas de interesse não são dadas, […] mas sim adquiridas pelo poder econômico, político e militar”. Com isso, o autor discorda da opinião de analistas políticos ocidentais que defenderam a concessão dessas esferas à Rússia por parte dos EUA, para a manutenção do equilíbrio de poder. Ele argumenta que, mesmo que fosse feita essa concessão, os povos europeus tentariam se integrar cada vez mais ao sistema liberal, o que antagonizaria Putin de qualquer maneira. Assim, a fraqueza da Rússia se encontra em sua incapacidade de desenvolver um poder de atração que compita com o dos Estados Unidos, além de não possuir os fatores geográficos, as riquezas e os valores necessários para se tornar uma potência global, fato que o líder russo se recusa a aceitar.

Dessa maneira, o historiador afirma que Putin aumentou as capacidades militares da Rússia sem provocar reações defensivas do Ocidente, até o ponto em que foi capaz de desafiar a ordem liberal com o recente uso da força militar. Para Kagan, essa falta de ação dos EUA não condiz com a natureza de um hegemon, que tem o dever de preservar essa ordem e conter o avanço dos rivais revisionistas. E, para atingir esse objetivo, faria mais sentido o país intervir nos conflitos de potências beligerantes quando estão nos momentos iniciais de expansão econômica e militar, mesmo quando a população estadunidense não vê os benefícios imediatos de tal decisão. O autor entende, ainda, que a ação preventiva é um ideal difícil de ser atingido em um sistema democrático. Por essa razão, o povo americano e seus líderes permanecem ignorantes em relação ao papel de seu país no sistema internacional, caracterizado por uma disputa de poder ininterrupta. O autor conclui seu raciocínio, determinando que os estadunidenses devem entender, com a invasão russa à Ucrânia, que há alternativas piores do que a hegemonia dos EUA, e, por isso, a nação precisa aprender a utilizar seu poder.

Comentário crítico

O artigo de Kagan é repleto de conceitos relevantes para o estudo da hegemonia americana: poder, dominação, imperialismo e interesses, apenas para citar alguns. Ainda assim, o uso desses elementos em sua teoria deve ser questionado, uma vez que toda teoria, ensina Robert Cox (1981), é feita de alguém para alguém, ou seja, é dotada de ideologias derivadas das visões de mundo de quem a escreve. O mesmo se aplica à visão ocidental de Kagan, que exalta os valores promovidos pela ordem liberal para caracterizar o poder de atração dos EUA. Ele alega que são esses valores que tornam os Estados Unidos atrativos para as nações europeias, mas falha em cogitar a possibilidade de que esses e as instituições promovidas pela ordem liberal não são simplesmente ofertados, mas sim impostos pela potência, tornando inviável a adesão desses países a qualquer sistema alternativo.

Livro: O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial - Samuel P. Huntington | Estante VirtualNesse sentido, ao afirmar que os valores liberais são desejados pelos povos do Leste Europeu, o autor desconsidera completamente as diferenças culturais que separam as nações europeias do Ocidente e de si próprias e que impactam suas esferas de interesse individuais. O mesmo equívoco é feito por Samuel P. Huntington (1993), no artigo The Clash of Civilizations? – publicado, também, na revista Foreign Affairs, e, posteriormente, desenvolvido em livro (Simon & Schuster, 1996), com tradução para o português pela Objetiva (1997) –, que inclui Rússia, Ucrânia, Polônia, Romênia e os países Bálticos na mesma civilização “cristã-ortodoxa”, sem avaliar as relações históricas marcadas pela opressão e pelo imperialismo entre essas nações.

Kagan cria, também, uma falsa equivalência, ao equiparar a quebra do suposto isolacionismo estadunidense posterior a Pearl Harbor com a interrupção do debate contemporâneo do papel do país no mundo. Em American Exceptionalism: An Idea that Made a Nation and Remade the World (Routledge, 2015), Hilde Eliassen Restad demonstra como a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra não foi, necessariamente, uma inversão da política externa, mas a continuação de uma doutrina unilateral internacional. Isso porque o então presidente Franklin D. Roosevelt (1993-1945) já havia traçado um plano político-econômico que visava à construção da hegemonia americana por meio de ações unilaterais no Pós-Guerra. Da mesma forma, o receio da população estadunidense em relação à participação do país no conflito russo-ucraniano não representa uma discordância com o papel de liderança do hegemon, mas uma preservação de sua autonomia unilateral de modo intencional, e não inconsciente, ou ingênuo, como insinua o autor.

