OPEU Entrevista

Rúbia: ‘segurança nacional doméstica é usada para legitimar políticas para conter China’

Por Ingrid Marra*

Rúbia Pontes (Arquivo pessoal)

Neste OPEU Entrevista, conversamos com Rúbia Marcussi Pontes, doutoranda e mestra (2020) pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (PPGCP-IFCH), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora do Curso de Relações Internacionais das Faculdades de Campinas (FACAMP), também é pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).

Tem experiência na área de Relações Internacionais e em Análise de Política Externa, com ênfase em estudos sobre Política Externa dos Estados Unidos para a China e Organizações Internacionais.

A pesquisadora Rúbia é coautora do capítulo “Estados Unidos e China na disputa comercial e na competição tecnológica: de Trump a Biden”, publicado no livro De Trump a Biden: partidos, políticas, eleições e perspectivas (Editora Unesp, 2021), organizado por Sebastião Velasco e Cruz e Neusa Maria Bojikian, também autora desse texto. É sobre este e outros temas que vamos tratar nessa conversa. Confira os principais trechos abaixo:

 

OPEU: Primeiramente, muito obrigada pela disponibilidade e por participar da entrevista. Para você, como podemos pensar no histórico recente das relações entre China e EUA? Já existiam, pré-Trump, movimentações voltadas para o cerco do governo chinês?

RÚBIA MARCUSI PONTES: Sem dúvida. As relações sino-americanas sempre foram marcadas por movimentos de distanciamento e de aproximação, como, por exemplo, quando da política de isolamento pós-fundação da República Popular da China, em 1949, ou da reaproximação nos anos 1970, o que culminou no estabelecimento de relações diplomáticas oficiais em 1979, respeitando a política de Uma Única China. Os anos 1990 foram especialmente significativos nesse sentido. Desde a brutalidade que levou a inúmeras mortes na Praça da Paz Celestial, em Pequim, o Congresso dos Estados Unidos passou a pressionar a China constantemente, trazendo a pauta de desrespeito aos direitos humanos para o centro do debate. E isso apesar de os EUA não terem cortado as relações oficiais e de terem apoiado a entrada da China na OMC nos anos 1990, por exemplo.

Mas é nos anos 2000, especialmente no governo Obama (2009-2016), que se observa significativas movimentações, voltadas para o “cerco” do governo chinês, especialmente no contexto da estratégia de “pivô para a Ásia”, de articulação da Parceria Transpacífico, das disputas relacionadas com o Mar do Sul da China e, inclusive, na pauta econômica e comercial, com ordens executivas e ação do Escritório do Representante de Comércio dos Estados Unidos (USTR), uma instância que ganhou destaque na última década. Essas ações enquadrariam a China como uma competidora desleal, manipuladora cambial, dentre tantas outras classificações que se aprofundaram no governo Trump (2017-2020) e levaram à guerra comercial – e tecnológica – com a China.

OPEU: E como você percebe a utilização dos dispositivos institucionais estadunidenses como forma de legitimar comportamentos hostis (como sanções, embargos, fronteiras alfandegárias, barreiras tarifárias, entre outros) frente à produção de tecnologia de outros países? É possível inferir que esse tipo de movimentação tem como finalidade a garantia da segurança nacional dos EUA? Ex.: Lei da Expansão Comercial de 1962, CFIUS, Departamento do Tesouro, USTR, Departamento do Comércio e Serviço Nacional de Inteligência.

RMP: No caso da China, diversos instrumentos e dispositivos institucionais têm sido, de fato, usados para tentar constranger a estratégia geoeconômica chinesa e, como você menciona, a produção de tecnologia por esse país. E isso tem sido feito, sim, com o discurso de garantia da segurança nacional dos Estados Unidos. Os gastos militares da China são observados com preocupação há anos. Trump, por exemplo, restringiu o acesso de mais de 30 empresas e outras organizações chinesas à tecnologia estadunidense, em 2020, no que ele disse ser uma resposta à suposta colaboração dessas organizações com o governo chinês para a construção de um sistema de vigilância de alta tecnologia.

O então presidente Donald Trump, ao lado do então primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, ouve o presidente da China, Xi Jinping (à dir.), fazer comentários no evento especial dos líderes do G20 sobre economia digital, na cúpula do G20, no Japão, em 28 de junho de 2019, em Osaka (Crédito: Casa Branca/Shealah Craighead/Wikimedia Commons)

A disputa em torno da tecnologia de quinta geração, o 5G, também foi significativa em termos de, no discurso, garantir a segurança nacional dos Estados Unidos e de parceiros e aliados: os Estados Unidos tentaram evitar que países como o Brasil adquirissem tecnologia e equipamentos de empresas como a chinesa Huawei, mas é evidente que a preocupação com segurança e acesso a dados se restringe, em grande parte, à China, e não é estendida à tecnologia e equipamentos de outras empresas – inclusive norte-americanas, coreanas, etc. Portanto, há um grande amparo na ideia de segurança nacional doméstica para legitimar as mais diversas ações, especialmente quando se trata da disputa tecnológica com a China e suas diversas frentes.

OPEU: Desde o segundo ano do governo, Trump fez uma guerra comercial com a China. Durante 2017, teceu elogios, fez visitas à China e não hesitou em dizer como tinha boas relações com o país. Depois, a partir de 2018, as relações começaram a se endurecer. O que você acredita que ocorreu para engatilhar essa mudança no comportamento da política externa dos EUA?

