Lucas: ‘percepção da China e dos chineses é sempre influenciada por contexto, em especial econômico’
Crédito da arte: Natália Constantino (bolsista de IC INCT-INEU/OPEU PIBIC/CNPq)
Por Yasmim Reis e Carolina Weber* [OPEU Entrevista]
Neste OPEU Entrevista, conversamos com Lucas Amaral Batista Leite, doutor (2017) e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUCSP). Também é professor associado do curso de Relações Internacionais na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), assim como pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) e do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES/UNESP).
Tem experiência na área de Relações Internacionais e em Análise de Discurso, com foco em estudos sobre a história e política externa dos Estados Unidos no século XIX e XX.
O pesquisador Lucas lançou, recentemente, o livro O Império Hesitante: a ascensão americana no cenário internacional (Editora Appris, 2023). É sobre este e outros temas que vamos tratar nessa conversa. Confira os principais trechos abaixo:
OPEU: Boa tarde, Lucas. Primeiramente, gostaríamos de agradecer por sua disponibilidade para esta entrevista. Para iniciarmos, por que você se interessou pelos Estudos sobre os EUA?
Olá, pessoal, eu que agradeço e fico muito honrado com o convite em poder falar com vocês, sou fã do OPEU e admiro o trabalho que fazem na divulgação de notícias e trabalhos sobre os Estados Unidos. Acho que o interesse pelos Estudos sobre os Estados Unidos diz respeito à época em que entrei na faculdade, apenas dois anos depois da Guerra do Iraque. A dita unipolaridade dos EUA chamava muita atenção, e o unilateralismo do governo de George W. Bush gerava muitas perguntas acerca do futuro do país e da ordem internacional. Era quase impensável à época levantar a possibilidade de decadência hegemônica, apesar de alguns pesquisadores já apontarem, desde então, para o fato de que a incapacidade de gerar uma coalizão multilateral – e a partir das instituições – poderia ser um sinal de alerta. Sempre me intrigou como os Estados Unidos alcançaram a posição que ocupam, mas o que realmente me chamava a atenção era a lógica discursiva e identitária. Como elementos subjetivos como a formação histórica, a religião, a ideia de pertencimento e excepcionalismo ajudavam a constituir uma identidade que se propunha fechada, coesa. Partindo de abordagens pós-positivistas, busquei dar minha contribuição analisando esse período, e daí para frente outras possibilidades rapidamente se abriram em termos de desenho de pesquisa e de interesse temático.
OPEU: Traçando um panorama da sua trajetória nos Estudos sobre EUA, por que o interesse específico na construção narrativa dos discursos dos presidentes estadunidenses desde o século XIX?
Como disse, trabalho em geral com metodologias e epistemologias pós-positivistas, especialmente aquelas focadas na lógica da linguagem enquanto formuladora de sentido. Por ter essa familiaridade desde o período da graduação, tenho usado a análise do discurso em grande parte dos meus trabalhos – como foi durante o mestrado, na dissertação que resultou em meu primeiro livro A construção do inimigo nos discursos presidenciais norte-americanos do pós-Guerra Fria (Cultura Acadêmica, 2013). Mas, fazer análise do discurso de períodos contemporâneos tinha alguns limites, por exemplo: qual o papel desse discurso de excepcionalidade para além da hegemonia? Em que medida o elemento da alteridade racial/étnica compunha a formação e coesão da identidade estadunidense? Essas foram algumas das perguntas que surgiram e me guiaram para um retorno histórico ao século XIX e início do século XX.
Ok, eu entendia que esse discurso existia, mas como ele existia antes, na formação do império americano, na construção da hegemonia? Essas perguntas eu só conseguiria responder com uma análise histórico-discursiva que reconstituísse a ascensão do país a partir da Guerra Civil, momento que entendi enquanto grande ponto de inflexão na busca pela coesão de identidade – algo que não existe por si só, afinal, assumo, justamente, que o discurso é uma tentativa de estabelecer padrões e limites, mas sempre com apagamentos/esquecimentos convenientes ideológica, política e socialmente.
OPEU: Você estuda o assunto há algum tempo. O que você pode destacar como mudança notável na construção do inimigo ao longo dos últimos anos?
