Sun Belt, o calor extremo de 2023 e o impacto na vida dos trabalhadores latinos
Sol brilha no Deserto do Arizona (Crédito: Not That Bob James/Flickr)
Por João Felipe Ronqui de Carvalho, para Latino Observatory* [Republicação]
Miami Heat, o Calor de Miami, é o nome da franquia de basquete mais popular do estado da Flórida. Tricampeão do título, na primeira vez com Shaquille O’Neal e, nas outras duas, com LeBron James, é na atualidade um dos times mais consistentes e competitivos da NBA. O nome do time não poderia ser outro. A “Heat Culture” – “Cultura do calor”, como chamam os torcedores do time – é uma cultura que representa muito bem a cidade de Miami e, por extensão, todo o estado da Flórida. Adicionalmente, o estado faz parte de uma faixa no sul dos Estados Unidos que é a de maior intensidade de calor no país, o Sun Belt – Cinturão do Sol.
Diversas perspectivas são possíveis para a observação e a análise da política, sociedade e economia dos Estados Unidos, trabalho que buscamos realizar no Latino Observatory. Em muitas dessas perspectivas, a região sul do país se destaca do resto do país, e os estados que a compõem demonstram características semelhantes entre si. Uma análise por um ponto de vista econômico revela que três dos quatro maiores estados em termos de Produto Interno Bruto (PIB) estão situados na região sul. Califórnia, Texas e Flórida ocupam primeiro, segundo e quarto lugar, respectivamente. Juntos, correspondem a mais de um quarto do PIB total da nação. A partir do olhar demográfico, o sul do país abriga cerca de 45 milhões de cidadãos latinos, parcela significativa dos 62 milhões totais do país registrados pelo censo demográfico de 2020. Do ponto de vista geográfico, por sua vez, a região sul se destaca por possuir as maiores médias de temperatura nos Estados Unidos. Por esse motivo, a faixa de estados que compreende desde a Flórida até a Califórnia é conhecida como Sun Belt.
Além disso, mesmo se considerando essas características excepcionais do sul dos Estados Unidos, os trabalhadores, geradores da considerável riqueza desses estados, enfrentam desafios resultantes das altas temperaturas, uma característica especialmente recorrente nos meses de verão. A população latina, além de parte substancial dessa força de trabalho, como demonstrado pelo censo de 2020, também sofre desproporcionalmente com as consequências desse clima extremo, por, em grande medida, viver em condições marginalizadas, se comparadas aos grupos que não são minorias sociais nos Estados Unidos. Por esse motivo, o presente texto busca esclarecer alguns dos impactos causados pelas condições climáticas e suas decorrências políticas e econômicas da região conhecida como Sun Belt, em relação à comunidade latina.
(Arquivo) Poucas árvores em “guetos” em Miami, próximo ao centro, em 20 ago. 2012 (Crédito: C64-92/Flickr)
O Sun Belt é a região dos Estados Unidos que ocupa a porção sul do país com a totalidade dos estados do Alabama, Carolina do Sul, Flórida, Geórgia, Louisiana, Mississippi e Texas, além da parte mais ao sul do Arizona, Arkansas, Califórnia, Carolina do Norte, Colorado, Kansas, Nevada, Novo México, Oklahoma, Tennessee e Utah. A região abriga cerca de 50% da população dos Estados Unidos e se espera que cresça em 19 milhões de habitantes na próxima década. O custo de vida mais baixo e a propícia qualidade de vida são atraentes para a região. O termo foi cunhado em 1969 pelo analista político Kevin Phillips, notando especialmente o clima característico e a onda migratória para a faixa de território ao sul.
Segundo estudo divulgado pela Rice University de Houston, entre 2000 e 2016 as mudanças populacionais foram mais acentuadas nas regiões do Sun Belt para os grupos étnicos minoritários. Durante o período, a proporção da população branca diminuiu, enquanto a população negra e latina/hispânica aumentou. Apesar do aumento da diversidade, a integração racial não acompanhou essa estatística. É possível observar um descompasso salarial na região entre os migrantes latinos e os migrantes brancos do período. O mesmo estudo, porém, aponta que o descompasso é próximo ao existente em todo o território americano. Portanto, apesar de ser uma segregação econômica entre as diferentes etnias – especialmente a latina, mas não unicamente ela – é um padrão que não se destaca se comparado com a segregação étnica do resto dos Estados Unidos. Apesar do crescimento populacional levar ao aumento de emprego nos setores de finanças, imóveis, serviços profissionais, técnicos, científicos e da área da saúde, o setor que os latinos mais ocupam são os de baixa remuneração, como prestação de serviços de limpeza, alimentação e empregos em setores de varejo e na construção civil.