Essa caracterização feita por Kagan do povo dos Estados Unidos como leigo do poder da nação e de seu papel como potência hegemônica é algo que também deve ser problematizado em sua redação. Enquanto é verdade a afirmação de que a democracia dificulta o uso preventivo da força, verifica-se, ao longo da história da nação estadunidense, que aquela não impossibilita esta última. Isso porque o hegemon, no pensamento de Joseph Nye, resgatado por Leonardo Ramos e Geraldo Zahran no artigo “Da hegemonia ao poder brando: implicações de uma mudança conceitual” (Cena Internacional, 2006), utiliza-se dos recursos de “poder brando” – como cultura, ideologia, valores e instituições – para moldar o que os outros querem. Esse uso do poder não é válido somente para outros Estados, mas também para sua própria população, a quem o presidente atuante deve convencer, por meio do discurso, da necessidade e da legitimidade das ações intervencionistas. O claro exemplo disso foi a campanha realizada pelo governo do republicano George W. Bush (2001-2009) para justificar a necessidade das invasões ao Afeganistão e ao Iraque após os ataques de 11 de setembro de 2001, pautada pelo discurso de proteção aos direitos humanos e da segurança internacional.

Globalização, democracia e terrorismo eBook : Hobsbawm, Eric, Filho, José Viegas: Amazon.com.br: LivrosAssim, Kagan aparenta tentar justificar a política externa intervencionista dos EUA, ao afirmar que “muitos americanos tentam igualar a hegemonia ao imperialismo”, mas diferencia os dois a partir da ideia de que o primeiro utiliza a cooptação, e o segundo, a coação. O autor não chega, no entanto, a mencionar as ações do país no Oriente Médio, que são consideradas por muitos como um “imperialismo dos direitos humanos” – conceito desenvolvido por Eric Hobsbawm no livro Globalização, democracia e terrorismo (Companhia das Letras, 2007) para qualificar a política externa dos Estados Unidos no século XXI –, caracterizado não pelos recursos de cooptação do poder brando (soft power), mas sim pelos coagentes do poder duro (hard power).

E essa não é a única contradição encontrada em sua argumentação. Kagan afirma que o ciclo de ascensão e queda das nações, natural das relações internacionais, é resultado das mudanças nas estruturas de poder de um sistema – alteradas seja por fatores econômicos, militares ou ideológicos. Ao mesmo tempo, porém, em uma perspectiva fatalista, alega que a Rússia, por não possuir grandes riquezas e uma localização geográfica vantajosa, está fadada a nunca se tornar uma superpotência global. Se a hegemonia é uma condição temporária e conjuntural, e não determinista, do sistema, o que garante que os EUA manterão sua posição de liderança e a sustentação da ordem liberal? O autor não explica.

Finalmente, é correto afirmar que o artigo de Kagan oferece uma base para o entendimento do papel americano no conflito entre Rússia e Ucrânia. Deve-se, contudo, compreender as limitações do autor oriundas de sua visão neoconservadora, ocidental e defensora do poder hegemônico dos Estados Unidos. Ele também oferece um relevante histórico das relações entre os principais atores do sistema – Rússia, China e EUA –, mas sua argumentação cai, recorrentemente, em falsos equivalentes históricos que falham em reconhecer os demais fatores políticos, ideológicos e culturais que pesaram, e pesam, nas decisões estratégicas dos líderes de cada potência. A mais grave ofensa do artigo, por fim, encontra-se na denúncia da política imperialista da Rússia, sem que o mesmo tratamento seja dado à política imperialista estadunidense.

 

Augusto Scapini é bolsista de Iniciação Científica INCT-INEU/OPEU (PIBIC-CNPq) e graduando em Relações Internacionais do IRID/UFRJ. Contato: augusto.scapini@ufrj.br.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. A primeira versão desta Resenha OPEU foi entregue como avaliação parcial na minha disciplina de “Hegemonia do Poder Americano”, referente ao período 2022/2, no Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ). Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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