11 de Setembro chileno: 50 anos do golpe dos EUA no governo popular de Salvador Allende
Allende nas ruas do Chile (Crédito: Naul Ojeda/National Security Archives)
Por Jahde de Almeida Lopez e Mariana Collette Piai Ersina* [Informe OPEU]
O Chile, no início da década de 1970, foi da faísca à agonia. O país de maior tradição democrática da América Latina sofreu em 1973 um duro golpe militar patrocinado e modelado pelos Estados Unidos. Traçados no projeto político encabeçado por Allende e abraçado pela maioria do povo chileno, os inéditos contornos anti-imperialistas da história chilena tomaram em 11 de setembro do referido ano recortes trágicos pautados na desumanidade de um governo militar e de uma doutrina econômica neoliberal.
Naquele contexto, a sociedade chilena trazia faíscas de um movimento anti-imperialista que se cristalizaram na eleição presidencial de 1970. Tal eleição presidencial trazia em seus ares a possibilidade de uma revolução socialista democrática (Winn, 2010). Toda a esquerda, com destaque para o Partido Comunista, Partido Socialista, Partido Radical, Partido Social Democrata, Movimento de Ação Popular Unitária (MAPU) e da Ação Popular Independente, unificou-se na Unidade Popular e lançou a candidatura de Salvador Allende com um projeto político pautado, sobretudo, na crítica ao imperialismo estadunidense, aos monopólios latino-americanos, ao Fundo Monetário Internacional, ao Banco Mundial, à classe dominante entreguista, pautando a construção de um Estado livre da alienação política e da exploração do homem pelo homem.
Em meio à Guerra Fria, a possibilidade da consolidação de um governo socialista dentro da institucionalidade na América Latina acionou definitivamente os alarmes de Washington. Desde a década anterior, o governo estadunidense já vinha, nos bastidores, monitorando e atuando indiretamente nos processos eleitorais chilenos. Por meio do financiamento e do apoio aos opositores da candidatura da Unidade Popular, a aliança Kissinger-Nixon-Friedman logrou atrasar a construção de um socialismo popular e democrático no país.
No processo eleitoral de 1970, no entanto, os esforços dos Estados Unidos fracassaram. E, apesar dos volumosos financiamentos às candidaturas opositoras, da intensa propaganda anticomunista e anti-Allende levada a cabo pelo Departamento de Estado dos Estado Unidos, a Unidade Popular ascendeu ao poder pelo voto popular.
(Arquivo) Salvador Allende, em seu desfile inaugural, em 3 nov. 1970 (Crédito: Naul Ojeda/National Security Arquives)
Como era de se esperar, a vitória de Allende no Chile não foi bem-aceita pelo establishment político da potência hegemônica estadunidense. Com isso, os EUA intensificam a implementação das diretrizes de um “manual de mudança de regime”, iniciado já na década anterior. De forma direta, Vijay Prashad, no livro Balas de Washington, publicado no Brasil em 2020, demonstra-nos as linhas desse manual, intensamente utilizado em outras intervenções estadunidenses na região e que consistiam basicamente em: 1) Fazer lobby junto à opinião pública; 2) Escolher o “homem certo” em campo; 3) Garantir que os generais estejam prontos; 4) Fazer a economia gritar; 5) Implementar o isolamento diplomático; 6) Organizar protestos em massa; 7) Aguardar o sinal verde; 8) Estudo sobre assassinato e, por fim; 9) Negação.
Desde 1958, ano da primeira candidatura de Allende à presidência, os agentes da Agência Central de Inteligência estadunidense (CIA, na sigla em inglês) implementaram operações que se baseavam na realização de financiamento de propagandas secretas, buscando minar a popularidade de Allende (National Security Archive, 2023).
Henry Kissinger, conselheiro de segurança nacional do então presidente Richard Nixon (1969-1974), aprovou, dentro da Operação Destruição, o envio de milhares de dólares para uma missão de guerra política, na qual ele mesmo expressa: “não vejo porque temos que ficar parados, enquanto um país se torna comunista pela irresponsabilidade de seu povo” (apud Bevins, 2022). No Chile, a CIA trabalhou intensamente, disseminando propagandas junto a renomados repórteres e importantes veículos de mídia nacionais e internacionais. Destaca-se o jornal de direita El Mercúrio, financiado para promover mensagens, cartazes e panfletos contra Allende.
Além da mobilização da opinião pública, os concorrentes de Allende nas eleições presidenciais de 1964 e 1970, Eduardo Frei e Jorge Alessandri, respectivamente, foram apoiados financeiramente pela CIA em seu processo de campanha eleitoral. James Petras e Morris Morley estimam que a CIA teria encaminhado cerca de US$ 20 milhões para o financiamento e o apoio dos candidatos da oposição. No entanto, os esforços não se deram apenas no campo político. O governo dos Estados Unidos, novamente por meio de sua agência de Inteligência, também adicionou a sua estratégia o envio de recursos para organizações da igreja católica que já tinham se declaradas contrárias ao então candidato socialista.
