Sociedade

Transfixação: dos pânicos morais à securitização

(Arquivo) Protesto contra a discriminação das pessoas trans em Boston, nos EUA, em 28 out. 2018 (Crédito: Amanda Y. Su/The Harvard Crimson)

Por Débora M. Binatti* [Informe OPEU]

A transgeneridade é indissociável da história dos Estados Unidos, visto que a diversidade de gênero já era originária no continente antes da binaridade da colonização. Dessa forma, não é possível falar de transgêneros na sociedade desse país sem falar de pânicos morais, ideologias e, por fim, certa transfixação: da sociedade até a securitização.

O pânico moral nasce da falácia da “ideologia de gênero”, criada pela igreja católica e exportada para as políticas locais. Antes, tal dinâmica era vista como um fenômeno majoritariamente latino-americano. Essa tendência se alastrou, contudo, para o Norte Global, colocando em xeque ideais liberais da sociedade estadunidense.

Nesse processo, foi inevitável a boa receptividade nos EUA, em especial em estados conservadores como Missouri, Oklahoma e aquele que protagoniza este texto: o Texas. Nessas regiões, o pânico moral se deparou com um plano favorável ao seu crescimento, devido ao conservadorismo e à suscetibilidade ao discurso. Faz-se, assim, perceptível não apenas o estigma e a violência social contra indivíduos transgêneros, que partem dos pânicos morais, como políticas que atuam ativamente contra o grupo. Essas medidas podem ser quantitativamente mensuradas, seja por meio de dados, como os da Human Rights Campaign, seja pelo levantamento das leis e propostas de leis anti-LGBTQIA+ feito pela Trans Legislation e pela American Civil Liberties Union (ACLU).

Vale ressaltar, de toda forma, que não se trata de um fenômeno puramente legislativo. A caça às bruxas contra os indivíduos transgêneros acontece em diversos níveis da sociedade, e a mídia exerce um papel muito importante nesse processo: jornais e noticiários conservadores – por vezes até mesmo aqueles que se dizem progressistas – estimulam tal pânico moral.

A participação dos meios de comunicação, é importante frisar, não é um exagero. “Defensores dos Direitos dos Pais lutam contra o ativismo midiático sobre tratamentos infantis de mudança de sexo” (“Parental Rights Advocates Battle With Activist Media Over Child Sex Change Treatments | The Daily Caller”, 2023)” e “Os EUA proibiriam totalmente atletas trans, mas permitiriam exceções” (“US would bar full ban on trans athletes but allow exceptions | North Carolina Lawyers Weekly, 2023)” são apenas alguns exemplos de como transgêneros estão sendo progressivamente transformados em pautas de segurança por meio da mídia – seja a segurança das crianças, dos atletas, ou até mesmo da sociedade. Dessa maneira, o grupo, já estigmatizado, a partir do pânico moral, vai-se tornando progressivamente uma pauta de segurança, o que leva a legislações cada vez mais agressivas contra pessoas trans sendo aplicadas pelas cortes.

ideologia de gêneroCrédito: Magda Ehlers/Pexels

Assim sendo, devido à contemporaneidade do tema e sabendo da influência das tendências estadunidenses sobre a realidade do Brasil, analisar a relação do Texas com seus civis transgêneros e os impactos que a securitização e os pânicos morais causam é uma forma de compreender, também, possíveis propensões da sociedade brasileira a adotar a mesma postura. Por isso, é necessário entender melhor os pânicos morais e a securitização.

Todavia, não é possível falar de pânico moral sem falar de ideologia de gênero, assim como não é possível falar de ideologia de gênero sem entender o que é pânico moral. Define-se, destarte, pânico moral como o processo em que determinada sociedade, ou parte significativa dela, é tomada por uma preocupação irracional e infundada em relação a um tópico que, por algum motivo, é visto por esse grupo como um problema para a comunidade. Os pânicos morais estão atrelados aos valores individuais da parte societal acometida por eles e não necessariamente são baseados em evidências, ou empirismo.

