Economia e Finanças

EUA e seu modelo de desenvolvimento: visões acerca dos dois primeiros anos do governo Biden

Presidente Joe Biden antes de anúncio com a Siemens sobre ‘Futuro feito na América’, em evento na Casa Branca, Washington, D.C., em 4 mar. 2022 (Crédito: Casa Branca/Adam Schultz)

Por Lucas Amorim* [Informe OPEU] [Divulgação]

Nos dias 7 e 8 de dezembro de 2022, na PUC-SP, aconteceu o seminário anual do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos dos Estados Unidos (INCT-INEU), desta vez intitulado “Tempos Difíceis: o primeiro tempo do Governo Biden e as Eleições de Meio de Mandato”.

Conduzido de forma remota e presencial, o evento contou com a participação de diversos pesquisadores afiliados ao instituto, incluindo os autores do livro De Trump a Biden: partidos, políticas e eleições e perspectivas, organizado pelos professores Sebastião Velasco e Cruz e Neusa Maria Bojikian (Editora Unesp, 2021). Sequência da obra Trump: primeiro tempo: partidos, políticas, eleições e perspectivas (Editora Unesp, 2019), contém dissertações e análises da política americana no momento de transição para o atual governo, do democrata Joe Biden (2021-).

A mesa 2 do seminário reuniu especialistas para debater as ações do presidente democrata Joe Biden, no poder há pouco mais de dois anos. Apesar da diversidade das abordagens, os integrantes da mesa fizeram apresentações a respeito do mesmo objeto, o modelo de desenvolvimento estadunidense, concentrando-se em sua sustentabilidade, a partir de seus aspectos político-econômicos, científico-tecnológicos e climático-ambientais.

Retorno da Heterodoxia? A política econômica do governo Biden

A primeira exposição foi feita pelo prof. Leonardo Ramos, doutor em Relações Internacionais pela PUC-Rio, professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em RI da PUC-Minas. A pesquisa foi desenvolvida em coautoria com o prof. Filipe Mendonça, doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em RI da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). A questão central da pesquisa é se as políticas econômicas externa e doméstica de Biden trazem questionamentos significativos ao consenso neoliberal bipartidário que domina a política americana desde os anos 1970. Entre outros pontos, questiona-se se a agenda econômica do democrata representa um novo neoliberalismo, um neoliberalismo progressista ou, no limite, até mesmo a própria superação desse modelo econômico e político.

Tanto Trump quanto Biden implementaram pacotes de estímulo econômico que, juntos, representam a maior expansão fiscal da história americana em tempos de paz. Isso contrasta com a política econômica de Barack Obama (2009-2017), que, mesmo enfrentando a Grande Recessão, resistiu a fazer uma grande expansão fiscal, e também com a política de austeridade da União Europeia, mantida com modificações até hoje. Diversos fatores conjunturais explicam essa mudança, como a pandemia da covid-19 e a fricção no anterior consenso acerca da relação entre autoridade política e mercado. As declarações do G20 nos últimos anos, por exemplo, indicam legitimação, ou, ao menos, “não demonização” da ação estatal na condução econômica.

Coronavirus stimulus check | Image courtesy Gary Beals | FlickrCheque de estímulo econômico enviado durante governo Trump pela pandemia (Fonte: Image courtesy Gary Beals/Flickr)

A pandemia reforça essa mensagem de que a atuação econômica do Estado é importante, visto que os países, onde a autoridade política não se esquivou do papel de condutor de políticas de combate à pandemia e de retomada econômica, obtiveram maior sucesso. É o caso da China, como exemplificado pelo professor. Essa virada em direção a um papel maior do Estado na atuação econômica pode ser classificada como uma virada estatista, ou heterodoxa, e apresenta três elementos estruturais importantes: mudança climática, desigualdade socioeconômica e o desafio anti-hegemônico da China. Não é razoável conceber que qualquer um desses desafios possa ser superado sem atuação estatal ou, exclusivamente, por mecanismos de mercado.

