Parceria Lula-Biden pelos direitos dos trabalhadores e a política trabalhista dos EUA
Presidentes dos EUA e do Brasil lançam a “Iniciativa Global Lula-Biden para o Avanço dos Direitos Trabalhistas na Economia do Século XXI”, em cerimônia à margem da Assembleia Geral da ONU, em Nova York (Crédito: Ricardo Stuckert/PR)
Por Lucas Amorim e Haylana Burite* [Informe OPEU]
No dia 20 de setembro, após reunião bilateral em paralelo à Assembleia Geral da ONU, em Nova York, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu homólogo dos Estados Unidos, Joe Biden, lançaram uma iniciativa global pelo trabalho decente. A iniciativa ecoa o Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS) 8 – Trabalho decente e crescimento econômico, uma das metas globais de desenvolvimento estabelecidas pela Assembleia Geral por meio de sua Resolução 70/1 de 2015. A reunião contou com a presença de líderes sindicais dos dois países, como lideranças da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e da Força Sindical do Brasil e a United Food and Commercial Workers (UFCW) e da central sindical AFL-CIO dos EUA. Também participou o diretor-geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Gilbert Houngbo.
A parceria global havia sido anunciada em 27 de julho pelo ministro Alexandre Padilha, chefe da Secretaria de Relações Institucionais. Segundo o ministro, a iniciativa foi dada por Biden, que convidou o presidente Lula para o lançamento da parceria. A declaração de Padilha foi dada no Palácio do Planalto, após a instalação da Comissão de Combate às Desigualdades do Conselho de Desenvolvimento Econômico Sustentável, conhecido como “Conselhão”.
Em 16 de agosto, os dois presidentes se falaram ao telefone sobre a programação conjunta e confirmaram o encontro bilateral, assim como o lançamento da parceria, coincidindo com a semana mais movimentada da diplomacia mundial. Após o telefonema, o presidente Lula afirmou ser “a primeira vez que trato com um presidente interessado nos trabalhadores”. O presidente brasileiro falou que as “políticas e discursos [de Biden] sobre o mundo do trabalho soam como música para os meus ouvidos e certamente juntos poderemos inspirar outros governantes a olhar para as questões dos trabalhadores”. O presidente dos EUA disse, por sua vez, segundo o Palácio do Planalto, concordar “em 100%” com as preocupações manifestadas por Lula em relação aos temas de emprego e meio ambiente, outra pauta discutida durante a ligação.
A cerimônia foi seguida pela publicação de uma declaração conjunta entre os dois governos que destaca os objetivos da parceria. O documento elenca como metas ampliar o acesso a informações sobre os direitos dos trabalhadores e capacitá-los para sua defesa; garantir que a transição para uma economia baixa em carbono gere empregos de qualidade; abordar o tema em instituições multilaterais como o G20, a COP 28 e a COP 30; apoiar e coordenar projetos de cooperação técnica relacionados ao tema e combater a discriminação no ambiente de trabalho. Um dos temas de destaque foi o direito dos trabalhadores em plataformas digitais, como Uber e Ifood, que não têm os direitos protegidos como os trabalhadores formais com contrato.
Confira a transcrição na íntegra dos discursos dos presidentes brasileiro e estadunidense em inglês aqui, do presidente brasileiro em português aqui e da declaração conjunta publicada após a reunião em inglês aqui e em português aqui.
Desenvolvimento sustentável e o trabalho digno no ODS 8
O Desenvolvimento Sustentável são práxis idealizadas com base no Relatório Brundtland, de 1987. Tal conceito rompe com a lógica do capitalismo predatório e entende que o futuro das próximas gerações necessita da compressão de um desenvolvimento tripartite, centrado no crescimento econômico e na concomitante redução das desigualdades sociais e da exploração da natureza. A ONU incorporou esses princípios ao adotar, em 2000, os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, uma série de metas de desenvolvimento que deveriam ser perseguidas pelos países-membros até 2015.
Essa ideia foi renovada em 2015 quando foram adotados os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), uma agenda global de combate à pobreza, proteção do meio ambiente e de garantia de que as pessoas usufruam da paz e da prosperidade. A chamada Agenda 2030 é formada por 17 ODS que abrangem diversas facetas do desenvolvimento humano, desde combate à fome e garantia de acesso ao saneamento básico até a igualdade de gênero e ação contra a mudança climática.