Um caso icônico de pânico moral foi aquele denominado ideologia de gênero, promovido pela igreja católica e que, hoje em dia, atravessa o Ocidente. No artigo “’Ideologia de gênero’: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo, publicado na revista Sociedade e Estado, em 2017, Richard Miskolci e Maximiliano Campana explicam tal processo:

Segundo o autor [Jorge Scala], a ‘ideologia de gênero’ é um instrumento político-discursivo de alienação com dimensões globais que busca estabelecer um modelo totalitário com a finalidade de ‘impor uma nova antropologia’ a provocar a alteração das pautas morais e desembocar na destruição da sociedade […] Na América Latina, o livro de Scala teve influência importante, sendo o combate contra o que denomina como ‘ideologia’ o que justificou manifestações que vão desde movimentos a favor da família tradicional até manifestações contra políticas de governos de esquerda. Iniciada na Argentina e no Brasil, a disseminação da gramática político-moral da noção de ideologia de gênero já alcançou, em 2016, países como o México e a Colômbia, contribuindo, no caso do primeiro para a luta contra a aprovação do ‘matrimonio sin discriminación’ e, no último, para a vitória do não à paz no plebiscito que visava referendar o acordo com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc)”.

Logo, é possível perceber o papel da fé cristã na construção e no incentivo dos pânicos morais na sociedade, partindo de seus dogmas e princípios, na tentativa de recuperar a influência do Vaticano. Tal processo não se restringe à igreja católica. Pode-se observar a instrumentalização dos pânicos morais também pelas igrejas protestantes, com forte atuação no sul dos EUA, e por outras religiões, como o islamismo. Ainda assim, é importante ressaltar que a instrumentalização da ideologia de gênero parte de um grupo demográfico específico, também descrito pelos pesquisadores.

Os empreendedores morais contra a ‘ideologia de gênero’ são grupos de interesses conservadores que buscam distanciar os movimentos feminista e LGBT, e mesmo seus simpatizantes, das definições de políticas públicas e tomar o controle sobre elas. Sobretudo, dentro do recente campo discursivo de ação reconstituído neste artigo, buscam delimitar o Estado como espaço masculino e heterossexual, portanto refratário às demandas de emancipação feminina e de expansão de direitos e cidadania àqueles e àquelas que consideram ameaçar sua concepção de mundo tradicional”.

Assim como os pânicos morais, a securitização é uma construção social: um tema é designado como uma questão de segurança e é aceito por um setor da sociedade como tal, por meio de uma construção entre atores, na qual há a participação da mídia, como demonstram Caroline Silva e Alexsandro Pereira no artigo “A Teoria de Securitização e a sua aplicação em artigos publicados em periódicos científicos”, publicado na Rev. Sociol. Polit., em 2019. Dessa forma, pode-se correlacionar a ideologia de gênero, os pânicos morais e a securitização como um processo de retroalimentação que incentiva o tratamento da existência de pessoas transgênero como um tema de segurança.

Voltando à sociedade estadunidense, o Texas é conhecido como um dos lugares mais conservadores do país. Fazendo fronteira com os estados de Oklahoma ao norte, Novo México ao oeste, Arkansas ao nordeste e Louisiana ao leste, tendo o México ao sul, o Texas é o segundo maior estado dos EUA, a segunda maior população e o segundo maior colegiado eleitoral. Dessa forma, analisar a realidade do Texas permite observar uma tendência da realidade estadunidense – assim sendo, os dados e as tendências texanas indicam uma política discriminatória generalizada contra indivíduos transsexuais.

Texas - map Royalty Free Vector Image - VectorStockMapa do Texas (Crédito: olenadesign/VectorStock)

Uma das formas mais diretas de compreender a realidade texana para além das mídias que, como já citado, apresentam um comportamento transfóbico em seus jornais alinhados com a direita, seria a análise do parlamento e das propostas de lei votadas. A organização ACLU, por sua vez, acompanha pelo menos 53 leis contra a população LGBTQI+, as quais dividem nas categorias de direitos civis, liberdade de expressão, saúde, acomodações públicas, educação e outros tipos. Desse total, cinco já foram aprovadas e transformadas em legislação vigente. Das leis aprovadas, três se referem à saúde; uma, à educação; e a última proíbe ações afirmativas – incluindo de transgêneros, mas não se restringindo a esse grupo.

