Acirramento da competição estratégica EUA-China implica declínio de projeto geopolítico para AL
Presidente Joe Biden participa de encontro virtual bilateral com seu homólogo chinês, Xi Jinping, em 15 nov. 2021, direto do Salão Roosevelt, na Casa Branca, em Washington, D.C. (Crédito: Casa Branca/Cameron Smith/Flickr)
Por Eduardo Mangueira e Yasmim Reis* [Informe OPEU] [Divulgação]
O Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) promoveu sua conferência anual nos dias 7 e 8 de dezembro de 2022, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Esse encontro reuniu diversos pesquisadores para discutir “o primeiro tempo do governo Biden e as eleições de meio de mandato nos Estados Unidos”. No dia 7, entre as várias mesas apresentadas ao longo do evento, a mesa 4 debateu a relação entre Estados Unidos e China, o acordo nuclear com o Irã, o impacto da guerra da Ucrânia e, por fim, levantou uma discussão sobre a América Latina em tempos de crise.
Confira o debate da Mesa 4 na íntegra. Para outros eventos promovidos pelo INCT-INEU, siga a playlist!
“Políticas tecnonacionalistas dos EUA para a China”
A disputa tecnológica entre Estados Unidos e China se acirrou nos últimos anos. Para iniciar essa discussão, alguns elementos se apresentam como essenciais para a visualização de como esta disputa está se desenrolando no sistema: quem são os atores? Qual é o tema que está em disputa? Quais são os terceiros?”. Aqui, compreende-se os terceiros como o grupo articulador para além do governo, ou ainda, de outra forma, atores não-estatais envolvidos no processo. Nessa última questão, ganha destaque a preocupação que Estados Unidos e Europa têm tido em relação a “frear” o “rolo compressor digital da China”.
A pesquisadora Neusa Maria Pereira Bojikian e o pesquisador Roberto Goulart apresentaram o trabalho “A supremacia em disputa: a competição estratégica entre EUA e China I”, enquanto o professor Marco Cepik continuou o debate sobre o mesmo tema.
Neusa Maria Bojikian tem-se dedicado a estudar, ao longo de sua trajetória, a economia política internacional, com ênfase na política comercial dos Estados Unidos. Em seu trabalho, ela discute a política tecnológica de Trump e propõe alguns questionamentos importantes sobre como a política comercial estadunidense se desenvolveu durante o governo Trump (2017-2021), a saber: Que política é essa? Qual sua orientação? Qual seu grau de apoio? A política comercial de Biden é diferente daquela conduzida por Trump durante sua gestão? E para onde deve ir?
Bojikian e Goulart propõem o termo “políticas tecnonacionalistas dos EUA para a China”, uma expressão “em processo de amadurecimento” analítico e conceitual. Essa política não se refere a uma ordem liberal do comércio, mas sim ao fato de que há um “consenso bipartidário” doméstico nos Estados Unidos, definindo a arena tecnológica como o palco principal e norteador dessa disputa.
Jon Bateman (2022), um crítico desse processo, argumenta que, no consenso partidário existente internamente, o governo precisa ser capaz de articular com o objetivo de reduzir a sua interdependência de materiais oriundos da China, assim como propor a organização de um ecossistema tecnológico, o qual será conduzido pelo EUA. A título de exemplo para discussão, Bojikian cita a Lei dos Chips, apresentada em agosto durante a gestão Biden e que contou com o apoio dos republicanos. Assim, a tecnologia é assimilada como uma arena de disputa, e não como um “terreno” tecnológico neutro entre as potências.
Nesse sentido, são avaliados os três últimos governos dos Estados Unidos e seus respectivos posicionamentos, no que concerne às políticas tecnonacionalistas do país ao longo de 13 anos. A pergunta de partida para o entendimento dessas políticas é a seguinte: qual é a diferença entre essas gestões? No governo Obama (2009-2017), houve diversas políticas defensivas e medidas reforçadas que forneceram o início do escopo. É no governo Trump, porém, que essa política ganha corpo. Diferentemente do que era esperado, Biden não rompe com a política de seu antecessor, e sim continua com as “políticas ofensivas”, com foco no desenvolvimentismo explícito.