Nos últimos anos, as mudanças climáticas aumentaram as médias de temperatura registradas nos últimos séculos e levaram a ondas de calor mais frequentes e severas. Os impactos sofridos pelas populações fazem com que o assunto não seja apenas uma questão ecológica, ou de preservação do meio ambiente, mas também de saúde pública, especialmente em regiões com climas mais quentes. Desde julho de 2023, as ondas de calor em várias partes do Hemisfério Norte, incluindo o Sun Belt, registraram máximas históricas de temperatura, como Catalunha, Arizona e Ilhas Cayman. Phoenix, capital do Arizona, registrou recorde de dias seguidos sem abaixar dos 90°F (32,2°C). Além disso, o dia 3 de julho de 2023 foi o dia com a média global de temperatura mais alta já registrada, superando agosto de 2016. Incêndios devastaram florestas na Europa e no Canadá por conta desse verão destruidor.
Nesse contexto, os desafios enfrentados pelos trabalhadores da região do Sun Belt têm-se intensificado. Altas temperaturas, especialmente no verão, colocam um fardo adicional sobre aqueles que ocupam posições de baixa remuneração. O aumento das ondas de calor não afeta apenas a saúde dos trabalhadores, mas também coloca em risco sua segurança alimentar e habitacional e de sua comunidade. O relato do agricultor texano Russel Boening para a NBCNews explicita que os agricultores do estado estão acostumados com o calor do verão e que deixam esse plantio como uma “Margem de Erro” pelo mês de julho. Este ano, porém, ele duvida de que voltará a ter alguma produção antes do final de agosto: “O clima está mudando? Sim. Eu não acho que haja muita discussão nisso”.
Chispa Arizona
No dia 11 de agosto de 2023, depois do recorde de dias seguidos de calor extremo, a governadora do Arizona, Katie Hobbs, declarou estado de emergência em seu estado, apoiando os esforços locais de aliviar o calor extremo. Em momentos como esse, a pauta climática e ambientalista emerge com maior vigor e os grupos que trabalham para combater as causas e mitigar as consequências do descaso com a pauta ambiental, acabam recebendo maior atenção da sociedade civil. Um desses grupos que, com dificuldade, lutam pelo meio ambiente, é o Chispa Arizona (chispaaz.org), um grupo de ativistas de origem étnica latina preocupados com o meio ambiente.
A Chispa Arizona prevê uma democracia inclusiva que priorize os direitos das comunidades de acesso ao ar e água limpos, vizinhanças saudáveis e climas seguros para as gerações vindouras. O grupo entende que os latinos estão entre os mais impactados pelo aquecimento global e pela mudança climática, e apoiam ações impactantes dos governos para proteger o meio ambiente e derrocar a poluição. Como um grupo ativista, busca movimentar as pautas e protestar em nome do ativismo ecológico, estando à frente da comunidade civil e, especialmente, representando os grupos latinos que são impactados pelas catástrofes climáticas – como o calor extremo do verão de 2023 na região de Phoenix e nos outros estados do Sun Belt.
“Acordar no calor extremo, todos os dias, faz com que eu me sinta exausta, sem motivação para fazer nada. Como se estivesse desperdiçando a minha vida”. O impactante relato de uma jovem latina foi publicado nas redes sociais do Chispa AZ. Casos como esse são a representação do que o calor extremo traz para a vida dessa comunidade. É necessário questionar como é o impacto para os jovens de outras comunidades em Phoenix, ou nas outras grandes cidades do Sun Belt: Miami, Houston, Los Angeles. Cidades que estão entre as maiores do país, com toda a estrutura e tecnologia da maior economia capitalista do mundo, que tratam desigualmente as diferentes etnias. Os jovens de minorias étnicas têm perspectivas de vida diferentes em relação às emergências climáticas.