Uma das conclusões a que cheguei é que, em geral, o formato do inimigo muda, sua “cara” muda. Mas a construção que é feita para legitimá-lo enquanto ameaça é muito similar, a despeito do período. Isso geralmente é feito por tentativas de criar semelhanças com inimigos previamente construídos, ou a partir de resgates históricos, por exemplo. A comparação entre a Guerra ao Terror e a luta dos aliados contra o Eixo na Segunda Guerra é mais comum do que imaginamos. O uso da imagem da União Soviética para remeter a um esforço maior, que exige sacrifícios e uso de mais recursos, é constante para construir mais facilmente o elemento da urgência. Então, defendo a ideia de que os atores mudam, mas a lógica da construção do inimigo é geralmente a mesma, ou muito parecida. Isso acontece, porque uma audiência tende a receber melhor um discurso quando ele ativa determinados gatilhos que trazem uma construção prévia do outro: a monarquia/cristianismo no pós-independência, os alemães nas duas guerras mundiais, soviéticos/comunistas na Guerra Fria, a ideia de Estados falidos no Pós-Guerra Fria, o terrorismo transnacional na Guerra ao Terror e, mais recentemente, a Rússia e a China enquanto inimigos do Ocidente.
OPEU: Como você observa a mudança no discurso dos EUA em relação à China, em especial durante o governo Trump?
A China, desde o século XIX, faz parte do imaginário estadunidense. Mas essa percepção acerca da China e dos chineses sofre sempre da influência do contexto, especialmente econômico. De toda forma, algo que sempre foi colocado é um suposto exotismo da cultura chinesa, de seus hábitos etc. E esse exotismo também varia entre algo “positivo”, ou “negativo”. Em momentos de necessidade, maior aproximação econômica e entrada favorecida de imigrantes, os chineses chegaram a ser vistos como “Celestiais”, apesar de todo o racismo por trás do exotismo eufêmico. Em momentos de crise econômica, competição por áreas de interesse e fechamento à imigração, eles se tornam “maus”, “inadequados”, “incapazes de socializar”, “diferentes demais”. E acho que é isso que tem acontecido contemporaneamente: uma incapacidade de entender que a China é um país com uma cultura, história, filosofia e tradições riquíssimas que voltou a ter capacidade de falar de forma autônoma. Mesmo no governo Obama, com a tentativa de aproximação e a lógica de adversários que buscam seguir as regras, ainda havia uma percepção de superioridade moral, de quem detém o controle das regras. Com Trump, isso fica escancarado em posição de ataque direto e contraponto a qualquer forma de cooperação. A China é construída efetivamente como ameaça, mas não necessariamente enquanto inimiga – apesar de, em alguns momentos, ser possível ler dessa forma. Com uma ameaça, com um inimigo, não há discussão: se se trata de ameaça existencial, o foco é a sobrevivência, logo, esse tipo de discurso incita ao conflito e cria dificuldades para a normalização das relações e discussões conjuntas acerca da governança global.
OPEU: No seu livro recém-publicado O Império Hesitante: a ascensão americana no cenário internacional (Editora Appris, 2023), você traz um panorama desde o período da Guerra Civil norte-americana. O que você destacaria como ainda fortemente presente no discurso dos presidentes na atualidade?
Acho que o principal é o discurso da excepcionalidade, a ideia de que os americanos são um povo com um direito natural à liderança, hegemonia e poder. O que vai mudar para cada governo e período é a forma como isso é empregado. Alguns governos olharão para essa lógica a partir do exemplo, os Estados Unidos enquanto “farol” da liberdade e da democracia que usa do seu poder para criar regras e instituições de forma a moldar o ordenamento e atrair os demais para perto de si. Outros, adotam um discurso mais enfático, que defende a necessidade do país de atuar diretamente para garantir seus interesses e interferir onde e quando for necessário (afinal, eles se veem enquanto responsáveis pelo próprio ordenamento). Pouca coisa mudou desse discurso da excepcionalidade, que, em última instância, entendo como uma forma de nacionalismo. Ou seja, o nacionalismo americano sempre esteve presente nesse discurso de exaltação identitária.
O objetivo da pesquisa que resultou neste livro era justamente entender como isso evoluiu historicamente a partir da Guerra Civil, marco para a busca de uma coesão nacional com a vitória do modelo do Norte sobre o Sul. Mas, para além disso, quis entender como essa constituição de excepcionalidade sempre precisou do “Outro” para se sustentar: os latinos, os chineses, os negros e assim por diante. Então, quando analisamos os discursos do Pós-Guerra Fria, pouca coisa mudou. Há sempre uma busca por “monstros” a serem destruídos, um inimigo a ser combatido, porque essa é a essência da identidade estadunidense: se afirmar pela negação, exclusão, ou eliminação do outro discursivamente construído.
OPEU: Como você analisa que a competição estratégica entre EUA e China está alterando o cenário internacional?