Em sua campanha eleitoral, Biden propôs uma agenda arrojada de investimentos que compunham um pacote denominado Build Back Better. Na impossibilidade de executá-la em sua integralidade, essa agenda foi implementada, parcialmente e aos poucos, por pacotes legislativos como a Lei de Redução da Inflação (Inflation Reduction Act), que inclui investimentos em transição energética e infraestrutura física, mas também sociais, como em cuidado com idosos e crianças e redução de custos de medicamentos. Outra parte do pacote, voltada para desenvolvimento tecnológico e estímulos à indústria de semicondutores, foi implementada pela Lei CHIPS e Ciência (CHIPS and Science Act).

Na conjuntura imediata, pode-se conceber algum nível de ruptura com o neoliberalismo clássico, como na superação da ideia de que há um trade off necessário entre crescimento econômico e redução do desemprego, por um lado, e preocupação com a pressão inflacionária, por outro. Tanto que a opção por estimular a economia, mesmo em um cenário de pressão inflacionária, pode ter barrado a onda vermelha que era esperada nas eleições de meio de mandato de 2022 (midterms), pela manutenção de baixo nível de desemprego.

Apesar de reconhecer um maior papel do Estado na condução de política econômica, essas medidas não desafiam de forma radical o establishment neoliberal. Percebe-se investimento e regramento insuficientes na questão ambiental e, mesmo com a redução do desemprego a níveis históricos, há pouca perspectiva de melhora para os direitos e empoderamento dos trabalhadores. Não foi empreendida nenhuma restrição ao poder do setor financeiro privado, especialmente no que se refere às tentativas de exportação do modelo econômico neoliberal para os países do Sul Global, como no caso da DFC (U.S. International Development Finance Corporation), e do estímulo de privatizações como forma de promover a expansão do capital estadunidense.

O professor Leonardo Ramos conclui que há mudanças importantes, mas elas encontram obstáculos e limitações na própria estrutura da hegemonia estadunidense e de seu setor financeiro. Ainda assim, ele argumenta que há elementos importantes de questionamento e de reposicionamento do papel do Estado na política econômica de Biden, em relação à forma que o neoliberalismo, que dominou a política dos Estados Unidos nas últimas décadas, assumiu anteriormente.

Estratégia de Inovação: competição científico-tecnológica e propriedade intelectual

A próxima exposição foi proferida pelo prof. Henrique Menezes, doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Em sua apresentação, Henrique trouxe uma análise inicial da política de inovação e propriedade intelectual dos Estados Unidos no governo Biden.

 

Assista à mesa 2 na íntegra

Retomando elementos já elencados por Leonardo Ramos, Menezes discutiu o cenário contemporâneo de crescente desigualdade, com desafios gerados pela pandemia e de pressão inflacionária. Além desses elementos, a economia estadunidense sofre com níveis baixos de investimento público e privado em inovação, associados a uma queda significativa da composição do setor manufatureiro em proporção do Produto Interno Bruto (PIB) e decréscimo da produtividade do setor tecnológico. A redução da participação da inovação e da tecnologia no PIB estadunidense se torna um problema, especialmente ao se levar em consideração que a China desponta como um vetor de inovação tecnológica global.

Nos séculos XIX e XX, os Estados Unidos se encontravam em um momento de catching up, ou seja, de tentativa de reduzir a lacuna tecnológica com seus concorrentes (em especial a Inglaterra), por meio de estratégias como cópia, engenharia reversa e financiamento público de um amplo e difuso sistema de ciência e tecnologia, o que rendeu ao país a denominação de um Science State.

Segundo Menezes, o período atual, marcado por uma nova pauta da política de inovação – que inclui avanços como 5G, life sciences, computação quântica e Inteligência Artificial –, somada à estagnação tecnológica estadunidense, assemelha-se ao período dos anos 1970 quando a hegemonia americana era questionada por Alemanha e Japão. Desde então, os EUA buscaram se proteger da competição pela tentativa de negociação de tratados que regulariam, respectivamente, propriedade intelectual e investimento estrangeiro, o que foi concretizado com a negociação do TRIPs e do TRIMs na conclusão da Rodada Uruguai. Naquele momento, a competição não apenas dentro de sua esfera de influência, mas também com a arquirrival União Soviética, especialmente no setor espacial, gerou frutos tecnológicos importantes. Entre eles, o que mais se destaca é a NASA, agência espacial que é um vetor central no sistema de inovação dos EUA.