Um dos 17 ODS que desempenham um papel fundamental nesse contexto é o ODS 8 – Trabalho Decente e Crescimento Econômico, que é o foco do acordo bilateral EUA-Brasil. O ODS 8 busca promover o crescimento econômico, inclusivo e sustentável, criando oportunidades de emprego digno para todos. Nesse sentido, o ODS 8 possui 12 metas. Entre as que se destacam estão:
8.1 sustentar o crescimento econômico per capita de acordo com as circunstâncias nacionais e, em particular, um crescimento anual de pelo menos 7% do Produto Interno Bruto (PIB) nos países menos desenvolvidos;
8.3 promover políticas orientadas para o desenvolvimento que apoiem as atividades produtivas, geração de emprego decente, empreendedorismo, criatividade e inovação, e incentivar a formalização e o crescimento das micro, pequenas e médias empresas, inclusive por meio do acesso a serviços financeiros;
8.5 até 2030, alcançar o emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todas as mulheres e homens, inclusive para os jovens e as pessoas com deficiência, e remuneração igual para trabalho de igual valor.
No discurso de abertura da AGNU, na terça-feira (19/9), o presidente Lula destacou que o principal entrave da Agenda 2030 – adotada durante a Cúpula das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável em 2015, com objetivos a serem atingidos até 2030 – é a desigualdade. Lula destacou que “a mais ampla e mais ambiciosa ação coletiva da ONU voltada para o desenvolvimento – a Agenda 2030 – pode se transformar no seu maior fracasso”, se não houver um consenso das desigualdades sociais enquanto força motriz e agravantes dos problemas mundiais.
“O imperativo moral e político de erradicar a pobreza e acabar com a fome parece estar anestesiado. Nesses sete anos que nos restam, a redução das desigualdades dentro dos países e entre eles deveria se tornar o objetivo-síntese da Agenda 2030”. Tais palavras do presidente brasileiro refletem o lugar do Brasil no mundo — enquanto um país profundamente desigual, estando entre os dez países mais desiguais do mundo, segundo o índice de Gini — e seu esforço para superar as mazelas internas que freiam seu desenvolvimento. Destaca-se ainda que, embora o trabalho digno tenha sido citado na fala do presidente Joe Biden, outros assuntos como a Guerra da Ucrânia e a relação dos EUA com a China ganharam preponderância.
A Parceria pelos Direitos dos Trabalhadores e a política dos EUA
Para compreender a decisão dos dois governos de promover a iniciativa, é necessário explorar o contexto político e social nos dois países, mas, dado o ineditismo da parte dos Estados Unidos, em particular naquela sociedade. Ocorriam simultaneamente à reunião dos dois líderes, uma série de movimentos grevistas nos Estados Unidos, como os iniciados pelo sindicato dos trabalhadores automotivos, a UAW, e dos atores e roteiristas SAG-AFTRA e WGA, respectivamente. A contemporaneidade do evento com as reivindicações trabalhistas nos EUA sinaliza o interesse eleitoral de Biden em reconquistar o eleitorado do “colarinho azul”, isto é, trabalhadores que realizam trabalhos braçais, ou manuais, em setores como manufatura e construção civil. Nas eleições de 2016 e 2020, o eleitorado branco sem diploma universitário votou predominantemente no candidato republicano.