RMP: Costuma-se dizer que os candidatos, durante suas campanhas eleitorais, usam o chamado “trunfo” da China (playing the China card): fazem discursos duros em relação à China, acusando-a de ser a fonte de diminuição de empregos e de renda de cidadãos norte-americanos, por exemplo, para atrair votos do eleitorado descontente com a administração e a política anteriores; mas, logo que ganham as eleições, abrandam o discurso. Trump fez exatamente isso durante sua campanha eleitoral e nos primeiros meses de seu governo. O que, evidentemente, incomodou tanto democratas quanto republicanos no Congresso, que, juntos, cobraram publicamente e enviaram uma carta ao presidente, ainda em 2017, requerendo alterações concretas na política para a China. Essa pressão cresceu nos meses seguintes, inclusive por parte de seu eleitorado, da opinião pública, e Trump precisou, então, resgatar seu discurso duro para com a China e, sobretudo, colocá-lo em prática com outros membros de seu governo, especialmente nas políticas industrial e comercial, no que chamamos de “desejo de desforra política”.

OPEU: Quais os possíveis impactos das tarifas e dos embargos na economia chinesa? A partir do momento em que as empresas chinesas não têm mais acesso a cadeias de suprimentos de países diversos (para além dos EUA), quais outros caminhos a China pode seguir para burlar esses bloqueios?

RMP: Acredito que, especialmente no setor de tecnologia, em que a competição entre os Estados Unidos e a China é cada vez mais acirrada, com diversas medidas empreendidas pelos Estados Unidos no sentido de restringir o acesso da China a semicondutores e a outros componentes importantes, a saída e a estratégia chinesas são de buscar outros fornecedores e, inclusive, produzir ela mesma as tecnologias necessárias. Essa tem sido uma estratégia empreendida desde os anos 1990 e com foco redobrado nos anos 2000, com diversos programas e pesados investimentos do governo chinês no setor de pesquisa e inovação para alta tecnologia. Inclusive, em 2020, a China ficou atrás somente dos EUA em termos de investimentos em pesquisa e desenvolvimento.

OPEU: Poderia nos falar um pouco sobre o consenso bipartidário e sobre a assertividade em relação à China? Ainda que de maneira mais pragmática, que tipos de movimentações políticas os democratas fazem que demonstram essa assertividade?

RMP: A Estratégia de Segurança Nacional lançada pela Casa Branca em 2022 evidenciou que, depois dos efeitos sanitários e econômicos calamitosos da pandemia da covid-19, a administração Biden investirá notoriamente no “poder nacional” para garantir a capacidade competitiva dos Estados Unidos, principalmente frente aos seus rivais – com destaque inegável para a China, seja por via de ordens executivas, seja com pacotes com apoio legislativo. Nesse sentido, os democratas têm demonstrado assertividade em relação à China, especialmente no setor tecnológico. Um exemplo foi a aprovação do CHIPs and Science Act, em agosto de 2022. Essa é uma lei que garantirá, nos próximos anos, a injeção de mais de US$ 280 bilhões de investimentos em pesquisa e desenvolvimento, com destaque para US$ 52 bilhões em subsídios para a fabricação de semicondutores, e US$ 24 bilhões, em isenções para novas indústrias de fabricação de chips nos Estados Unidos. Outra medida relevante foi a série de restrições na exportação para a China de tecnologias necessárias para a fabricação de semicondutores e a suspensão da venda de chips e demais componentes.

Como você comentou, essas medidas têm apoio bipartidário, ou seja, tanto de democratas, quanto de republicanos. É, portanto, um consenso bipartidário que, independentemente de qual partido ocupe a Presidência, os Estados Unidos precisam agir e serem assertivos em relação à China. E a disputa pela liderança na produção e no uso de tecnologias, como tecnologia de quinta geração, Inteligência Artificial e semicondutores, demonstra isso cada vez mais.

OPEU: Perfeito, Rúbia. Agradeço, mais uma vez, pela entrevista.

 

* Ingrid Marra é mestranda em Global Political Economy and Development (GPED) pela Universität Kassel, graduada em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ (IRID/UFRJ), pesquisadora colaboradora do OPEU e assistente de pesquisa do International Relations Microfoundations Laboratory desde 2022. Pesquisa moeda, enquanto instrumento de pressão política em países não-alinhados à hegemonia estadunidense; hierarquia monetária internacional; e criptomoedas. Contato: LinkedIn.

Rúbia Marcussi Pontes é doutoranda e mestra em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Professora de Relações Internacionais das Faculdades de Campinas (FACAMP) e pesquisadora do (INCT-INEU), também é membra da Rede Brasileira de Estudos da China (RBChina) e pesquisadora associada do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Relações Internacionais (NUEPRI) e do Grupo de Análise e Pesquisa sobre China (GAP-China) na mesma instituição. Contato: rubiamarcussi@gmail.com.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 4 fev. 2023. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mailtatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mailtcarlotti@gmail.com.

 

Assine nossa Newsletter e receba o conteúdo do OPEU por e-mail.

Siga o OPEU no InstagramTwitter Linkedin e Facebook e acompanhe nossas postagens diárias.

Comente, compartilhe, envie sugestões, faça parte da nossa comunidade.

Somos um observatório de pesquisa sobre os Estados Unidos,

com conteúdo semanal e gratuito, sem fins lucrativos.

 

Realização:
Apoio:

Conheça o projeto OPEU

O OPEU é um portal de notícias e um banco de dados dedicado ao acompanhamento da política doméstica e internacional dos EUA.

Ler mais