Tanto Trump quanto Biden buscaram implementar políticas para frear esse processo mais recente de desindustrialização e de estagnação de inovação. O republicano chegou a aumentar o financiamento público em setores considerados estratégicos, como Inteligência Artificial e computação, mas setores como artes, cultura e ciências humanas foram alvo de profundos cortes orçamentários. Trump também articulou a política econômica internacional, o que foi especialmente notável na renegociação do Acordo de Livre-Comércio da América do Norte (Nafta, na sigla em inglês), com o objetivo de reindustrializar o país. O governo do republicano executou, contudo, apenas uma parcela do que foi prometido e não chegou a provocar uma “revolução” na política de inovação do país.

O pacote legislativo de Biden – que inclui a Lei de Redução da Inflação, a Lei Bipartidária de Infraestrutura (Bipartisan Infrastructure Act) e a Lei CHIPS e Ciência – representa importantes investimentos em infraestrutura física e social. É possível identificar nesse pacote a compreensão de que a inovação demanda políticas sociais voltadas para a classe média, geração de empregos qualificados, redução de custos nas cadeias produtivas e na produção de energia elétrica, além da revitalização de comunidades em dificuldade, especialmente na antiga área industrial do chamado Cinturão da Ferrugem (Rust Belt).

P20220809ES-0333 | President Joe Biden signs H.R. 4346, “The… | FlickrPresidente Joe Biden assina a H.R. 4346, “The CHIPS and Science Act of 2022”, em 9 ago. 2022, na Casa Branca, em Washington, D.C. (Crédito: Casa Branca/Erin Scott/Flickr)

Por fim, Menezes reitera que duas importantes temáticas, a ambiental e a securitária, perpassam de maneira transversal a política de inovação. Dessa forma, destaca-se o investimento na produção de vacinas, equipamentos de proteção individual e medicamentos, assim como o foco bastante forte em impulsionar a indústria dos semicondutores, fator que está muito ligado ao conflito entre China e Taiwan.

Biden e sua agenda climático-ambiental à luz da experiência democrata na presidência

A mesa foi encerrada pela intervenção do prof. Pedro Vasques, que tem doutorados em Ciência Política (Unicamp) e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e, à época do seminário, fazia estágio pós-doutoral no INCT-INEU. Atualmente, Vasquez é professor substituto do curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O pesquisador trouxe para o debate a política ambiental do governo Biden, comparando-a com a experiência dos governos democratas anteriores.

A presidência de Jimmy Carter (1977–1981) foi pioneira na agenda ambiental. Apesar de se apresentar como outsider pragmático, o presidente foi eleito com apoio de grupos ambientalistas, além de nomear ambientalistas para cargos de nível ministerial, como chefe da Agência de Proteção Ambiental (EPA) e secretário do Interior. Diversos avanços legislativos foram obtidos no período, não por causa da atuação presidencial perante o Congresso e a mídia, mas como reflexo da cooperação bipartidária típica da época. Essa convergência entre os partidos Republicano e Democrata pode ser associada ao discurso conservadorista com caráter religioso, que destoa do debate contemporâneo sobre o tema. Em virtude disso, muitos esforços foram empreendidos por meio da Lei de Antiguidades de 1906, como a criação de parques e áreas de preservação ambiental por ação executiva, o que se repetiria em outras administrações democratas.

O próximo presidente democrata, Bill Clinton (1993-2001), contava com seu vice-presidente Al Gore como credencial ambiental, uma vez que não era um ambientalista. Clinton não conseguiu conquistas ambientais significativas no seu primeiro mandato, tendo concentrado grande parte das suas ações após garantir sua reeleição. Falhas na tentativa conciliadora de Clinton, que lidava com um Congresso republicano, encorajaram a oposição, enquanto sucessos ocasionais ditaram o formato das negociações com os estados. Tendo em vista o impasse com o Congresso, Clinton também lançou mão de ações executivas, via Lei de Antiguidades e regulamentação do tema de justiça ambiental no âmbito do Departamento de Justiça.