Além disso, é delicada a situação política doméstica do governo Biden, já que ele não conta com maioria na Câmara e não tem votos suficientes para superar o obstrucionismo dos republicanos no Senado. Portanto, permanece em suspenso a possibilidade de que o mandatário seja capaz de implementar mudanças significativas no cenário trabalhista em casa. Apesar da disparidade econômica entre os dois países, a legislação trabalhista brasileira oferece mais proteção aos trabalhadores formais, como 30 dias de férias remuneradas a cada ano trabalhado, afastamento remunerado por problemas de saúde, licença-maternidade e paternidade. Os EUA permanecem como a única economia desenvolvida que não oferece licença remunerada em caso de gravidez, ou de doença incapacitante, tendo ratificado apenas duas das dez convenções fundamentais da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Na impossibilidade de adotar uma legislação uniforme como a implementada no Brasil pela configuração do federalismo estadunidense, o governo Biden tenta emplacar uma lei que garanta o direito à sindicalização e à ação trabalhista e, portanto, empodere os trabalhadores em suas demandas a seus patrões. A Lei de Proteção ao Direito de Sindicalização (Protecting the Right to Organize Act, também conhecida por PRO Act) implementaria uma série de alterações na legislação federal em relação à capacidade de barganha coletiva dos trabalhadores. O projeto de lei proíbe que empregadores convoquem reuniões obrigatórias de conteúdo antissindical, permite que sindicatos declarem “greves secundárias” em solidariedade a outras categorias, enfraquece as leis estaduais denominadas right-to-work, as quais restringem a possibilidade de acordos coletivos, e empodera o Conselho Nacional de Relações Trabalhistas (National Labor Relations Board) a multar empresas que violem as suas provisões.
Essa é a terceira vez desde o início do governo Biden que a delegação democrata introduz essa legislação no Congresso. Nas duas primeiras vezes, em 2019 e 2021, a legislação foi aprovada pela Câmara por margens de 224-194 e 225-206, respectivamente. É notável que a lei tenha sido aprovada na câmara baixa, em ambos os casos, com apoio de cinco parlamentares republicanos. O grande obstáculo até agora, no entanto, havia sido o Senado. Em ambas as oportunidades, apesar da aprovação da Câmara, os senadores deixaram o projeto de lei caducar em comissões sem que as propostas fossem votadas. O projeto foi reintroduzido desta vez homenageando em seu título o líder da central sindical AFL-CIO Richard Trumka, falecido em 2021.
O então presidente do AFL-CIO, Richard Trumka, em comício em Titusville, Flórida, em 27 fev. 2010 (Crédito: transporworkers/ Flickr)
Desta vez, o projeto recebeu parecer favorável da Comissão de Saúde, Educação, Trabalho e Pensões (conhecida pela sigla inglesa HELP) do Senado e indicação para que seja aprovado sem emendas no plenário. O obstáculo à aprovação do PRO Act deve ser duplo desta vez. Os dois senadores eleitos pelo Partido Democrata, Joe Manchin (D-WV) e Kyrsten Sinema (agora independente, I-AZ), recusaram-se a assinar o projeto como coautores. Caso as recusas se transformem em votos negativos, o projeto estaria virtualmente inviabilizado. Já na Câmara, a presidente da Comissão de Educação e Trabalho, Virginia Foxx (R-NY), emitiu uma declaração oficial, afirmando que o projeto de lei faz parte da “agenda radical da esquerda”. Sem o apoio da presidente da comissão é pouco provável que o projeto seja votado no colegiado e pode caducar novamente sem que haja votação no plenário.
Ainda que seja impossível prever o resultado final do voto no Congresso, a perspectiva de que a parceria Lula-Biden surta efeito no avanço dos direitos dos trabalhadores estadunidenses parece distante. O encontro dos dois líderes representa, no entanto, uma tentativa de aproximação das duas maiores democracias do Hemisfério Ocidental. Brasil e Estados Unidos apresentam significativas diferenças em suas políticas externas em temas como o papel da China no cenário internacional, o apoio militar à Ucrânia na guerra contra a Rússia e o modo de lidar com eventuais rupturas democráticas na América Latina. Portanto, mais que uma ocasião de firmar o compromisso dos dois países com os trabalhadores, o evento foi uma oportunidade de dar um reset nas relações Brasil-EUA, uma parceria descrita como imprescindível pelo ministro brasileiro da Fazenda, Fernando Haddad.
* Lucas Silva Amorim é pesquisador colaborador do INCT-INEU/OPEU e doutorando pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP). Contato: amorimlucas@usp.br.
Haylana Burite é graduanda em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ), pesquisadora bolsista de Iniciação Científica do OPEU (INCT-INEU/PIBIC-CNPq) e pesquisadora voluntária no Núcleo de Pesquisa de Geopolítica, Integração regional e Sistema Mundial (GIS/UFRJ). Contato: buritehaylana@gmail.com.
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 29 set. 2023. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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