Código de conduta dos juízes da Suprema Corte dos EUA: a legitimação do elitismo judicial
Prédio da Suprema Corte dos EUA, em Washington, D.C. (Crédito: Patrick McKay/Flickr)
Por Celly Cook Inatomi* [Informe OPEU]
Nessa segunda-feira, dia 13 de novembro de 2023, foi assinado e publicado um Código de Conduta para os juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos. É a primeira vez na história da instituição que um documento com esse teor é divulgado, e seu evento é bastante sintomático e representativo da crise pela qual a mais alta corte do país vem passando ao longo dos últimos anos. Até então, apenas os juízes de cortes federais menores eram obrigados a seguir um Código de Conduta, que, em tese, também servia de parâmetro para a atuação dos juízes da Suprema Corte. O Código apresentado agora, no entanto, estabelece regras específicas para esses últimos, considerando as características próprias da instituição.
Embora alguns possam enxergar nesse movimento inaugural um caminho importante para restabelecer a integridade, legitimidade e accountability da Suprema Corte, sua efetividade parece ser um horizonte distante, uma vez que tudo parece ter mudado para continuar exatamente do jeito que está, senão pior. Seja pela forma como respondem aos críticos da Corte, seja pelo modo como o documento foi elaborado, seja pela completa ineficácia de seu conteúdo, o Código é o retrato mais fidedigno da ausência de controles democráticos sobre a Suprema Corte, do elitismo judicial que naturaliza expectativas sobre o comportamento de seus juízes, e do forte aparelhamento judicial por grandes corporações.
Mas há, ainda, algo mais importante e que merece destaque. De um lado, seu discurso reconhece a política onde todos podem facilmente vê-la – como nas ligações dos juízes com organizações e partidos e na aceitação de presentes de grandes doadores de campanhas políticas e judiciais. De outro, a ignora em momentos importantes do processo judicial – como nas petições de amicus curiae, que têm impactos relevantes no resultado das decisões judiciais.
Escuta seletiva, resposta estratégica e naturalização do elitismo
Um dos primeiros aspectos que chama atenção no texto do Código elaborado pelos juízes da Suprema Corte é a justificativa para sua feitura, que expõe uma escuta seletiva das críticas que a Corte tem recebido, bem como uma resposta estratégica às pressões feitas por membros do Senado para o estabelecimento de um Código de Conduta, naturalizando o elitismo de sua atuação. Não fossem as inúmeras manchetes que ocuparam os jornais estadunidenses a construir uma memória recente sobre os escândalos de corrupção envolvendo juízes da Suprema Corte, a leitura descontextualizada do Código levaria à interpretação de que se trata apenas de um ajuste formal de algo que já era realizado na prática.
Segundo os juízes, as críticas que a Suprema Corte recebeu nos últimos tempos foram, antes, resultados de um mal-entendido do que propriamente da má-conduta de seus membros. Argumentam, como já fizeram-no em outras ocasiões, que eles sempre seguiram princípios éticos, derivados de uma variedade de fontes, como o Código de Conduta que se aplica aos juízes de cortes federais menores, os pareceres consultivos emitidos pelo Comitê Judicial sobre Códigos de Conduta, bem como as práticas históricas de comportamento ético judicial. O problema, em essência, seria que a ausência de um Código específico para os juízes da Suprema Corte acabou levando à percepção equivocada de que eles não seguiam regra alguma. Dessa forma, a elaboração de um Código próprio viria a suprir essa deficiência e colocar um fim aos mal-entendidos, formalizando princípios que, na prática e segundo eles mesmos, já estruturavam suas condutas.
A resposta dos juízes por meio do Código é estratégica, na medida em que, ao mesmo tempo em que responde a muitos pedidos anteriores de regras próprias para os juízes da Suprema Corte, não prevê mecanismos de controle e de investigação, caso algum deles esteja sob suspeita, ou denúncia. Alegar que eles sempre se pautaram por regras éticas e que agora a questão está resolvida porque finalmente eles têm um código próprio é exigir dos cidadãos a confiança em sua integridade simplesmente porque são juízes da mais alta corte do país. Além disso, escondem-se atrás de justificativas institucionais, argumentando que muitos comportamentos exigidos de juízes de cortes menores, como a abstenção no julgamento de casos, não podem ser igualmente exigidos dos juízes da Suprema Corte, sob o risco de colocar em xeque seu próprio funcionamento, dado que não existem mecanismos de substituição dos juízes ausentes.
Juiz Clarence Thomas, na posse do então vice-presidente dos EUA, Mike Pence, em Washington, D.C., em 20 jan. 2017 (Crédito: Thomas Cizauskas/Flickr)
Assim, embora o Código estabeleça regras para questões que estiveram no topo das preocupações com a ética dos juízes da Suprema Corte, como o recebimento de presentes e a abstenção dos juízes em casos em que podem ser vistos como suspeitos, ele não muda o cenário do que eles podem, ou não, fazer, ainda deixando a cargo individual de cada um a decisão sobre a melhor conduta a ser adotada. E, se o Código apenas formaliza princípios que na prática já são voluntariamente adotados pelos juízes, fica a pergunta sobre quais foram os princípios que pautaram a conduta de Clarence Thomas e de Samuel Alito, ao receberem presentes de bilionários doadores do Partido Republicano estimados em mais de US$ 500 mil e US$ 100 mil cada um. A essas críticas, os juízes não escutam, ou respondem, e nem se sentem compelidos a responder.