Já a Trans Legislation Tracker acompanha 65 leis e/ou propostas de lei que se dividem nas categorias de saúde, educação, outro, esportes e banheiros, que são voltadas para indivíduos transsexuais. Entre elas, pode-se observar proposições como: perda da guarda do pai que levar um menor para outro estado com fins médicos de tratamento relativos à mudança de gênero (TX SB1690); a criminalização de cirurgias genitais – incluindo, e não somente, clirectomia, vaginoplastia, labioplastia e faloplastia –, condenando penalmente médicos que performem essas cirurgias (TX SB249); e a proibição dos  distritos escolares em ofertar uma acomodação que permita que uma pessoa use um banheiro, ou vestiário, acessível (TX HB5235).

Não há como negar que os direitos dos indivíduos transgêneros já estão começando a ser restringidos. Simultaneamente, a mídia continua a promover um discurso associando a transgeneridade à pedofilia, à agressividade e à periculosidade social. É, assim, a atuação do pânico moral para levar à securitização e, em sequência, criminalização do indivíduo trans. Portanto, os indivíduos transsexuais, que já têm seus direitos sendo cerceados e constituem um pânico moral para um setor da sociedade texana, estão passando por um processo de securitização. A aliança da mídia de direita a grupos conservadores da sociedade do Texas está possibilitando que a sociedade legisle sobre o direito, ou não, de pessoas trans irem ao banheiro, terem autorização para promover ações afirmativas, acesso à saúde, aos esportes e às garantias mais básicas. Isso ocorre, porque tais pessoas não estão mais sendo vistas como cidadãos, mas como uma questão de segurança para o restante da sociedade texana – em especial para as crianças.

Vale ressaltar que, como destaca Gayle Rubin, no texto “Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of the Politics of Sexuality. Culture, Society and Sexuality”, de 2006, essa correlação feita entre o pânico moral e a infância é uma relação cíclica e altamente replicada, a fim de agilizar a construção do pânico moral, assim como propagá-lo pela sociedade a ponto de construir punitivismo sobre ele. A partir dessa informação, é possível entender que o enfoque conservador da relação entre a transgeneridade e as crianças, assim como a transgeneridade e a pedofilia e a transgeneridade e os estupros, seriam uma forma de fortalecer essa narrativa.

Desse modo, sendo o pânico moral construído a partir da relação de insegurança entre a sociedade (nós) e o outro que ameaça (eles), a relação entre os fenômenos de pânico moral e securitização é clara: este se constrói a partir daquele. Isto é, o pânico moral é precursor da securitização.

O Texas apresenta, pois, um processo de securitização de parte de seus cidadãos, o que representa uma tendência para todos os EUA. Esse processo de securitização parte do pânico moral que, por sua vez, recebe alta influência da mídia, dos grupos conservadores e das igrejas. Por fim, é importante compreender e atentar para esse processo, para que ele não se replique na realidade brasileira – infamemente reconhecida por apresentar o país que mais mata transgêneros.

 

* Débora Binatti é bolsista de Iniciação Científica do INCT-INEU/OPEU, pesquisadora do INANA e graduanda em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ). Contato: dmfcbinatti@gmail.com. Twitter: @debs_binatti. Instagram: @debs_binatti.

** Primeira revisão: Simone Gondim. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Segunda revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 22 ago. 2023. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

*** Para mais informações e outras solicitações, favor entrar em contato com a assessora de Imprensa do OPEU e do INCT-INEU, editora das Newsletters OPEU e Diálogos INEU e editora de conteúdo audiovisual: Tatiana Carlotti, tcarlotti@gmail.com.

 

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