Relações Brasil-EUA no século XIX: a Flor Exótica e a Jovem República
Fonte: Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania
Por Pedro Sena Pederneiras*
Após a concretização de seus respectivos processos de independência, Estados Unidos e Brasil começam a direcionar suas políticas externas de acordo com seus próprios interesses, e não com os de suas antigas metrópoles europeias. A relação com os estadunidenses era uma das principais pautas da política externa brasileira no século XIX, e tal relacionamento assumiu formas diversas ao longo desse período, sendo marcado tanto por divergências quanto por aproximações.
Na primeira metade do século XIX, o Brasil se posicionava de maneira mais isolada de seus vizinhos no continente. Enquanto outras nações recém-independentes das Américas adotavam sistemas políticos republicanos inspirados no modelo estadunidense, a Dinastia de Bragança se certificou de que a monarquia se mantivesse como a forma de governo dominante no território brasileiro, mesmo após a independência. Esse fato fez o Brasil passar a ser conhecido como a Flor Exótica das Américas, uma nação que, apesar de estar no continente americano, era politicamente mais próxima da Europa monarquista. Essa divergência entre o americanismo dos EUA e o europeísmo brasileiro foi responsável por uma relação mais distante entre os dois países.
Em seu livro As Relações Perigosas: Brasil-Estados Unidos (Editora Civilização Brasileira, 2014), o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira afirma que, nessa época, a percepção que grande parte da população brasileira tinha em relação aos Estados Unidos era majoritariamente crítica. Observamos isso no fato de as insurreições republicanas ocorridas na primeira metade do século XIX, que tentavam implantar uma república nos moldes do governo estadunidense, como foi o caso da Revolução Pernambucana de 1817, terem muito pouco apoio popular. Esses movimentos não recebiam muito apoio nem dos Estados Unidos, exatamente pelo fato de o país não considerar que uma revolução republicana poderia ser bem-sucedida em uma nação com uma cultura tão monarquista. Como afirmou o padre Francisco Muniz Tavares, à época:
Pernambuco iludia-se, quando na combinação dos seus planos contava com o apoio decisivo daqueles governos que professavam máximas liberais, principalmente o dos Estados Unidos da América do Norte. O espírito desta nação é mercantil; os mercantes são avaros; o seu governo é tanto livre quanto prudente; cordialmente saudará os oprimidos, que esmagam os opressores, porque está certo que mais ganhará no comércio. Porém, durante a luta, se esta não é disputada com igual valor da parte dos oprimidos, seguirá o trilho das outras nações; o temor do comprometimento o tornará surdo, e nem auxílio algum oferecerá diretamente.
Apesar disso, após a independência do Brasil, os estadunidenses começaram a se envolver mais diretamente nas revoltas republicanas brasileiras, como a Sabinada, a Balaiada e a Farroupilha, pois viam agora maior possibilidade de implantação de seus ideais liberais na nação sul-americana – o que seria comercialmente favorável para os EUA.
Na segunda metade do século XIX, porém, esse contexto se alterou de uma maneira absoluta, e as relações mais antagônicas entre os Estados Unidos e o Império Brasileiro foram abandonadas, principalmente por causa de fatores econômicos. O Brasil havia se tornado o maior exportador mundial de café, uma commodity que, durante a Revolução Industrial, deixou de ser um produto de luxo com mercado limitado e se tornou uma bebida consumida largamente pela classe trabalhadora. Em uma economia estadunidense cada vez mais industrializada, principalmente nos estados do Norte, e com uma população cada vez maior, o café brasileiro se tornou um produto importado a níveis significativamente altos, visto que o Sul agrícola dos Estados Unidos não produzia esse grão, concentrando-se mais na produção de algodão.
O Brasil substitui Cuba como principal exportador de café para os EUA e se torna um de seus principais parceiros comerciais. É importante pontuar como essa relação já evidenciava e intensificava o papel agroexportador e dependente em relação às potências industrializadas, como os EUA, que o Brasil assume desde essa época no contexto das relações econômicas internacionais. O mercado cafeeiro brasileiro era extremamente influenciado pelos fluxos comerciais e pela situação econômica dos Estados Unidos. Ocupando o café uma parcela significativa do PIB brasileiro da época, essa relação tornava a economia brasileira como um todo muito dependente dos rumos da economia estadunidense, os quais estavam, obviamente, alheios ao controle do governo brasileiro.
EUA, Brasil e o tráfico de escravos
Dessa forma, com o estabelecimento e a intensificação dessa relação comercial, os líderes políticos de ambos os países são, consequentemente, levados a estabelecer e a intensificar também as relações diplomáticas dos dois Estados, de modo a manter uma situação econômica favorável. Talvez o aspecto mais importante dessa nova era da diplomacia Brasil-EUA tenha sido os esforços feitos em conjunto para a manutenção da escravidão. A elevação das ligações comerciais internacionais na segunda metade do século XIX fez crescer muito o mercado consumidor de diversas mercadorias, levando produtores donos de escravos a aumentarem a quantidade e a exploração de sua mão de obra para poderem atender a essa maior demanda e conseguirem competir com a emergente produção industrial.
The Slave Trade, de Auguste François Biard (1840) (Fonte: Yale University Press/Domínio público)
Em um contexto em que as potências europeias, principalmente a Inglaterra, posicionavam-se contra o tráfico de escravos e agiam ativamente para impedir sua continuidade, as três nações que mais se utilizavam do sistema escravocrata, Cuba, Estados Unidos e Brasil, passam a unir esforços para manterem esse sistema vivo, em detrimento das vontades do Império Britânico e do crescente movimento abolicionista. Cria-se entre essas três nações, de maneira informal, o que historiadores vêm chamando nos últimos anos de “Internacional Escravista”, uma aliança não oficial, mas sim orgânica, por meio da qual esses Estados trabalhavam em conjunto, agindo contra o antiescravismo da Grã-Bretanha.
Uma das estratégias empregadas era a utilização da bandeira estadunidense em navios negreiros brasileiros, com permissão do governo dos EUA. Com isso, o Brasil conseguia manter o tráfico marítimo de escravos, uma vez que não havia qualquer tratado entre Inglaterra e EUA que permitisse a inspeção das embarcações pela Marinha britânica, mesmo que houvesse tal acordo entre Brasil e Inglaterra. Também era frequente a participação de capitães e de outros agentes dos Estados Unidos no tráfico negreiro de Brasil e Cuba.
A importância do apoio estadunidense ao sistema escravocrata brasileiro é comprovada pelos acontecimentos que se seguiram ao fim da Guerra Civil dos Estados Unidos (1861-1865). A abolição da escravidão em todo o território dos EUA, no ano de 1865, deixou o Império Brasileiro sem seu único aliado relevante na defesa do tráfico negreiro. A partir daí, começaram a ruir as bases da economia escravista brasileira e a se pavimentar o caminho para a abolição no país, que se concretizaria em 1888.
* Pedro Sena Pederneiras é pesquisador colaborador do OPEU e graduando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ). Contato: psena9898@gmail.com
** Primeira revisão: Simone Gondim, jornalista formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com mais de 20 anos de experiência profissional, entre redações, assessoria de imprensa e produção de conteúdo para Internet e redes sociais. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Segunda revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 25 de maio de 2023. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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