Segundo Bojikian, as tecnologias digitais se mostram um elemento importante do atual século, em particular pela utilização da China no ordenamento internacional. Assim, conclui-se que há dois perfis de políticas: defensivas e ofensivas. As defensivas se referem a “frustrar e conter as ameaças tecnológicas da China”, enquanto as ofensivas objetivam “fomentar a força tecnológica dos EUA”.
Além disso, há no atual debate de estratégia dos Estados Unidos diferentes visões sobre o presente cenário. As grandes empresas convergem com o pensamento dos denominados “integradores”, defendendo “a importância econômica e tecnológica de manter as cadeias de suprimentos globais e o acesso ao mercado da China”. Em oposição, existem os “restricionistas”, que defendem a verticalização da cadeia produtiva. Isso inclui toda a cadeia produtiva inserida em território estadunidense. O último grupo presente nesse debate é o dos “centristas”, considerados os smart strategy, ou seja, políticos norte-americanos que desejavam que o governo Biden se posicionasse, sem necessariamente tirar a China das discussões.
China como contendor estratégico da ordem internacional
Segundo Marco Cepik, persistem desafios teóricos para os estudos da atual conjuntura da relação sino-americana. A Guerra da Ucrânia foi um importante fator do ano de 2022 que impactou a relação entre as duas potências. Outro elemento da conjuntura internacional é a economia mundial, na medida que os efeitos da guerra têm impactado as economias nacionais, segundo o Banco Mundial. Esses dois fatores influenciam o tensionamento das relações entre Estados Unidos e China. O último desafio da configuração atual foi após a visita da representante Nancy Pelosi (D-CA) a Taiwan, quando a China reagiu rompendo alguns acordos com os Estados Unidos.
(Arquivo) Nancy Pelosi e a presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, em entrevista coletiva no gabinete presidencial, em ago. 2022 (Crédito: Chien Chih-Hung/Gabinete da Presidência)
O relatório apresentado pelo Departamento de Defesa dos EUA, em 2022, descreve a tentativa da China de subverter a ordem internacional de acordo com a visão estadunidense, que observa a China como uma potência contestadora. Destaca-se, contudo, que a China demorou a ingressar na corrida nuclear, na qual Estados Unidos e Rússia já estavam à frente. Estima-se que, em dez anos, a China alcance a meta de 1.500 ogivas nucleares, o que representa um atraso de uma década em seu desenvolvimento.
O processo de modernização interno chinês é visto em contraponto ao não balanceamento externo, ou seja, não há um Plano Marshall forte em vigor no momento que possibilite os EUA obterem o controle dos demais países por meio do auxílio financeiro de reconstrução, como fez após a Segunda Guerra Mundial. Desse modo, o Departamento da Defesa norte-americano identifica o cinturão econômico da rota da seda como vetor impulsionador da China no ordenamento internacional. Em síntese, a disputa entre Estados Unidos e China não é uma disputa global, e sim pela manutenção de um modelo político doméstico: o social-democrata, no caso dos Estados Unidos.
Desengajamento dos EUA no Oriente Médio retira seu papel de vigilante
Os estudos sobre a presença da Rússia no Oriente Médio são escassos, quando comparados às análises da presença estadunidense na mesma região. No Brasil, afirma o professor Reginaldo Nasser (PUC-SP), não há trabalhos feitos por acadêmicos abordando essa temática. Sob uma lente de análise canalizada para a região do Oriente Médio, segundos dados apresentados por Nasser, de 12 conflitos recentes em que os Estados Unidos se envolveram, dez estão nessa parte do planeta, tendo início com a Guerra do Golfo e retornando suas atenções para a localidade durante os conflitos do Afeganistão e do Iraque.
Entretanto, com a retirada das tropas estadunidenses do Oriente Médio, os atores regionais, ou seja, os países do Golfo Pérsico, foram diretamente impactados, dado que a presença dos Estados Unidos manteve durante anos uma economia e presença nessa região. Ao mesmo tempo, quando observada pela perspectiva dos EUA, a região não se apresenta mais como relevante para atuação do país, já que os esforços estão voltados para o novo inimigo existencial: a China. Portanto, o novo teatro de operações está direcionado para a região do Indo-Pacífico.
