América Latina

Consenso de Brasília: entre Washington e Caracas

Fotografia oficial dos Presidentes dos países da América do Sul, em 30 de maio de 2023, em Brasília (Crédito: Ricardo Stuckert/PR)

Por Lucas Barbosa e Victória Louise Quito*

Aconteceu, no dia 30 de maio, uma cúpula de chefes de Estado sul-americanos no Palácio do Itamaraty, em Brasília. Além do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o encontro contou com a participação de líderes de todos os países do subcontinente. Estiveram presentes Alberto Fernández (Argentina), Alberto Otárola (presidente do Conselho de Ministros do Peru, representando a presidente Dina Boluarte), Luís Arce (Bolívia), Gabriel Boric (Chile), Gustavo Petro (Colômbia), Guillermo Lasso (Equador), Irfaan Ali (Guiana), Mário Abdo Benítez (Paraguai), Chan Santokhi (Suriname), Luís Lacalle Pou (Uruguai) e Nicolás Maduro (Venezuela).

A reunião foi uma iniciativa de Lula, que, desde sua campanha eleitoral para a presidência ano passado, vem indicando a necessidade da retomada de políticas de integração entre os países da América do Sul. A agenda regionalista foi um norte importante para a política externa de Lula em seus dois primeiros mandatos (2003-2010), uma característica comum a outros governos vizinhos do mesmo período que resultou, dentre outras decisões, na criação da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), em 2008. Esse não foi o caso durante o governo de seu antecessor Jair Bolsonaro (2019-2022), marcado por um abandono do (e aversão ao) regionalismo.

Composto por nove pontos e denominado Consenso de Brasília, o documento assinado ao fim da cúpula afirma que “a integração regional deve ser parte das soluções” para diversos desafios do mundo atual, como o “fortalecimento da democracia”, o “enfrentamento da crise climática” e o “combate à fome e à desigualdade”. O texto também determina que deve ser formado um grupo de contato “para avaliação das experiências dos mecanismos sul-americanos de integração e a elaboração de um mapa do caminho para a integração da América do Sul”.

O último ponto do Consenso ressalta o compromisso dos países participantes em voltarem a se reunir, “em data e local a serem determinados”, para reavaliação do progresso da cooperação sul-americana e seus próximos passos.

O nome dado ao acordo sul-americano é semelhante ao conhecido Consenso de Washington, reunião organizada na capital estadunidense em 1989 pelo economista John Williamson. O Consenso de Washington sintetizou e popularizou as medidas econômicas neoliberais que deveriam ser adotadas pelos países subdesenvolvidos (com destaque para os latino-americanos), se estes quisessem obter apoio de instituições sob influência dos Estados Unidos e de outros países capitalistas centrais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Com a expansão e o fortalecimento do neoliberalismo no Sul Global nos anos seguintes, as recomendações do Consenso de Washington – austeridade fiscal, privatização de bens públicos, abertura para o capital estrangeiro, desregulamentação da economia, entre outras – transformaram-se em uma “receita de bolo” formulada pelos países ricos para o desenvolvimento dos países pobres.

Na América do Sul, a receita não pareceu surtir efeito, mesmo com a ascensão recorrente de governos e de movimentos neoliberais em diversos países nos últimos anos. O Consenso de Brasília, o resgate de uma solução para o Sul pensada por quem é do Sul, parece uma contraparte promissora nesse processo incansável de busca pelo desenvolvimento. Ainda é preciso, contudo, acompanhar a iniciativa de perto. O acordo já foi criticado por seu “vácuo institucional”, o que parece ser uma observação razoável, embora precoce, para indicar propostas vazias, ou para condená-lo como anêmico. Nos anos 2000, a formação do BRICS também sofreu de julgamentos precoces semelhantes. Hoje, a força política do que antes era visto apenas como um acrônimo é inegável.

A ausência do retorno da Unasul e de propostas para criação de uma moeda única do Mercosul nas resoluções finais do documento podem ser encaradas como reflexo deste suposto “vácuo”. Como salienta Lucas Carlos Lima, porém, o “conteúdo não é certamente novo, mas o contexto faz esse consenso ser extremamente relevante”, sendo o contexto um ambiente de crises múltiplas, inclusive da própria democracia, na América do Sul e no mundo.

No entanto, como veremos a seguir, outro obstáculo foi a verdadeira atenção da mídia: as dissonâncias entre os dirigentes sul-americanos sobre a legitimidade do governo venezuelano de Nicolás Maduro.

29.05.2023 - Visita Oficial do Presidente da República Bolivariana da Venezuela, Nicolás Maduro | FlickrCerimônia de chegada do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, por ocasião de sua visita oficial ao Brasil, Palácio do Planalto, Brasília, em 29 de maio de 2023 (Crédito: Ricardo Stuckert/PR)

Reações à questão venezuelana

Durante o encontro, um aspecto em particular foi amplamente citado e polemizado pela imprensa brasileira: a participação na cúpula de Nicolás Maduro, que representou uma retomada das relações diplomáticas entre Brasil e Venezuela após o rompimento no período do governo Bolsonaro. Depois de uma reunião de trabalho realizada entre os presidentes venezuelano e brasileiro em 29 de maio, Lula deu uma declaração à imprensa e fez uma entrevista coletiva, em que defendeu Maduro e a importância da retomada das relações entre os países, além de ter responsabilizado os Estados Unidos pelas crises política, social e econômica que se desenrolam no país vizinho. Ele disse:

… o Maduro não tem dólar para pagar as suas exportações. Quem sabe ele começa a pagar em yuan, quem sabe a gente possa receber noutra moeda de outro país para que a gente possa trocar.

