Repensar a estratégia dos Estados Unidos
Crédito: IC
Por Williams Gonçalves* [Informe OPEU]
Jude Blanchette e Christopher Johnstone, pesquisadores do Center for Strategic and International Studies (CSIS), assinaram interessante artigo publicado recentemente pela revista Foreign Affairs: “The Illusion of Great-Power Competition – Why Middle Powers – and Small Countries – are Vital to U.S. Strategy”. Nele, os autores argumentam que os responsáveis pela elaboração da estratégia dos Estados Unidos ainda não conseguiram encontrar a melhor forma de defender os interesses do Estado para enfrentar o desafio lançado pela China. E essa dificuldade se deve, segundo eles, à falta de entendimento da estratégia chinesa. No artigo, eles se dispõem a apresentar os esclarecimentos a respeito do modo chinês de operar no sistema internacional e a indicar como os responsáveis pela política norte-americana devem agir.
A concepção estratégica implementada pelo governo de Joe Biden e com mais amplo trânsito entre os elaboradores dos Estados Unidos é aquela que percebe o mundo divido em dois blocos de poder que caminham decididamente para uma “nova Guerra Fria”. Nesta segunda edição, os blocos estariam formados em alinhamento com os Estados Unidos democráticos e com a China autoritária.
Os dois autores observam que essa é uma visão equivocada. Isso porque se apoiam em duas premissas infundadas: exagera quanto ao poder de Estados Unidos e China de exercerem poder sobre seus supostos respectivos blocos e considera as potências médias e os pequenos Estados atores passivos na disputa estratégica das duas grandes potências. Por outras palavras, os autores em questão procuram mostrar que o sistema internacional da atualidade apresenta elevado grau de complexidade, que não admite concepções estratégicas de “escolhas de soma zero”.
Segundo eles, o sistema internacional é marcado por uma competição em que os atores não se acham vinculados a coalizões por laços de exclusiva fidelidade. As coalizões são móveis, tão móveis quanto as razões que levam os atores estatais a se aproximarem mais de uma ou de outra das grandes potências.
Essa fluidez do sistema internacional decorreria da fragmentação altamente especializada das cadeias produtivas. Assim como o fornecimento de matérias-primas sensíveis, o desenvolvimento e a inovação de tecnologias de ponta dependem de diversos fornecedores de componentes espalhados pelo mundo. Esses fornecedores, não se veem, por sua vez, obrigados a fazer escolhas definitivas de parceiros ao sabor de determinações ideológicas. A interdependência é, por assim dizer, cada vez mais complexa.
Blanchette e Johnstone ponderam, com propriedade, que os Estados Unidos ainda contam com aliados fiéis, como é o caso dos europeus, que se entregaram de corpo e alma à política de Biden de confronto com Moscou. Embora significativa, essa seria uma aliança de uma estratégia que tende cada vez mais a ser superada. Para eles, a preponderância dos Estados Unidos vai depender de sua capacidade de se aproximar de Estados médios e pequenos que apresentam grande valor no processo produtivo.
As ideias defendidas pelos dois estudiosos são, indiscutivelmente, muito argutas. De fato, a ideia de uma “segunda Guerra Fria” perseguida pelo governo Biden apresenta grande apelo midiático, mas não corresponde à realidade das relações internacionais. Já não se trata mais de escolher entre dois sistemas políticos, econômicos, sociais e ideológicos inconciliáveis. A tentativa de discriminar o Estado chinês em virtude de sua estrutura política não faz sentido algum, na medida mesmo em que uma das características marcantes da atuação internacional da China é não se envolver nos assuntos internos dos outros Estados.
Jude Blanchette, do CSIS (Crédito: ST/Desmond Wee)
Ao propor nova concepção estratégica para os Estados Unidos melhor defenderem seus interesses nacionais, que não aquela de tentar dividir o mundo em dois blocos, os dois autores citam o Japão como um dos vários exemplos de ambiguidade decorrentes da fragmentação das cadeias produtivas. De acordo com eles, ainda que o Japão esteja comprometido com a política de segurança dos Estados Unidos na Ásia, abrigando grande quantidade de bases militares norte-americanas, o fato é que o Japão se acha, simultaneamente, vinculado à China por laços econômico-comerciais. Assim, por mais que o compromisso com os Estados Unidos seja muito importante, constituiria prejuízo inestimável para a economia japonesa ver-se privada das relações econômicas com a China. Esse é um exemplo muito eloquente de até onde pode ir a política norte-americana de tensão com a China.
