Panorama EUA

Nikki Haley, uma contradição republicana

(Arquivo) A então embaixadora dos EUA na ONU, Nikki Haley (ao centro), na sede da organização, em Nova York, em 15 jun. 2017 (Crédito: Missão dos EUA na ONU)

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Por Pedro Sena Pederneiras e Augusto Scapini* [Panorama EUA]

Em 2015, a então governadora da Carolina do Sul e atual candidata à nomeação do Partido Republicano para a eleição presidencial de 2024, Nikki Haley, era uma das críticas mais vocais de Donald Trump entre seus correligionários. Haley se colocava como uma republicana moderada, e as declarações xenofóbicas de Trump não se encaixavam com sua visão dos Estados Unidos como uma nação construída por imigrantes, como seus próprios pais. Ela reconhecia que os posicionamentos de seu partido haviam-no afastado de grupos minoritários e defendia a necessidade urgente de uma reforma significativa em suas bases ideológicas, se este quisesse manter o apoio popular das massas. Atacando a postura agressiva e combativa do futuro presidente, a governadora afirmava que, caso Trump fosse vitorioso nas eleições de 2016, seu temperamento levaria a humanidade a uma nova guerra mundial. Dois anos depois, Haley aceitaria a indicação do republicano para o posto de embaixadora do governo estadunidense na Organização das Nações Unidas.

Infância e ingresso na política

Nimarata Nikki Randhawa nasceu em 20 de janeiro de 1972, na cidade de Bamberg, Carolina do Sul. Filha de imigrantes indianos, a jovem Nikki era parte da primeira família da etnia Sikh na história da pequena cidade do interior e encarou a realidade da xenofobia sulista desde cedo. Aos cinco anos, junto com sua irmã, Simmi, tentou participar do concurso de Pequena Miss de Bamberg. O evento selecionava apenas meninas brancas e negras, e as duas jovens não tiveram permissão para participar da competição. Ainda assim, Nikki teve a chance de cantar no evento e usou a oportunidade para se reafirmar como uma cidadã americana, cantando “This land is your land, this land is my land, from California to New York Island”.

Em 2004, então com 32 anos, Randhawa saiu vitoriosa em uma competição ainda mais cruel: as eleições para a Câmara de Representantes da Carolina do Sul. A jovem política era agora formada em contabilidade pela Universidade de Clemson, resultado da influência de seus pais, que haviam se tornado donos do próprio negócio, uma loja de roupas chamada Exotica, que eventualmente se tornaria um negócio multimilionário. Desde os 12 anos de idade, Nikki ajudava a mãe nas tarefas de contabilidade do estabelecimento.

A jovem mudou seu nome para Nimarata Nikki Haley em 1996, quando se casou com o soldado da Guarda Nacional Michael Haley em uma cerimônia sikh. Anos depois, críticos viriam acusá-la de ter mudado seu sobrenome e se convertido ao cristianismo para esconder seu passado imigrante e adotar uma identidade mais aprazível para o eleitorado conservador americano. Haley, porém, nunca negou suas origens, nem escondeu que sua entrada no mundo da política foi inspirada pela personalidade do partido rival Hillary Clinton, a qual via como uma inspiração para as mulheres que almejam ingressar na vida pública.

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(Arquivo) Álbum de família (Fonte: Arquivo pessoal/Facebook)

Ainda assim, seu mandato como representante de seu estado não deixou de ter um já esperado caráter republicano e conservador. Uma de suas principais bandeiras foi a redução da tributação, tendo votado a favor de cortes do imposto de renda em seu estado e contra o aumento de taxações sobre a venda de cigarros. Também defendeu a redução de projetos de assistência pessoal, votando contra a criação de um fundo para proteção de pessoas com deficiências. No campo social, também se mostrou conservadora, sendo sempre contra a expansão dos direitos reprodutivos. Mas, talvez o tema que mais demonstre a contradição entre sua vida pessoal e sua vida política seja a questão da imigração. Apesar de ser filha de imigrantes, Haley sempre deixou claro que defende a imposição de uma política de imigração mais dura pelo governo, o que ficou ainda mais evidente durante seu mandato como governadora da Carolina do Sul.