Sem a presença dos Estados Unidos, não houve um vácuo de poder, uma vez que a Rússia passou a se aproximar, ocupando maior espaço, construindo e fortalecendo relações. Além disso, destaca-se que, após a eclosão da Guerra na Ucrânia, países como os Emirados Árabes Unidos e a Rússia estão resistindo às sanções estadunidenses. Dessa forma, o vácuo de poder na região é algo inexistente.
Fuzileiros Navais fazem guarda no campo de petróleo de Rumaila, em Basra, no Iraque, em abr. 2003 (Crédito: Marinha americana/Arlo K. Abrahamson/Domínio Público/Wikimedia)
Para Nasser, as grandes potências, especialmente os Estados Unidos, “não estão conseguindo mais se impor” na região, tendo impactos sobre outras variáveis como economia, bases militares e venda de armas – apesar de essas últimas não terem sofrido grandes mudanças. Em síntese, observa-se que a propensão para um equilíbrio de poder na região do Oriente Médio não se mostra mais como uma variável dependente da presença dos Estados Unidos em seu território.
Estratégia dos EUA para América Latina se enterra na gestão Biden-Harris
A relação entre os Estados Unidos e a América Latina entrou em pauta nas discussões. De acordo com a professora Monica Hirst, é em governos democráticos que o desenho para a região se apresenta com uma definição mais clara e evidente para a América Latina, enquanto nos governos republicanos há uma prevalência do laissez-faire. Em outros termos, o aspecto privado prevalece em prol do âmbito público.
Historicamente, há uma linearidade na narrativa e no desenvolvimento do Partido Democrata para uma política direcionada para o seu continente. Em primeiro aspecto, a Política da Boa Vizinhança se expandiu na região, seguida por uma Aliança para o Progresso. No governo do presidente Jimmy Carter (1977-1981), houve avanços de percepção em relação à região, envolvendo outras agendas, como direitos humanos e desarmamento. Para tanto, o maior destaque foi obtido durante o governo Bill Clinton (1993-2001), em que o “regionalismo aberto” se expandiu.
A mudança estratégica para a América Latina é, claramente, observada durante a administração Barack Obama (2009-2017), que herdou a Guerra Global ao Terror durante sua gestão. O que surpreende é o atual governo, do também democrata Joe Biden, ex-vice de Obama, enterrar totalmente qualquer possibilidade de estratégia orientada para a América Latina, após a publicação de seus principais documentos – a título de exemplo, a Estratégia de Segurança Nacional, publicada em 2022. Isso contrasta com o período da Guerra Fria, em que era evidente uma sinergia entre as elites latino-americanas e as visões ideológicas predominantes à época.
Para Hirst, há um “paralelismo” entre o esvaziamento do regionalismo latino-americano e do sistema interamericano, na medida em que ocorreu uma estagnação na construção de um projeto voltado para a região ante a ausência da presença e de políticas específicas estadunidenses. Dessa forma, a América Latina, que constituiu relações de boa vizinhança com os Estados Unidos em séculos passados, atualmente se mostra insignificante para a geopolítica estadunidense.
* Eduardo Mangueira é ex-pesquisador bolsista de Iniciação Científica do OPEU (INCT-INEU/PIBIC-CNPq), atualmente colaborador e graduado em Relações Internacionais (IRID/UFRJ), além de pesquisador voluntário na revista Boletim Geocorrente – Periódico de Geopolítica e Oceanopolítica, da Escola de Guerra Naval (EGN). Contato: eduardo.a.mangueira@gmail.com.
* Yasmim Reis também é pesquisadora colaboradora do Opeu, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa da Escola Superior de Guerra (PPGSID/ESG), bolsista CAPES e assistente de pesquisa voluntária no Laboratório de Simulações e Cenários (LSC/EGN). Contato: reisabril@gmail.com.
** Primeira revisão: Simone Gondim, jornalista formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com mais de 20 anos de experiência profissional, entre redações, assessoria de imprensa e produção de conteúdo para Internet e redes sociais. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Segunda revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 11 jan. 2023. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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