América Latina

Trinta anos de crise: o embargo dos EUA a Cuba na Assembleia Geral da ONU

Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York (Fonte: Wikipédia)

Por Lucas Barbosa*

Há 60 anos, acadêmicos, organizações internacionais, jornalistas, políticos e representantes de Estado têm feito críticas frequentes ao posicionamento estadunidense em relação a Cuba. Em sua maior parte, essas críticas têm como fundamento os obstáculos que o embargo imposto à ilha pelo país norte-americano cria para o bem-estar do povo cubano, assim como para o desenvolvimento do país.

Estados Unidos e América Latina - Fundação Editora UnespA origem do embargo remonta à vitória da Revolução Cubana em 1° de janeiro de 1959, isto é, durante a presidência do republicano Dwight Eisenhower (1953-1960). Segundo Luis Fernando Ayerbe (Estados Unidos e América Latina: a construção da hegemonia, Editora Unesp, 2004), a administração Eisenhower foi marcada por um acirramento da Guerra Fria e pela inauguração de práticas intervencionistas em países que fugissem (ou parecessem estar fugindo) da zona de influência capitalista.

Nesse sentido, Cuba chama a atenção dos Estados Unidos apenas depois da tomada do poder pelos guerrilheiros do Movimento 26 de Julho. Liderada por Fidel Castro, a Revolução passa a ter um caráter socialista claro e a se aproximar da União Soviética.

Em outubro de 1960, Eisenhower declara um embargo econômico a Cuba após o governo de Fidel Castro nacionalizar petroleiras dos Estados Unidos que se recusavam a processar petróleo adquirido da União Soviética. A ação foi tomada no âmbito da Lei de Comércio com o Inimigo de 1917, que limita transações financeiras com nações hostis em tempos de guerra.

Em janeiro do ano seguinte, cortam-se as relações diplomáticas com Havana. A partir de então, o embargo nunca mais será abandonado. É renovado na administração do democrata John F. Kennedy (1961-1963), e expandido e reforçado pelas leis Torricelli, de 1992, e Helms-Burton, de 1996, nos governos do republicano George H. W. Bush (1989-1992) e do democrata Bill Clinton (1993-2000).

Dentre os muitos obstáculos que esses complexos mecanismos instauram, encontram-se a proibição da exportação de produtos estadunidenses a Cuba, assim como a importação de produtos cubanos total, ou parcialmente, procedentes de qualquer país; o impedimento de que barcos que passem por portos cubanos façam comércio nos Estados Unidos; estende a proibição de negócios com Cuba às subsidiárias internacionais de empresas sediadas nos Estados Unidos; e, ainda, confere ao presidente o poder de estabelecer sanções a todos os Estados que ofereçam apoio a Cuba. Apenas o comércio de alimentos e medicamentos é permitido.

Em relatório entregue aos Estados-membros das Nações Unidas em outubro de 2022, o chanceler cubano, Bruno Rodríguez, detalhou o impressionante dano causado por essas políticas. Seis décadas de embargo estadunidense resultaram em prejuízos a Cuba que somam US$ 154 bilhões, afetando os mais variados setores da economia, da infraestrutura do país e dos serviços públicos. A cifra supera o tamanho da economia cubana, que é de US$ 107,3 bilhões, de acordo com o balanço mais recente do Banco Mundial.

Realiza canciller cubano Bruno Rodríguez Parrilla presenta… | Flickr(Arquivo) Chanceler cubano, Bruno Rodríguez, em Havana, em 10 nov. 2021 (Fonte: Ministério das Relações Exteriores de Cuba/Flickr)

De forma análoga a uma situação de guerra e buscando exprimir a violência das pressões estadunidenses sobre a ilha, o relatório se refere ao embargo em termos tipicamente militares: “bloqueio” e, por vezes, “cerco”, nomenclatura utilizada cotidianamente em Cuba, inclusive pela literatura jurídica. De acordo com o documento, a maior dificuldade engendrada pelo bloqueio são as manobras impostas a Cuba para a realização de qualquer atividade comercial cotidiana com outros países: tendo de evitar o mercado estadunidense vizinho, as operações logísticas se tornam muito mais caras, quando não totalmente inviabilizadas.