(Arquivo) Nikki e Sarah Palin, em 2010 (Crédito: Sean Rayford)

A então legisladora inaugura sua campanha para o governo do estado nas eleições de 2010 como uma candidata improvável, ficando, inicialmente, em último lugar na maior parte das pesquisas. A situação mudou completamente quando, nas últimas semanas da corrida eleitoral, recebe o apoio da conservadora Sarah Palin, que acaba sendo responsável por tirar a jovem política do anonimato – algo que a ex-governadora do Alasca era conhecida por fazer por outras republicanas, em uma época em que tinha influência suficiente para ser uma queenmaker do partido. Palin diz que se interessou pela candidata quando a viu discursar em favor da redução da atuação do Estado em um evento do Tea Party. Acabou se tornando sua protetora, defendendo Haley quando esta recebeu acusações, sem provas, de ter cometido adultério com outros membros do partido, situação semelhante à que Palin já havia vivido anos antes. Com o apoio de Palin, que a acompanhou em diversos comícios de campanha, Nikki Haley dispara na corrida eleitoral, saindo do último lugar nas pesquisas para a vitória, com 51,4% dos votos.

Ao longo da campanha, Haley também recebeu insultos racistas de outros republicanos, como o então senador estadual Jake Knotts Jr., que, em um talk show de Internet, disse: “Nós já temos um ‘cabeça de turbante’ na Casa Branca. Não precisamos de outra na mansão do governador”. Mas, mesmo sofrendo ataques preconceituosos após se destacar mais na vida pública, a recém-eleita governadora não mudou sua posição quanto ao tema da imigração. Durante seu governo, promulgou uma lei que dava à polícia da Carolina do Sul o poder de revistar pessoas na rua arbitrariamente para se certificar de que não eram imigrantes em condição ilegal, obrigando cidadãos estrangeiros a andarem nas ruas com todos os seus documentos para não serem presos sob suspeita de estarem clandestinamente no país. A lei teria potencial para aumentar significativamente a discriminação de policiais contra cidadãos que aparentassem minimamente serem estrangeiros, se não tivesse sido suspensa por um tribunal federal por ter sido considerada inconstitucional.

Haley também promulgou leis, limitando a possibilidade do aborto de gestação, dando continuidade à sua posição já estabelecida quanto aos direitos reprodutivos.

Mudanças e inconsistências em seu posicionamento político

É possível que o fato mais marcante de seu governo tenha sido a mudança de sua posição sobre a bandeira dos estados confederados, um tópico extremamente controverso nos estados sulistas. Inicialmente, Haley defendia o direito dos cidadãos de utilizarem a bandeira e a presença desse símbolo em diversos edifícios públicos, como o próprio Capitólio Estadual da Carolina do Sul. Após o massacre em uma igreja na cidade de Charleston, porém, cometido por um supremacista branco, a governadora abandonou sua defesa da bandeira, dizendo que o que considera seu “verdadeiro significado” havia sido corrompido por movimentos racistas, e atuou para dar fim à sua presença na casa legislativa estadual. Conseguiu fazê-lo oficialmente em julho de 2015. Este acabou se tornando o evento mais conhecido e lembrado de seu mandato como governadora.

As constantes mudanças de opinião e posicionamentos contraditórios de Nikki Haley se tornavam uma característica cada vez mais marcante de sua carreira política, ficando ainda mais evidentes durante as eleições de 2016. Inicialmente, Haley foi extremamente crítica quanto ao então candidato Donald Trump, dando declarações em que dizia que o bilionário era “tudo o que um governador não quer em um presidente” e que não pararia de “lutar contra um homem que escolhe não repudiar a Ku Klux Klan”. Também condenou a proposta de Trump de barrar a entrada de imigrantes muçulmanos no país e seus ataques a imigrantes legalizados. À época, Trump rebateu as críticas, dizendo que “o povo da Carolina do Sul tem vergonha de Nikki Haley”.

No início da corrida presidencial, Haley apoiou a candidatura do senador Marco Rubio (R-FL). Quando Rubio abandonou a disputa, passou a defender o pleito de Ted Cruz (R-TX), maior concorrente de Trump à época. Porém, após Trump obter a nomeação final do Partido Republicano, Haley aceitou fornecer um apoio relutante à sua campanha, afirmando que “não era fã” do candidato, mas que passou a apoiá-lo por defender a vontade do povo. Neste momento, surgiram rumores de que Haley estaria sendo considerada para concorrer junto a Trump como sua candidata à vice-presidência. A governadora reagiu, afirmando que não estava interessada no cargo.