É culpa dele? Não. É culpa dos Estados Unidos, que fez um bloqueio extremamente exagerado. Eu sempre acho que o bloqueio é pior do que uma guerra. Porque [n]a guerra, normalmente, morre soldado que está em batalha, mas o bloqueio mata criança, mata mulheres, mata pessoas que não têm nada a ver com a disputa ideológica que está em jogo. Então, eu sonho com uma moeda diferente do dólar para que a gente possa negociar com os nossos países fornecedores de produtos e os países que compram de nós.

Tal declaração poderia causar uma repercussão negativa para a relação Brasil-Estados Unidos. Contudo, tanto os principais veículos de imprensa estadunidense quanto o governo parecem não ter reagido significativamente ao evento. Dentre os jornais mais lidos no país norte-americano, o fato foi discutido apenas pelo The Washington Post, em uma publicação crítica quanto ao posicionamento brasileiro, com foco em seu desalinhamento com relação aos EUA e no apoio ao regime venezuelano.

Em uma busca por reações por parte do governo, não é possível encontrar nenhum comentário quanto ao evento no site do Departamento de Estado dos EUA. O que pode ser encontrado na busca pelas últimas atualizações em relação ao Brasil são, na verdade, notas que informam a celebração de acontecimentos diplomáticos entre os países (como a reforma da embaixada estadunidense em Brasília, publicada em 26 de maio, ou a vinda do Representante Especial para Assuntos Comerciais e Negócios, Dilawar Syed, para tratar dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável com empresários e realizar reuniões para a expansão da parceria comercial entre Brasil e EUA no setor de comunicações e tecnologia, publicada em 1º de junho). Quanto à Venezuela, há apenas menções breves, encontradas nos registros das coletivas de imprensa diárias. Nesse sentido, as últimas alusões ao país foram realizadas antes do evento em Brasília e tratavam de outros assuntos.

U.S. SPECIAL REPRESENTATIVE SYED: ENTREPRENEURSHIP AND INNOVATION ARE KEY TO A HEALTHY ECONOMY - U.S. Embassy & Consulates in Pakistan(Arquivo) Representante Especial para Assuntos Comerciais e Negócios, Dilawar Syed, em evento em  Karachi, em 7 jul. 2022 (Crédito: Embaixada americana no Paquistão)

Já o United States Institute of Peace (USIP), instituto independente fundado pelo Congresso dos Estados Unidos, publicou um artigo de análise e opinião sobre a conferência e fez observações quanto à participação de Maduro. No texto, o posicionamento é que a inclusão da Venezuela pode ser frutífera para os direitos humanos, caso ela leve a uma reinserção do país nas instituições e normas internacionais. Os autores são, porém, contrários ao posicionamento de Lula em favor de Maduro e contra as afirmações que o consideram um líder democrático.

Finalmente, dentre as organizações não governamentais com sede nos Estados Unidos, destaca-se a nota da Human Rights Watch (HRW). No curto texto sobre a retomada das relações entre Brasil e Venezuela, a ONG considerou “frustrante” a receptividade do líder brasileiro. Com a presumível fundamentação na questão dos direitos humanos na Venezuela e com dados baseados em análises da própria HRW e da ONU, a crítica incisiva da organização desaprova, inclusive, o modo como Lula falou acerca de Maduro e reitera que o brasileiro deveria “buscar todas as oportunidades de restauração da liderança que seus comentários infundados abalaram e cumprir suas promessas de liderança quanto aos direitos humanos no mundo”. Nenhuma alusão ou comentário em relação à questão das sanções estadunidenses ao país foi feita.

 

* Lucas Barbosa é pesquisador colaborador do OPEU e graduado em Relações Internacionais (IRID/UFRJ). Cobre a área de relações EUA-América Latina e administra a conta do OPEU no LinkedIn. Contato: lucasmabar@gmail.com.

* Victória Louise Quito é graduanda em Relações Internacionais (IRID/UFRJ) e pesquisadora colaboradora do OPEU. Cobre a área de relações EUA-América Latina e faz parte da equipe de gestão do Observatório. Contato: victorialouiseq@ufrj.br.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 19 jun. 2023. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mailtatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mailtcarlotti@gmail.com.

 

Assine nossa Newsletter e receba o conteúdo do OPEU por e-mail.

Siga o OPEU no InstagramTwitter Linkedin e Facebook e acompanhe nossas postagens diárias.

Comente, compartilhe, envie sugestões, faça parte da nossa comunidade.

Somos um observatório de pesquisa sobre os Estados Unidos,

com conteúdo semanal e gratuito, sem fins lucrativos.

Realização:
Apoio:

Conheça o projeto OPEU

O OPEU é um portal de notícias e um banco de dados dedicado ao acompanhamento da política doméstica e internacional dos EUA.

Ler mais