Nos últimos 30 anos, porém, uma segunda linha argumentativa tem ganhado força entre os Estados na Assembleia Geral das Nações Unidas. Cuba propõe anualmente uma resolução pedindo o fim do embargo, que também é, todos os anos, aprovada por maioria comum. Além do que já foi exposto aqui, o preâmbulo das resoluções justifica a reivindicação pela preocupação da Assembleia Geral com divergências entre a realização do bloqueio pelos Estados Unidos e valores das Nações Unidas expressos em sua Carta fundadora. Apelando para o respeito à soberania, o texto acusa o embargo de ter efeito extraterritorial e de violar o princípio de não intervenção, ou seja, de estar infringindo o direito internacional.

As travas direcionadas às relações comerciais da comunidade internacional com Cuba ficaram evidentes em 1992 com a sanção da Lei Torricelli, que estende a proibição de negócios com Cuba às subsidiárias internacionais de empresas sediadas nos Estados Unidos, impede que todos os barcos que passem por portos em Cuba façam comércio no país e confere ao presidente o poder de estabelecer sanções a todos os Estados que ofereçam apoio a Cuba. É neste ano que a primeira resolução da série que se seguiria anualmente foi discutida.

Extraindo dados da biblioteca digital de arquivos das Nações Unidas, o quadro abaixo concentra os votos ao longo dos anos. Ele mostra que, em um primeiro momento, Cuba já obtinha apoio da maioria dos Estados, conseguindo 58 votos favoráveis ao fim do embargo além do seu próprio. No entanto, é notável como o apoio à causa cubana ganha tração ao longo dos anos, com os números de abstenções e de ausências se transformando, na maior parte, em votos favoráveis.

 

Quadro de votos (1992-2022) da resolução “Necessidade de acabar com o embargo comercial, econômico e financeiro imposto pelos Estados Unidos da América a Cuba”:

ANO SIM NÃO ABSTENÇÕES AUSENTES PAÍSES CONTRÁRIOS
1992 59 3 71 46 Estados Unidos, Israel, Romênia
1993 88 4 57 35 Albânia, Estados Unidos, Israel, Paraguai
1994 101 2 48 33 Estados Unidos, Israel
1995 117 3 38 27 Estados Unidos, Israel, Uzbequistão
1996 137 3 25 20 Estados Unidos, Israel, Uzbequistão
1997 143 3 17 22 Estados Unidos, Israel, Uzbequistão
1998 157 2 12 14 Estados Unidos, Israel
1999 155 2 8 23 Estados Unidos, Israel
2000 167 3 4 15 Estados Unidos, Ilhas Marshall, Israel
2001 167 3 3 16 Estados Unidos, Ilhas Marshall, Israel
2002 173 3 4 11 Estados Unidos, Ilhas Marshall, Israel
2003 179 3 2 7 Estados Unidos, Ilhas Marshall, Israel
2004 179 4 1 7 Estados Unidos, Ilhas Marshall, Israel, Palau
2005 182 4 1 4 Estados Unidos, Ilhas Marshall, Israel, Palau
2006 183 4 1 4 Estados Unidos, Ilhas Marshall, Israel, Palau
2007 184 4 1 3 Estados Unidos, Ilhas Marshall, Israel, Palau
2008 185 3 2 2 Estados Unidos, Israel, Palau
2009 187 3 2 Estados Unidos, Israel, Palau
2010 187 2 3 Estados Unidos, Israel
2011 186 2 3 2 Estados Unidos, Israel
2012 188 3 2 Estados Unidos, Israel, Palau
2013 188 2 3 Estados Unidos, Israel
2014 188 2 4 Estados Unidos, Israel
2015 191 2 Estados Unidos, Israel
2016 191 2
2017 191 2 Estados Unidos, Israel
2018 189 2 2 Estados Unidos, Israel
2019 187 3 2 1 Brasil, Estados Unidos, Israel
2021 184 2 2 4 Estados Unidos, Israel
2022 185 2 2 4 Estados Unidos, Israel

Fonte: Elaboração própria com base em arquivos da ONU.