A política da frota de amicus curiae de fora do radar
Um aspecto que não é explicitado no Código, mas que está indiretamente presente em seu texto, está relacionado às organizações que apresentam as petições de amicus curiae na Suprema Corte. Como já argumentado em outra ocasião, o aumento exponencial de petições de amicus curiae tem constituído uma tendência nos processos em curso na Suprema Corte, e isso se dá, em grande medida, não apenas pelo forte investimento financeiro, cultural, social e acadêmico nessa atividade, mas, concomitantemente, pela observação de que eles têm grande influência nas decisões judiciais da Suprema Corte.
Mais importante: as organizações que mais apresentam petições de amicus curiae vêm se beneficiando de uma decisão da maioria conservadora da Suprema Corte, a Citizens United v. FAC, de 2010. Além de retirar o critério de limite de valor nas doações feitas para essas organizações por grandes corporações, ou magnatas estadunidenses, ela também retirou a necessidade de registro do nome do doador, facilitando sobremaneira a circulação de dark money em campanhas políticas e judiciais, das quais a elaboração de amicus curiae é parte central.
O mais grave nessa situação é que as organizações que mais têm se beneficiado contam com doadores com relações de proximidade muito grande com juízes conservadores da Suprema Corte, como é o caso dos irmãos Koch e dos grupos ligados ao magnata Leonard Leo, que já conseguiram obter na instituição a reversão de precedentes jurídicos caros aos direitos civis e aos direitos de voto no país. É sempre bom lembrar que cerca de US$ 12,5 milhões em dark money foram fornecidos aos grupos que apresentaram amicus curiae para o caso Shelby County v. Holder, de 2012, em que a maioria conservadora da Suprema Corte esvaziou o Voting Rights Act de 1965; e que um total de US$ 116 milhões em doações desses magnatas foram encontrados entre 2015 e 2019 para essas organizações peticionantes de amicus curiae.
Os irmãos Koch, Charles de Ganahl Koch e David Hamilton (Crédito: DonkeyHotey/Flickr)
Com tudo isso, e embora os juízes reconheçam a relação entre doadores e organizações, o texto do Código por eles elaborado estabeleceu que a presença dessas organizações e de seus advogados não poderá constituir base para processos de recusa dos juízes em analisar casos judiciais. Se a decisão de 2010 da Suprema Corte sobre doações de campanha abriu as portas para a corrupção política e judicial, o Código de Conduta elaborado pelos juízes da Suprema Corte veio para legitimar a situação, não estabelecendo nenhum tipo de provisão específica acerca dos amicus curiae.
Controles sobre a Suprema Corte: um perigo para a democracia, ou uma necessidade democrática?
Fala-se que é bastante arriscado democraticamente permitir controles políticos sobre a Suprema Corte, que pode ter não apenas sua legitimidade solapada, como também se tornar uma instituição sem a autonomia e a independência necessárias para atuar dentro de um regime democrático. O oposto, porém, também é um risco. Não ter nenhum tipo de controle, ou de responsividade, por parte da Corte constitui um cheque em branco, possibilitando situações nas quais os juízes acabam por decidir a favor daqueles que possuem mais condições estruturais de fazer valer seus interesses.
Além de não serem poucos e nem insignificantes os exemplos de corrupção dos juízes da Suprema Corte, também não são poucos os exemplos de reversão de entendimentos jurisprudenciais e de leis federais que alguns setores já conseguiram da maioria conservadora da Corte. Situação essa que vem promovendo um verdadeiro desmonte de direitos historicamente reconhecidos e o estabelecimento de uma federação onde os estados têm poderes quase que ilimitados. Não é à toa, portanto, a desesperança que muitos depositavam nas possibilidades do estabelecimento de controles éticos sobre a Suprema Corte. O que causa certo estranhamento, porém, é a chancela uníssona de todos os seus juízes com relação ao tema. A explicação certamente deve ser buscada no aprofundamento das pesquisas sobre a Suprema Corte, enfatizando questões estruturais e institucionais que possibilitem explorar o elitismo e o corporativismo de seus membros.
* Celly Cook Inatomi é colunista do Opeu e pesquisadora colaboradora da Unicamp. Especialista em relações entre política, direito e judiciário, é autora de As análises políticas sobre o Poder Judiciário: Lições da ciência política norte-americana (Editora Unicamp, 2020). Contato: celoca05@yahoo.com.br.
Conheça alguns dos textos da autora no Opeu
A anulação de Roe vs. Wade e o início do fim dos direitos nos EUA, em coautoria com Augusto Scapini e Diana Obermuller, em 26 jun. 2022
Celly Cook conversa com Opeu sobre legado de Trump no Judiciário dos EUA, entrevista a Augusto Scapini, em 21 jun. 2022
Os juízes de Trump e o projeto conservador de direitos civis, de 23 dez. 2020
O rompante democrático da Suprema Corte dos EUA, de 14 dez. 2020
‘Terra de ninguém‘: os direitos de voto nas eleições americanas de 2020 , de 1º nov. 2020
Ruth Ginsburg e a ordem constitucional democrática nos EUA, de 24 set. 2020
O textualismo a favor dos direitos LGBTs nos Estados Unidos de Trump, de 16 jul. 2020
Originalismo e resgate do Éden, de 15 dez. 2019
Os juízes ultraconservadores de Trump, de 1º set. 2019
** Edição e revisão: Tatiana Teixeira. Recebido em 15 nov. 2023. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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