Barack Obama (2009-2017) criou grandes expectativas que não foram atendidas e gerou grande frustração no setor ambientalista. Logo no início de seu mandato, Obama conseguiu incluir no pacote de estímulo da Lei Americana de Recuperação e Reinvestimento de 2009 (ARRA, na sigla em inglês) US$ 18 bilhões em investimentos para os setores de água, esgoto, meio ambiente e terras públicas, e US$ 27 bilhões, para pesquisa e investimento em eficiência energética e energia renovável. Além disso, foi durante sua administração que a Lei de Antiguidades foi utilizada por mais vezes para criar áreas de conservação ambiental.

Tendo em vista que o presidente contou apenas com maiorias democratas no Congresso nos primeiros dois anos de governo, iniciativas como o Plano de Energia Limpa e o Acordo de Paris tiveram de ser implementadas por meio da autoridade previamente concedida por lei, ou por meio do poder do Executivo de negociar acordos internacionais. Outras iniciativas se basearam em leis de direitos civis, tendo enfoque na justiça ambiental. O governo Obama também foi marcado por iniciativas de paradiplomacia climático-ambientais e inovações regulatórias. Por fim, foi nesse momento que surgiu com grande ímpeto o negacionismo republicano em relação à questão climática.

Joe Biden (2021-) foi eleito à presidência com propostas derivadas do Green New Deal, que havia sido submetido ao Congresso por representantes e senadores democratas, em especial a representante (deputada) Alexandria Ocasio-Cortez (D-NY). Tendo em vista a estreita maioria com que os democratas contavam no Senado, apenas parte dessas provisões foi implementada, principalmente por meio da Lei Bipartidária de Infraestrutura (BIA) e da Lei de Redução da Inflação (IRA). O último desses pacotes legislativos, segundo Vasques, é o primeiro a representar um verdadeiro divisor de águas, com investimentos maciços e implementação de um caminho para transição energética. Assim como seus antecessores, Biden se empenhou em um grande esforço regulatório por via executiva, tendo em vista que jamais gozou de ampla maioria nas câmaras do Congresso.

File:GreenNewDeal Presser 020719 (26 of 85) (46105848855).jpg - Wikimedia CommonsRepresentante Alexandria Ocasio-Cortez (D-NY), ao centro, discursa sobre o Green New Deal, ao lado do senador Ed Markey (à dir.), em frente ao prédio do Capitólio, em Washigton, D.C., em 7 fev. 2019 (Crédito: WikiCommons)

A moderação do espaço e da sessão de perguntas que se seguiu às intervenções dos apresentadores foi conduzida pela profª Camila Feix Vidal, doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professora de Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A moderadora e o público comentaram temas como a fragilização do Partido Republicano, tendo em vista que era previsto que a legenda obtivesse amplas maiorias, tanto na Câmara quanto no Senado dos Estados Unidos, o que não veio a se concretizar. Destacou-se a oposição que a União Europeia – e, em especial, a França – demonstraram em relação à aprovação da IRA, legislação que tem potencial de reduzir a competitividade da indústria europeia frente à estadunidense.

Retrocessos na agenda ambiental também foram explorados, a exemplo da derrubada de importantes precedentes ambientais por parte da Suprema Corte. A subsequente queda de regulações da EPA que restringiam emissões de gases de efeito estufa, decorrem do tensionamento do uso de leis antigas, como a Lei do Ar Limpo de 1963, como mandato para medidas executivas modernas. Por fim, o debate foi encerrado com a explicitação do contraste entre as posições negacionistas em relação à mudança climática e antiambientalistas do Partido Republicano, e a posição reformista adotada pelo governo Biden.

 

* Lucas Silva Amorim é pesquisador colaborador do OPEU e doutorando pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP). Contato: amorimlucas@usp.br.

** Primeira revisão: Simone Gondim, jornalista formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com mais de 20 anos de experiência profissional, entre redações, assessoria de imprensa e produção de conteúdo para Internet e redes sociais. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Segunda revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 2 de maio 2023. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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