Primeiro, de forma empírica, trata-se do maior desafio à hegemonia americana/ocidental desde o fim da Guerra Fria. Mas, dessa vez, por um ator que não necessariamente se coloca enquanto inimigo, ou ameaça existencial (se isso é interpretado de outra forma, é outra história). A China tem capacidade material para ocupar o lugar do Ocidente em diversas áreas e tem assustado os EUA com suas propostas de reforma da governança global. Isso leva a um segundo ponto, que é o de atuar pela reforma e pela contraposição à ordem global, a partir das instituições e da cooperação. Os chineses têm conseguido aumentar sua presença a partir de mecanismos bilaterais e, mais atualmente, multilaterais. A expansão do BRICS, o Novo Banco de Desenvolvimento, a Iniciativa Cinturão e Rota, todas essas iniciativas configuram caminhos “alternativos” ao conjunto de regras e instituições defendidas pelos países ocidentais. Também chama atenção a busca junto a outros países pela desdolarização ou, pelo menos, pela sugestão de outros meios de pagamento e trocas comerciais e financeiras. Parte importante da hegemonia americana está alicerçada no dólar enquanto moeda corrente e nas instituições que atuam para buscar consenso ou impor a força quando necessário. A China, junto a outros países, tem conseguido oferecer opções a países outrora marginalizados, ou preteridos pelos ocidentais, e isso será um desafio cada vez maior aos Estados Unidos e aos europeus.
OPEU: Por último, você e a prof.ª Fernanda Magnotta têm um canal no YouTube (Em Dupla Com Consulta, EDCC) dedicado à difusão científica da Teoria das Relações Internacionais e de Política Internacional, que se tornou um grande sucesso. De onde surgiu a ideia do canal?
A ideia do Em Dupla Com Consulta veio da necessidade percebida por nós de aumentar a visibilidade dos temas relacionados às Relações Internacionais nas redes sociais, em especial o YouTube. Não havia canal feito por professores com esse tipo de conteúdo, então percebemos que poderíamos ocupar esse lugar e falar de forma simples e descontraída (mas sempre com muita pesquisa e embasamento) sobre o curso de RI, suas principais áreas de atuação e carreira, o aspecto teórico-metodológico, dentre outros.
Ainda sentimos a necessidade de ajudar na divulgação científica, a exemplo dos nossos amigos do Chutando a Escada que fazem isso de forma exemplar por meio do podcast – ou seja, chamar colegas, profissionais, pesquisadores etc. para falar de suas áreas e especialidades. Não sabemos tudo e nem pretendemos, por isso buscamos sempre trabalhar com convidados. Mas é importante lembrar que foram nossos alunos que nos instigaram a produzir conteúdo para a Internet. Elas e eles sempre falavam que nossos exemplos, forma de explicar o conteúdo e abordar a docência deveriam ser transformados em algo para além da sala de aula. Dito e feito, seguimos a dica e começamos do zero, sem saber nem ligar a câmera para gravar! Com muita ajuda, muito esforço e muito estudo, conseguimos emplacar nosso canal e redes sociais.
OPEU: Para concluirmos, quais são seus projetos futuros para esse e os próximos anos? Você está como autor para um projeto de livro sobre política externa, certo? Quais são suas expectativas?
São muitos! Vocês falaram de um deles, em que fui convidado pelas queridas Maíra Siman, Carolina Salgado e Bárbara Motta a contribuir com um capítulo sobre análise de política externa para além das abordagens tradicionais. Minha proposta está ligada à ideia de necropolítica externa, a partir dos estudos de Achille Mbembe – mais que isso é spoiler, vão ter que esperar o lançamento! Projetos relacionados ao EDCC dizem respeito à oferta de novos cursos ligados à área de RI, mas não apenas, e a publicação de livros com nosso selo (novamente, sem spoilers!). Comecei recentemente o pós-doutorado na Universidade Federal de Uberlândia, então pretendo continuar minha pesquisa com fontes históricas e transformá-la em artigos científicos nos próximos anos. Além disso, gosto de estudar para além das RI, estou terminando a pós-graduação em Comunicação e Marketing Digital pela FAAP e estudando de forma autônoma sobre questões ligadas à diversidade e inclusão. Enfim, fazendo muita coisa ao mesmo tempo, como é praxe para os professores e pesquisadores brasileiros! Obrigado novamente pelo convite, foi um prazer!
* Yasmim Reis é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa da Escola Superior de Guerra (PPGSID/ESG), pesquisadora colaboradora no INCT-INEU/OPEU e vice-líder e assistente de pesquisa voluntária no Laboratório de Simulações e Cenários na linha de pesquisa de Biodefesa e Segurança Alimentar (LSC/EGN). Contato: reisabril@gmail.com.
Carolina Weber é bolsista de Iniciação Científica do OPEU (INCT-INEU/PIBIC-CNPq), graduanda em Defesa e Gestão Estratégica Internacional do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ) e gerente de Marketing Institucional da empresa júnior Proged Jr. Contato: carolinaweberds@gmail.com.
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 4 set. 2023. Este OPEU Entrevista não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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