 

Em 30 anos, abstenções e ausências caíram aproximadamente 97% e 91%, respectivamente, com alguns anos chegando a não computarem nenhum voto. Essa tendência pode ser explicada pelo distanciamento progressivo da mentalidade bipolar da Guerra Fria e, junto a isso, pelo sentimento de prejuízo contínuo por parte das nações da comunidade internacional: em 1991, o comércio de Cuba com subsidiárias estadunidenses no exterior movimentava US$ 718 milhões; em 1993, esse número caiu para apenas US$ 1,8 milhão.

Outro fator para o aumento de Estados que desejam oficialmente o fim do bloqueio foram os esforços de reaproximação de Barack Obama e Raúl Castro. Em sete dos oito anos da administração Obama (2009-2016), não há votantes ausentes. Em 2015, não há abstenções. Em 2016, no auge dos esforços pela normalização entre os dois países, em ato histórico, Estados Unidos e Israel decidem se abster em vez de votar contra a resolução. Esta foi a única vez que isso aconteceu em todas as 29 votações.

História da revolução cubana : Chomsky, Aviva: Amazon.com.br: Papelaria e  EscritórioAviva Chomsky (História da Revolução Cubana, Editora Veneta, 2015) diz que votos contrários à resolução são ocasionais, produto de lealdade política aos Estados Unidos, com a exceção de Israel, seu único aliado seguro. Israel, o braço da hegemonia estadunidense no Oriente Médio, votou de forma idêntica à potência americana em todos os anos. Ambos os países têm um histórico duradouro de apoio mútuo em toda sorte de questões na Assembleia Geral.

As Ilhas Marshall se alinharam ao voto contrário dos Estados Unidos oito vezes ao longo dos anos, e Palau, sete vezes. Ambos são países insulares no Pacífico que já estiveram sob o controle dos Estados Unidos. Com a assinatura dos Tratados de Livre-Associação, as ilhas se tornaram unidades políticas autônomas, mas a defesa do território ainda é responsabilidade dos Estados Unidos. No caso das Ilhas Marshall, o Departamento de Estado americano indica que sua economia ainda é altamente dependente dos pagamentos previstos pelo tratado.

Segundo Gabriel Rocha e Marcos da Silva, o voto da Romênia em 1992 foi um engano, portanto, não faremos comentários sobre ele.

Os esparsos votos contrários do Uzbequistão pós-soviético, do Paraguai dos anos 1990 e do Brasil do governo Bolsonaro podem ser vistos como um reflexo da ocasional ascensão de grupos de direita nesses países ao poder, o que levou, consequentemente, a um alinhamento com os Estados Unidos. Tomando como exemplo o Brasil, Jair Bolsonaro (2019-2022) foi eleito em 2018 e permaneceu na presidência usando extensa retórica de combate à esquerda e de devoção do Brasil aos Estados Unidos. Seu chanceler à época, Ernesto Araújo, defendeu em suas redes sociais o inédito voto contrário à resolução do Brasil como um “voto a favor da verdade”.

A legitimidade e outras questões internacionais | Amazon.com.brEm contrapartida, o contínuo e massivo apoio a Cuba da maioria esmagadora da Assembleia Geral é um marco significativo para se diagnosticar a ilegitimidade internacional do bloqueio. O senso comum entre esses países compreende que as sanções econômicas infringem de forma conjunta a garantia de direitos humanos básicos em território cubano (uma vez que afetam a eficácia de serviços públicos) e normas e princípios basilares do direito internacional (como a não intervenção e o respeito à soberania). Em seu A legitimidade e outras questões internacionais: poder e ética entre as nações, Gelson Fonseca Jr. (Editora Paz & Terra, 1998) descreve que a legitimidade corresponde ao nível de aceitação conferido a determinadas instituições, personalidades, ou fenômenos políticos. Nesse sentido, o quadro de votos pode funcionar, de forma análoga, a uma pesquisa de opinião sobre a aceitação popular de uma lei no âmbito doméstico, diagnosticando a impopularidade do bloqueio e o consequente questionamento de sua legitimidade no plano internacional.

