DACA: direitos dos ‘Dreamers’ continuam no limbo
(Arquivo) Protesto em Los Angeles, em 5 set. 2017 (Crédito: Molly Adams/Flickr)
Em 15 de junho de 2012, o Departamento de Segurança Interna dos EUA (DHS, na sigla em inglês) anunciou que não iria deportar jovens indocumentados que vieram para os Estados Unidos quando crianças. De acordo com uma diretiva do secretário do DHS, Alejandro Mayorkas, estes jovens poderiam receber um tipo de permissão temporária para permanecer nos EUA chamada “deferred action” (ação diferida). A administração Obama chamou este programa de “Deferred Action for Childhood Arrivals” (Ação Diferida para Chegadas na Infância), ou DACA.
Apesar de não oferecer um caminho para a cidadania, o DACA proporcionou autorização de trabalho — suspendendo a deportação por dois anos consecutivos, sendo renovável — para aproximadamente 822 mil jovens indocumentados nos Estados Unidos, conhecidos como Dreamers. A idade média dos beneficiários do DACA era de 21 anos quando o programa foi estabelecido; a maioria está na casa dos 30 anos agora. O maior número foi trazido do México para os Estados Unidos, e muitos outros nasceram na América Central, ou do Sul, e no Caribe. O grupo de estudantes indocumentados que mais cresce é o da Ásia. Nós tratamos do tema dos Dreamers no Latino Observatory, quando a medida completou dez anos.
Apesar de tantos beneficiários conhecidos como Dreamers, o programa continua em um limbo jurídico: não é considerado legal, mas também não era considerado ilegal nos Estados Unidos. O programa vem enfrentando diversos problemas quanto à permissão de existir e operar logo após sua criação. Mais recentemente, em 13 de setembro de 2023, o juiz Andrew S. Hanen, do Tribunal Distrital Federal em Houston, alegou que o presidente Barack Obama excedeu sua autoridade, ao criar o DACA por ação executiva e declarou-o ilegal. A decisão é a mais recente reviravolta em uma saga judicial que se estende por mais de cinco anos.
A princípio, vale fazer uma visita histórica das questões legais do DACA. Em geral, questionava-se a autoridade do DHS em implementar o programa, porque a Lei de Imigração e Nacionalidade (INA) estabelece um esquema intrincado de restrições quanto a quais estrangeiros podem entrar, ou permanecer, nos Estados Unidos e sob quais condições, e a permissão concedida aos Dreamers não está inclusa. Logo, afirmou-se que o programa contradiz diretamente a decisão do Congresso de restringir a elegibilidade do green card (visto permanente de imigração) a estrangeiros que não foram “legalmente admitidos nos Estados Unidos”. Além disso, a licença de viagem subverte a lei “3-e-10-anos”, cujo fim é proibir estrangeiros que estiveram ilegalmente presentes nos Estados Unidos por 180 dias, ou 365 dias, respectivamente, de reentrar no país por 3, ou 10 anos.
Desde 2015 existem, também, desafios estaduais. Nesse sentido, o Estado do Texas — junto com outros oito estados majoritariamente republicanos — questionou a legalidade do DACA, a partir de uma decisão de 2015 do Tribunal de Apelações dos EUA para o Quinto Circuito (Texas I) que considerou ilegal uma iniciativa parecida: de conceder visto aos pais ilegalmente presentes de filhos cidadãos americanos, ou residentes permanentes legais (LPR).
Logo, em 2017, a administração de Donald Trump publicou um memorando rescindindo o DACA e exigiu que o Departamento de Segurança Interna encerrasse o programa. A Suprema Corte reinstaurou-o, depois de constatar em 2020 que a administração Trump não havia justificado adequadamente sua eliminação. Mas o alto tribunal não se pronunciou sobre a legalidade da criação do programa pelo presidente Obama. A administração Biden iniciou um procedimento de regulamentação em 2021 para tentar explicitamente fortalecer a base legal do DACA, mas a regra emitida pela administração não convenceu o juiz. Ao mesmo temp0, ele também não fez incentivo à adoção de qualquer medida de imigração, deportação, ou ação criminal contra beneficiários do DACA.
Agora, embora a decisão seja um golpe para os Dreamers, o juiz permitiu que os inscritos atuais continuem a renovar a cada dois anos, mas proibiu novas inscrições, tornando dezenas de milhares de imigrantes indocumentados mais jovens inelegíveis para o benefício. É importante mencionar que o DACA permitiu aos beneficiários prosseguirem o ensino superior, tornarem-se proprietários de casas e ganharem salários mais elevados. Agora, porém, impera o medo de terem suas renovações dificultadas e perderem suas condições de vida. Em 2018, a American Progress fez uma pesquisa, na qual 64% dos Dreamers relataram que pensam na deportação de um membro da família pelo menos uma vez por dia, e 76% dos que têm filhos relataram que temem “serem separados dos [seus] filhos por causa da deportação”, ou “não poder ver [seus] filhos crescerem por causa da deportação”, pelo menos uma vez ao dia. Nessa lógica, em 2023, com a ilegalidade do programa atestada, as preocupações devem se intensificar.