Nesse sentido, é muito elucidativa a entrevista concedida à revista Newsweek agora em julho pela chefe do Comando Sul dos Estados Unidos (SOUTHCOM), general Laura Richardson. A comandante militar se revela verdadeiramente alarmada. Em suas palavras, a presença chinesa no Caribe, América Central e do Sul tem evoluído tão rapidamente que “eles estão na linha de 20 jardas, na zona vermelha da nossa pátria”, uma evolução que acontece “bem debaixo de nosso nariz”. Ao comparar a situação da região sob sua responsabilidade militar com o que acontece no Comando Indo-Pacífico-INDOPACOM, ela afirma: “Eu poderia dizer que eles estão na primeira cadeia de ilhas, como estão na INDOPACOM, com o que parecem ser os instrumentos de poder nacional que a República Popular da China utiliza – diplomáticos, informativos, militares e econômicos”.
(Arquivo) General Laura Richardson (Crédito: U.S. Army/Staff Sgt. Mark Torres)
Laura Richardson identifica o projeto chinês Iniciativa do Cinturão e Rota, elaborado pelo governo de Xi Jiping, como o responsável pela invasão na área que os norte-americanos consideram como de sua segurança máxima (zona vermelha). A invasão se dá sob a forma de “uma enxurrada de licitações patrocinadas pelo Estado chinês para investir em infraestrutura necessária, como telecomunicações, portos de águas profundas e até sistemas de metrô em toda a região”, que envolve mais da metade das 31 nações na área de operações da SOUTHCOM.
Questionada a respeito de como os Estados Unidos pretendem se haver com tão surpreendente situação, a comandante afirmou que instalou o UNITAS, tradicional exercício marítimo internacional.
A reação de Laura Richardson constitui prova cabal sobre a dificuldade que os responsáveis pela política internacional dos Estados Unidos têm sofrido em face da estratégia chinesa, conforme a reflexão de Blanchette e Johnstone. Enquanto os chineses trabalham sua influência intercedendo em favor do processo de desenvolvimento da região, os norte-americanos tentam recuperar a sua, fortalecendo os vínculos militares.
Apesar de considerarem que as tendências do sistema internacional sejam muito claras, o que devia determinar a elaboração de uma estratégia diferente da que está sendo praticada pelo governo Biden de ressuscitar a guerra fria, Blanchette e Johnstone não alimentam ilusões. Como eles próprios afirmam, a mudança de estratégia não é coisa fácil, uma vez que depende de mudanças dentro dos Estados Unidos: “Um elemento-chave da estratégia dos EUA deve incluir compromissos renovados com o sistema multilateral de comércio e a disposição de negociar acordos significativos de acesso a mercados. É claro que, no curto prazo, essa abordagem enfrenta fortes ventos políticos domésticos, mas os Estados Unidos não podem defender que seus parceiros sacrifiquem oportunidades econômicas e comerciais na China sem oferecer incentivos tangíveis próprios”. Isto é, os Estados Unidos jamais reverterão a vantagem obtida pela China, se não levarem em consideração as necessidades econômicas, determinadas pelo processo de desenvolvimento, dos Estados médios e pequenos, o que implica, como nossos autores bem sabem, uma mudança de organização política, econômica e ideológica equivalente a uma verdadeira revolução.
Reafirmando a abertura deste artigo, a reflexão dos autores aqui citados é muito interessante. Uma reflexão que deveria ser levada em conta por aqueles, entre os nossos, que insistem em trabalhar em favor de uma política de alinhamento automático com os Estados Unidos. Esses deveriam, como aconselha Liu Pengyu, porta-voz da Embaixada da China nos Estados Unidos, ao defender a abordagem de Pequim na América Latina, “tirar seus óculos coloridos e abandonar a mentalidade ultrapassada da Doutrina Monroe e da Guerra Fria”, em seu comentário sobre a entrevista de Laura Richardson à Newsweek.
* Williams Gonçalves é Professor Titular de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (PPGEM-EGN). Doutor em Sociologia, também é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU).
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. 1ª versão recebida em 26 jul. 2023. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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