Neste contexto, o Latino Observatory entrevistou Vania Guevara, Advocacy Deputy Director do Chispa Arizona que observa que o foco principal da organização é a justiça ambiental, apesar de não poder deixar de lado sua interseção crucial com a justiça racial e equidade. “Latinos, pretos, ‘pessoas de cor’ no geral no Arizona são desproporcionalmente afetados pelas mudanças climáticas”. Vania nos explicou que a cidade se expandiu com uma segregação racial, em áreas em que as comunidades de “pessoas de cor” têm sua sensação de temperatura de 4,5°C a 7°C maiores.
O grupo Chispa Arizona está empenhado em trabalhar com autoridades eleitas para garantir que medidas sejam tomadas para abordar esses problemas. Eles pressionam pela alocação de recursos em orçamentos públicos. Um exemplo recente foi a parceria com um senador estadual para garantir financiamento do governo para plantar árvores em escolas. Essa ação, que pode parecer singela, tem um impacto significativo, não apenas melhorando a qualidade do ar, mas também proporcionando sombra para crianças nas escolas, promovendo sua saúde mental. Além da questão das árvores, a Chispa Arizona se concentra na equidade no acesso a parques e espaços públicos verdes. Muitas comunidades latinas vivem em complexos de apartamentos, ou áreas sem fácil acesso a áreas verdes e parques. A organização também tem um componente relacionado à energia limpa e promove a importância do voto como uma maneira de abordar essas questões.
Sobre a atitude da governadora Katie Hobbs durante o período de 30 dias de calor extremo, perguntamos a Vania se a atitude teve efeitos, ou só se tratou de um gesto simbólico. Para ela, a postura da governadora ajudou a receber maiores financiamentos e recursos do governo federal para lidar com o calor, além de informar toda a população para que se protegesse e tratasse o problema como um grande perigo à saúde.
Governadora Katie Hobbs, em evento no Capitólio estadual, em Phoenix, Arizona, em 14 fev. 2023 (Crédito: Gage Skidmore)
Em sua busca por justiça ambiental e racial, o Chispa Arizona oferece oportunidades não apenas para ação, como protestos e pedidos de políticas de justiça ambiental, mas também promove uma conexão direta com a natureza. Eles organizam atividades que permitem que os membros da comunidade desfrutem da beleza natural do Arizona, enfatizando a importância de proteger o planeta enquanto apreciam seus benefícios. Além disso, Vania questiona as estruturas do campo político em que atuam: “A maneira como o sistema está construído, sua estrutura não é destinada para pessoas como nós. O sistema criou e continua criando intencionalmente políticas que nos discriminam. A criação dos bairros de Phoenix, os recursos e a estrutura de bairros de população majoritariamente negra e latina/parda (Black and Brown communities) não podem competir com aqueles em bairros tipicamente brancos. Por isso, estamos enfrentando muitos obstáculos. É verdade, eu sinto que temos mais representatividade agora, mas acredito que nunca iremos parar de lutar. Precisamos lutar para fazer isso acontecer. Justiça ambiental é justiça racial, abordar a justiça ambiental requer que falemos sobre justiça racial”.
Em um cenário marcado pelo calor extremo e pelas mudanças climáticas cada vez mais evidentes, a comunidade latina do Sun Belt enfrenta desafios complexos que vão além das altas temperaturas. Além de lutar contra as consequências diretas do clima, como ondas de calor devastadoras, essa comunidade também enfrenta disparidades raciais e econômicas profundamente arraigadas. Organizações como o Chispa Arizona desempenham um papel crucial ao combater essas desigualdades, pressionando por políticas que protegem o meio ambiente e abordam questões de justiça racial, enquanto também promovem uma conexão direta com a natureza para criar conscientização e engajamento. No entanto, a batalha está longe de ser vencida, pois estruturas políticas discriminatórias continuam a criar obstáculos significativos. Apesar dos avanços na representatividade, a luta pela justiça ambiental e racial persiste, exigindo esforços contínuos para superar as barreiras existentes.
* João Felipe Ronqui de Carvalho é graduando de Relações Internacionais da Unesp-Marília.
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