Com a vitória de Trump na eleição presidencial, uma escolha inesperada foi tomada: em novembro de 2016, após um ano de atritos entre o presidente eleito e a governadora da Carolina do Sul, Nikki Haley foi nomeada por Trump como futura embaixadora dos Estados Unidos para as Nações Unidas. Nunca ficou claro o que exatamente fez Trump tomar essa decisão. O que tornou a escolha tão inusitada, para além da relação antagônica que havia sido estabelecida entre ambos, é o fato de que Haley não tinha qualquer experiência no campo da diplomacia, podendo ser considerada a embaixadora dos EUA para as Nações Unidas mais inexperiente da história do país. É possível que o ex-presidente tenha sido convencido pelos poucos posicionamentos de Haley relacionados à política externa – no caso, suas posições sobre imigração e sobre Israel. À época, outros analistas disseram que talvez Trump estivesse tentando dar uma aparência superficial de maior diversidade em seu gabinete, composto, em grande parte, por homens brancos de idade avançada. Ainda assim, a motivação por trás da escolha continua sendo uma questão pouco compreensível até hoje.

Embaixadora dos Estados Unidos na ONU

Haley, então, abandonou seu segundo mandato como governadora e assumiu o posto de embaixadora em 27 de janeiro de 2017. Naquele momento, analistas, diplomatas e ativistas de direitos humanos viram sua nomeação com otimismo, considerando-a uma voz moderada em um gabinete ultraconservador. A realidade se mostrou, no entanto, bem diferente das previsões.

Os 23 meses nos quais ocupou o assento americano na sede das Nações Unidas foram marcados por fortes críticas à organização e a seus membros. Na função, Nikki assumiu fielmente os ideais do pensamento America First, que defende o afastamento estadunidense de questões externas que não trazem benefícios domésticos imediatos para a população.

Para ilustrar esse ponto, podemos mencionar a decisão de Trump, em 2018, de retirar o país do Plano de Ação Conjunto Global, um acordo nuclear que havia sido firmado com o Irã durante o governo de Barack Obama. Defendendo a iniciativa, Haley disse que o acordo era “horrível” e apenas reafirmava o comportamento hostil do Irã quanto ao armamento nuclear. A embaixadora também corroborou a política insular de Trump em outros casos, como quando defendeu a saída do país do Acordo de Paris – o qual considerava prejudicial à economia nacional – e quando apoiou as restrições migratórias impostas pelo presidente a países mulçumanos – medidas caracterizadas como “temporárias”, e “não xenofóbicas”.

President Donald J. Trump at the United Nations General As… | Flickr(Arquivo) Trump e Nikki chegam à sede da ONU, em Nova York, em 24 set. 2018 (Crédito: Shealah Craighead/ Casa Branca/Flickr)

O exemplo mais radical da política trumpista de insulamento foi a saída dos Estados Unidos do Conselho de Direitos Humanos da ONU, motivada pelas críticas promovidas pelo órgão a Israel no contexto do conflito com a Palestina. Haley, naquele momento, chegou a acusar o órgão de agir de maneira parcial em questões internacionais por motivos políticos. Essa narrativa foi retomada pela republicana no momento atual, declamando em suas redes sociais que o Conselho é uma “farsa”, em resposta à reeleição da China e de Cuba ao órgão. Ainda, durante seu tempo como embaixadora, Haley deixou claro seu posicionamento pró-israelense quando antecipou a posterior realocação da embaixada estadunidense em Israel de Tel Aviv para Jerusalém. Vale notar que, recentemente, Haley reafirmou essa narrativa, após a eclosão do conflito entre Israel e Palestina em outubro, chegando a equiparar, em uma postagem na rede social X, o antissionismo ao antissemitismo.

Atritos com o presidente Trump

Apesar do alinhamento da embaixadora ao pensamento conservador de Trump quanto à política externa, podem ser identificados momentos de divergência entre os dois republicanos durante seu mandato. Em 2018, Haley anunciou que os EUA passariam a adotar restrições econômicas contra empresas russas envolvidas com a manufatura de armas químicas por parte da Síria, governada por Bashar al-Assad. Representantes da Casa Branca, no entanto, contradisseram o que foi declarado por Haley, afirmando que o governo não iria proceder com as sanções. Por conta dessa contradição de informações, Haley foi criticada pela mídia por, aparentemente, estar desatualizada sobre os planos do presidente.

