Antony Blinken toca promessas em solos de guitarra
Secretário Antony Blinken se apresenta no lançamento da Iniciativa Global de Diplomacia Musical, no Departamento de Estado, em Washington, D.C., em 27 set. 2023 (Crédito: DoS/Flickr/Domínio Público)
Por Débora Magalhães F. Binatti da Costa* [Informe OPEU]
Em 27 de setembro de 2023, o secretário de Estado estadunidense, Antony Blinken, com uma guitarra em mãos, anunciou a “Iniciativa Global de Diplomacia Musical”. O programa consiste em usar a música como ferramenta diplomática para promover a paz e a democracia, assim como para alcançar objetivos da política externa dos Estados Unidos. As habilidades musicais de Blinken viraram notícia, por vezes até mesmo ofuscando a política anunciada junto a ela, como é o caso do artigo de Michael Crowley no jornal The New York Times, que destaca: “A música é a maior paixão não política do Sr. Blinken”.
Tal afirmação não poderia estar mais equivocada. Cultura e, aqui em particular, a música, são inerentemente ligadas à política, como é o caso da diplomacia musical. Mas o que seria essa diplomacia musical? Para entendê-la é necessário, primeiro, compreender sua antecessora, a diplomacia cultural. Na tese Music as cultural diplomacy. The case of the introduction of Western music in Meiji Era Japan, Giulia Orefice Paticchio define diplomacia cultural como “um conjunto de ações que se baseiam e utilizam o intercâmbio de ideias, valores, tradições e outros aspectos da cultura, ou da identidade, seja para reforçar as relações, aumentar a cooperação sociocultural, promover os interesses nacionais, ou outros; a diplomacia cultural pode ser praticada pelo setor público, pelo setor privado, ou pela sociedade civil”. A diplomacia musical é, portanto, a utilização da música como instrumento dessa política.
Sendo assim, tomando-se a diplomacia musical como exemplo, vale ressaltar que não se trata de uma política inédita do governo americano – e tampouco começou com o secretário Blinken.
Blinken, ao anunciar a Iniciativa da Diplomacia Musical (Crédito: canal do DoS no YouTube)
Em 1950, grandes nomes do jazz, como Louis Armstrong, Duke Ellington, Dizzy Gillespie e Sarah Vaughan, foram convidados para, subsidiados pelo governo, tocar em países, nos quais a música dos EUA não havia chegado com grande influência, ou onde ainda não tivessem acontecido shows de artistas estadunidenses, como é apresentado pelo website ShareAmerica, também promovido por Washington. Chamados de embaixadores do jazz, esses músicos viajaram para África, Europa, Oriente Médio e Sul da Ásia, com uma agenda que incluía visitas a escolas e colaborações com músicos locais. Tal iniciativa fez o jazz ser chamado de “arma sônica secreta” pelo New York Times, em 1955, comentário feito dentro do cenário da Guerra Fria.
A diplomacia musical estadunidense também não se limitou ao jazz. Pode-se destacar o programa Música Americana no Exterior, que envia anualmente para 30 países uma nova geração de embaixadores musicais. Esses artistas tocam gêneros que vão do rock & roll ao gospel e, ao longo do programa, visitaram mais de 110 países em seis diferentes continentes. Já a iniciativa Next Level promove o hip-hop, mandando para o exterior artistas e educadores de dança, música e arte. Ainda podemos ressaltar a iniciativa de intercâmbio OneBeat, que reúne músicos de diversos países e que tocam diferentes gêneros. A proposta é que eles possam compor músicas em conjunto e desenvolver estratégias, visando a desafios comuns.
Dessa forma, o governo Biden não é revolucionário dentro da política dos EUA, ao se utilizar da diplomacia cultural, mais especificamente da diplomacia musical. Tanto a legislação sancionada pelo presidente Biden em 2022 – a lei bipartidária Promovendo a Paz, a Educação e o Intercâmbio Cultural (PEACE), aprovada a partir da lei da Diplomacia Musical –, quanto o anúncio de Antony Blinken, com a Iniciativa Global de Diplomacia Musical, não são medidas que fogem do escopo da história da política exterior norte-americana.
Willis Conover entrevista Louis Armstrong, no Voice of America, em 1955 (Crédito: DoS)
O conteúdo dessas iniciativas mais recentes, como, por exemplo, a exigência da lei de 2022 de que parcerias de diplomacia musical incluam o setor privado, trazem, no entanto, mudanças na forma de execução dessa agenda.
Lembramos que esse tipo de iniciativa diplomática não é uma política exclusiva dos Estados Unidos. A Coreia do Sul, por exemplo, exerce brilhantemente tal iniciativa, por meio dos investimentos nos grupos de Korean Pop (K-Pop), responsáveis por expandir a influência musical sul-coreana pelo mundo. Dessa forma, pode-se entender tal escolha política norte-americana como uma maneira de manter o mercado da indústria musical sob uma hegemonia do país.
Em relação à Iniciativa Global de Diplomacia Musical, os EUA enviarão já no outono (Hemisfério Norte, primavera no Brasil) grandes artistas para Jordânia e Arábia Saudita, além de uma orquestra filarmônica para a China. A Iniciativa prevê, ainda, uma série de intercâmbios e de colaborações musicais, podendo-se destacar o intercâmbio do hip-hop para a Nigéria, em setembro. Percebe-se um enfoque no Sul Global, a partir dos países-alvos dessa política – Jordânia, Arábia Saudita, China e Nigéria. O mesmo Sul Global que, a partir de iniciativas como o grupo BRICS, vem-se distanciando da zona de influência direta dos EUA. Portanto, é possível fazer uma leitura desse projeto musical dos EUA como uma iniciativa de aproximação com países do Sul, simultaneamente aliado à propagação da agenda estadunidense por países que se afastaram de sua influência.
A aproximação musical dos EUA com países da periferia e da semiperiferia internacional é uma iniciativa interessante e carrega grande potencial, mas é preciso estar atento à responsabilidade frente a multiculturalidade, questionando-se o impacto da diplomacia musical dos EUA nas culturas locais. Até que ponto a promoção da música, como objeto abstrato, para fomentar a paz internacional pode impactar negativamente a cultura local, promovendo ritmos já afetados pelo processo de globalização e suprimindo essa mesma cultura?
* Débora Magalhães Binatti é graduanda em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro e bolsista de Iniciação científica INCT-INEU/OPEU (PIBIC-CNPq). Contato: dmfcbinatti@gmail.com. Twitter: @debs_binatti. Instagram: @debs_binatti.
** Primeira revisão: Simone Gondim. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Segunda revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 6 out. 2023. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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