O debate em torno do programa levanta questões significativas sobre a responsabilidade do Congresso dos Estados Unidos em relação à legislação de imigração e o possível papel da Suprema Corte na resolução desse impasse.
Suprema Corte dos EUA, em Washington, D.C. (Crédito: Eugeniu Cozac/Flickr)
Uma das principais áreas de discussão, envolvendo o projeto, é a responsabilidade do Congresso em criar leis de imigração mais claras e permanentes. O DACA foi projetado como uma medida temporária para proteger os jovens imigrantes que chegaram aos Estados Unidos quando crianças. Sua temporariedade tem sido, no entanto, uma fonte de incerteza para os beneficiários do programa.
No palco federal, o Congresso detém o poder de promulgar proteções duradouras que oferecem um caminho claro para a cidadania para a comunidade indocumentada, que dia após dia continua a contribuir ativamente para locais de trabalho, escolas, bairros etc. O futuro de centenas de milhares de jovens imigrantes indocumentados repousa nas mãos da Suprema Corte, mas, até o momento, o Congresso não conseguiu chegar a um consenso sobre a legislação de imigração que aborde adequadamente a situação dos Dreamers.
A Suprema Corte dos Estados Unidos também assume, por sua vez, centralidade na discussão. O Advogado-Geral dos Estados Unidos, Noel Francisco, em defesa do governo federal, buscou influenciar os juízes para não se envolverem na questão. Naquele momento, ainda durante o governo de Donald Trump, ele argumentou que a decisão da administração de encerrar o DACA não está sujeita à revisão judicial, argumentando que ela simplesmente pôs fim à escolha de uma administração anterior de não aplicar a política de imigração. Francisco enfatizou que essa escolha se enquadra completamente na discricionariedade da agência e, portanto, não pode ser contestada pelos tribunais. Os defensores do DACA são contrários a esse posicionamento e acreditam que a Suprema Corte deve revisar a decisão de encerramento do programa.
A segunda questão diante dos juízes era se a decisão da administração Trump de encerrar o programa violou a lei. Nesse ponto, o caso está em uma situação um tanto incomum, porque todos concordam que a administração poderia encerrá-lo, se quisesse. Como resultado, o foco está, principalmente, no processo pelo qual a administração Trump chegou à sua decisão, em vez da substância da decisão em si.
Os argumentos apresentados diante da Suprema Corte se concentram na legalidade do projeto e no processo pelo qual a decisão de encerrá-lo foi tomada. Os juízes expressaram preocupação sobre se a administração considerou adequadamente os interesses de confiança dos beneficiários do DACA e forneceu uma explicação suficiente para encerrar o programa.
“… Não gostamos do DACA e estamos assumindo a responsabilidade por isso, em vez de tentar colocar a culpa na lei”. Francisco respondeu, dizendo aos juízes que o governo é dono da decisão de encerrar o programa.
Atualmente, a Suprema Corte também enfrenta o desafio de determinar até que ponto as decisões de agências federais, como a revogação do programa, devem ser revisadas pelos tribunais. Isso levanta a questão mais ampla de como equilibrar a autoridade das agências e o escopo da revisão judicial, além de trazer à tona o debate acerca dos limites do Poder Executivo — a autoridade do presidente para implementar programas que barram tantas questões legais gerais como o DACA.
Vale mencionar também que o DACA tem sido um ponto de discórdia política nos EUA, à medida que republicanos se manifestam majoritariamente contra, e democratas, a favor. Tradicionalmente, os democratas em geral apoiam políticas mais inclusivas para imigrantes, enquanto os republicanos tendem a enfatizar a segurança nas fronteiras e a aplicação rigorosa das leis de imigração. Há que se considerar o fato de que a maioria da população de origem latina/hispânica tende a votar com os democratas, fazendo com que os republicanos reajam ao aumento populacional desse segmento. A isso se soma um inédito nível de polarização partidária, não apenas no que tange à imigração, mas também quanto a energias renováveis, tributação, direitos individuais, costumes etc. Considerando-se que as decisões mais significativas do Congresso dos Estados Unidos dependem de uma maioria qualificada de pelo menos 60% dos votos, é quase impossível encontrar um terreno comum para aprovar reformas abrangentes.
Em tese, em um sistema político equilibrado e democrático, os membros dos partidos Democrata e Republicano deveriam trabalhar juntos para encontrar soluções comuns em relação às políticas imigratórias nos Estados Unidos, como a necessidade de uma política que seja justa, eficaz e humanitária e que atenda às demandas por trabalhadores dentro do país. Infelizmente, não é o que se espera do sistema político no curto prazo. Enquanto isso, o futuro dos Dreamers continua incerto e no limbo jurídico.
* Beatriz Zanin de Moraes e Gabriel Carvalho Fogaça são graduandos do curso de Relações Internacionais da Unesp e pesquisadores do Latino Observatory, sob coordenação e orientação de Marcos Cordeiro Pires e Thaís Lacerda. Contatos: beatrizzm2@gmail.com e gc.focaca@unesp.br.
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