Esse não foi o único momento de discordância entre Haley e Trump, já que, em 2017, a embaixadora chegou a acusar abertamente o governo russo de manipular eleições de outros países, dizendo que ações como estas eram equivalentes a operações de guerra. Haley passou a defender a ideia de impor sanções econômicas aos russos, mas Trump, por sua vez, rejeitou a ideia de que o governo de Vladimir Putin teria influenciado sua vitória nas eleições de 2016 e disse sempre ter buscado manter um relacionamento mais amigável com o Estado russo. Em 2023, sustentando seu posicionamento crítico à Rússia, Haley voltou a criticar políticas tanto do democrata Joe Biden quanto de Trump no contexto da guerra russo-ucraniana, iniciada no ano interior.

Ainda no ano de 2017, em meio a diversas acusações de assédio sexual contra Trump, a embaixadora republicana declarou que acreditava que as vítimas tinham o direito de fala e deveriam ser ouvidas. Já em 2023, quando o ex-presidente foi declarado culpado de difamação e agressão sexual contra a jornalista E. Jean Carroll, a atual pré-candidata à Presidência reiterou sua posição de defesa das mulheres vítimas de assédio, ainda que tenha adotado uma linguagem mais neutra, afirmando que ambos os lados devem ser ouvidos até que os recursos jurídicos sejam exauridos.

Donald Trump E. Jean Carroll John Johnson and Ivana Trump(Arquivo) Jean Carroll (2ª à esq.), Donald e Ivana Trump, e o então marido da jornalista, o âncora de televisão John Johnson, em uma festa da NBC, em 1987 (Crédito: Cortesia/ Carroll/ St. Martin’s Press)

As opiniões expressas por Haley sobre Trump após sua saída do posto de embaixadora mudaram constantemente. De início, elogiou seu ex-chefe, dizendo que era uma pessoa extremamente honesta e que sempre esteve aberto a ouvir seus conselhos. Após a invasão ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, no entanto, disse ter-se decepcionado com o presidente e que, com isso, ele havia perdido qualquer viabilidade política residual. Alguns meses depois, porém, voltou a enaltecê-lo, afirmando que Trump “é capaz de fazer pessoas fortes serem eleitas e é capaz de fazer as coisas acontecerem, e eu espero que ele continue fazendo isso”. No mesmo ano, também assegurou que, caso Trump se candidatasse à presidência em 2024, não disputaria a corrida eleitoral contra o ex-presidente.

Candidatura à Presidência em 2024

Mas, demonstrando mais uma vez a inconsistência de suas declarações, em 15 de fevereiro de 2023, Nikki Haley anuncia sua candidatura à Presidência dos Estados Unidos, tornando-se um dos principais obstáculos à reeleição de Donald Trump. Desde então, sua campanha vem investindo na ideia da necessidade de a nação abandonar figuras ultrapassadas e de se apostar na nova geração como o caminho para a salvação do Partido Republicano. Também, buscando o voto moderado e liberal, vem destacando, em seus discursos, o fato de ser filha de imigrantes.

Sua campanha tem focado muito no campo da política externa, assumindo uma postura de antagonismo em relação à Rússia que alguns de seus correligionários não estão tão dispostos a adotar. Ela defende a continuação do apoio material dos Estados Unidos aos esforços da Ucrânia na guerra e também a expansão e o fortalecimento da OTAN. Também propõe a adoção de uma postura mais dura frente à China, tecendo críticas à repressão ao povo uigur e à pressão exercida sobre Taiwan, além de responsabilizar o país asiático pela ocorrência da pandemia da covid-19. Apesar de, assim como todos os pré-candidatos republicanos, estar muito distante dos números de Trump, Haley encontra-se em 3º lugar nas pesquisas eleitorais, com 8,6% das intenções de voto, atrás apenas de Trump e Ron DeSantis.

Mas a conjuntura atual dos Estados Unidos não favorece suas ambições. A característica principal da carreira política de Haley talvez seja a indecisão. E, em um cenário político cada vez mais caracterizado pela polarização e pelo crescimento do conservadorismo extremista, é improvável que uma candidata mais próxima do centro, de ascendência indiana e com posicionamentos inconsistentes tenha chances de ganhar a nomeação do Partido Republicano. Nota-se, contudo, que Nikki Haley já saiu vitoriosa em outras situações improváveis. E, como seu passado comprova, a política tem uma natureza extremamente imprevisível.

 

* Pedro Sena Pederneiras é colaborador do OPEU e graduando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ). Contato: psena9898@gmail.com.

Augusto Scapini é bolsista de Iniciação Científica INCT-INEU/OPEU (PIBIC-CNPq) e graduando em Relações Internacionais do IRID/UFRJ. Contato: augusto.scapini@ufrj.br.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 7 nov. 2023. Este Panorama EUA não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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