A condenação das sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos fica evidente quando se expõe que os únicos países que a legitimam nas votações das resoluções são de governos aliados com manifestações ocasionais de apoio.

Os esforços de Obama foram minados por uma política de recrudescimento em relação a Cuba por parte de seu sucessor republicano Donald Trump (2017-2020). O atual presidente, o democrata Joe Biden (2021-), a despeito das promessas de governo de reaproximação com Cuba durante as eleições, não empreendeu esforços para isso até o momento. As críticas continuam, porém, e, no último ano, a resolução que pede o fim do bloqueio computou 185 votos favoráveis. Por que, então, as sanções não são revogadas?

Livro: QUEM MANDA NO MUNDO? - CHOMSKY, NOAM | Estante VirtualEm Quem manda no mundo? (Editora Planeta, 2017), Noam Chomsky oferece uma hipótese interessante. É comum que críticos ao embargo, especialmente democratas, condenem-no por, em tese, ser uma política ilógica ou ineficaz – afinal, além da já mencionada terrível repercussão que tem sobre os indicadores socioeconômicos de Cuba, também alimenta o sentimento antiestadunidense e, mais recentemente, tem levado uma crise migratória à fronteira dos Estados Unidos com o México. Segundo Chomsky, no entanto, o pensamento de que o embargo “deu errado” é se alinhar à fantasia de que ele foi implementado como forma de promover valores democráticos. Como se constatou nesse texto, ele apenas alargou dificuldades socioeconômicas enfrentadas pelo povo cubano em nome da manutenção da hegemonia estadunidense no continente.

O autor ressalta que o “devotamento à vingança” de Washington contra Havana é tão extremado que desafia até mesmo sua própria lógica capitalista, prejudicando a expansão da indústria na ilha caribenha. Tal inflexão supera até mesmo os interesses de grandes segmentos da economia dos Estados Unidos como o energético, o agropecuário e o farmacêutico. Interpretarmos a permanência dessas sanções como uma iniciativa que, na verdade, foi bem-sucedida nos ajuda a entender, pelo menos parcialmente, sua própria longevidade de mais de 60 anos.

O embargo dos Estados Unidos é uma medida coercitiva que buscou – e ainda busca – derrubar o sistema inaugurado pela Revolução Cubana e trazer Cuba de volta para sua zona de influência, e não como um incentivo ao avanço da democracia, como se convencionou declarar. Cuba é um exemplo do que acontece quando se quebra o pacto hegemônico fundado pelos Estados Unidos.

 

* Lucas Barbosa é pesquisador colaborador do OPEU e graduado em Relações Internacionais (IRID/UFRJ). Cobre a área de relações EUA-América Latina e administra a conta do OPEU no LinkedIn. Contato: lucasmabar@gmail.com.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 20 abr. 2023. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mailtatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mailtcarlotti@gmail.com.

 

Assine nossa Newsletter e receba o conteúdo do OPEU por e-mail.

Siga o OPEU no InstagramTwitter Linkedin e Facebook e acompanhe nossas postagens diárias.

Comente, compartilhe, envie sugestões, faça parte da nossa comunidade.

Somos um observatório de pesquisa sobre os Estados Unidos,

com conteúdo semanal e gratuito, sem fins lucrativos.

Realização:
Apoio:

Conheça o projeto OPEU

O OPEU é um portal de notícias e um banco de dados dedicado ao acompanhamento da política doméstica e internacional dos EUA.

Ler mais