Na noite de 3 de setembro de 1970, nas vésperas de o povo chileno ir às urnas, o embaixador dos Estados Unidos à época, Edward Korry, reuniu-se com o então presidente do Chile, Eduardo Frei. A reunião tinha um objetivo declarado: a discussão das eleições que se aproximavam. Entre as conversas, os dois atores chegaram à conclusão de que o trabalho de propaganda já havia sido feito, e com sucesso, o que levou o embaixador Korry a fazer a previsão de que Allende perderia o pleito. A perspectiva era de vitória de Jorge Alessandri, do Partido Nacional (National Security Archive, 2023). Uma vitória que também era dos Estados Unidos.
No dia 4 de setembro de 1970, os esforços dos Estados Unidos se mostraram um fracasso. Toda mídia nacional anunciava a vitória da Unidade Popular e de Allende. Após o anúncio do resultado da eleição, o embaixador Edward Korry expressou, em um telegrama enviado para Washington, intitulado “Allende vence”, que “O Chile votou calmamente para ter um Estado marxista-leninista, a primeira nação do mundo a fazer esta escolha livre e conscientemente. [Nós] sofremos uma derrota dolorosa; as consequências serão nacionais e internacionais; as repercussões terão impacto imediato em alguns países e efeito retardado em outros” (National Security Archive, 2023).
Edward M. Korry (à dir.) com o então presidente John F. Kennedy, em 1963 (Fonte: Abbie Rowe/JKF Library)
A eleição que consagrou Allende, um candidato com programa socialista, presidente do Chile foi um fato inédito na história do continente. Apesar das inúmeras interferências externas operadas pelos Estados Unidos, 36% da população – 1.075.616 de cidadãos – depositaram nas urnas a confiança no projeto da Unidade Popular. De modo a deslegitimar a vontade popular do povo chileno, Edward Korry produziu uma série de relatórios que expressavam sua indignação com o resultado eleitoral, que ficam claros através da análise dos seguintes trechos:
Há algum tempo que convivemos com um cadáver entre nós, e seu nome é Chile […] A decomposição não cheira menos mal por causa da civilidade que a acompanha. Os chilenos podiam, como sempre, conversar interminavelmente na televisão e no rádio e, nas primeiras horas de hoje, como se nada tivesse mudado e a tela mudasse de programas de variedades para mesas-redondas de políticos pontificando tão tolamente como sempre. Os chilenos gostam de morrer pacificamente e de boca aberta (National Security Archive, 2023).
A vitória de Allende foi tratada pelos EUA como uma questão de segurança nacional. Como Kissinger deixou claro, os Estados Unidos não poderiam aceitar um segundo Estado comunista no hemisfério ocidental. Em suas palavras, “estávamos convencidos de que logo estaria incitando políticas antiamericanas, atacando a solidariedade do hemisfério, fazendo causa comum com Cuba, antes ou depois, estabelecendo estreitas relações com a União Soviética” (Kissinger apud Ayerbe, 2002, p. 188).
Dessa forma, os agentes políticos dos Estados Unidos deram prosseguimento nas diretrizes do manual de mudança de regime, financiando, mediante volumes inéditos de capital, as Forças Armadas chilenas, e elencando, nelas, os “favoritos da CIA” – em outras palavras, agentes chilenos leais aos Estados Unidos. A título de ilustração, estima-se que, durante os dois primeiros anos do governo de Allende, foram destinados pelo menos US$ 45 milhões dos Estados Unidos para as Forças Armadas chilenas, na forma de ajuda militar.
Ao mesmo tempo, os Estados Unidos iniciaram um plano de desestabilização econômica com a finalidade de, como afirmou Nixon, “fazer a economia chilena gritar”. Nesse sentido, o governo dos EUA, bem com os organismos internacionais ligados a Bretton Woods, participaram da estratégia que envolvia rígidos bloqueios comerciais, corte de recursos, de investimentos e de linhas de crédito destinadas ao Chile. Associado ao isolamento econômico, os EUA também produziram um importante isolamento político do país, por meio de um profundo esforço para a exclusão do Chile da Organização do Estados Americanos (OEA).
Internamente, os EUA ainda promoveram protesto maciços a partir, sobretudo, da cooptação de lideranças e de dirigentes populares. Como afirma Prashad, “o bloqueio invisível de Nixon” associado às condições internacionais adversas relacionadas com a queda dos preços do cobre e com a alta dos preços dos alimentos, além da cooptação dessas lideranças populares possibilitaram a eclosão de intensas greves e protestos em todo o Chile que contribuíram ainda mais para a desestabilização econômica e política do governo Allende.
A combinação de todos esses processos e dinâmicas foram o rastilho necessário para a eclosão do golpe militar que colocou o general Augusto Pinochet no poder, tirou o país do trilho da construção de uma sociedade socialista e deixou um rastro de austeridade e morte visíveis até hoje.
* Jahde de Almeida Lopez é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina e membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea (GEPPIC). Contato: jahdelopez@gmail.com.
Mariana Collette Piai Ersina é Mestra em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Grande Dourados. Doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina. Contato: marianaersina.c@gmail.com.
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Recebido em 10 set. 2023. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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