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Force Design 2030: o desafio da modernização dos EUA ante a China

(Arquivo) Fuzileiros Navais da 31ª Unidade Expedicionária em treinamento com o Exército Real tailandês, em 27 fev. 2020 (Crédito: US Marine Corps)

Panorama EUA_OPEU_Force Design 2030 o desafio da modernização v13 n2 Maio 2023

Por Augusto W. M. Teixeira Júnior e Yasmim Reis*

A história do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos (U.S. The Marine Corps, em inglês) se confunde com a própria história de independência do país. Frente ao cenário de luta por sua independência e soberania territorial, em 10 de novembro de 1775 foi estabelecida uma resolução que designava que “dois batalhões de fuzileiros navais sejam levantados para o serviço como forças de desembarque com a frota” – esta última, fruto da reunião do Segundo Congresso Continental na Filadélfia.

A missão dos Marines consiste em organizar, equipar e treinar pessoas na formação de uma infantaria naval. Conforme descrito em seu código n°10:

O Corpo de Fuzileiros Navais será organizado, treinado e equipado para fornecer forças marítimas da frota de armas combinadas, juntamente com componentes aéreos de apoio para o serviço com a frota na apreensão, ou defesa, de bases navais avançadas e para a realização de operações terrestres que possam ser essenciais para o prosseguimento de uma campanha naval.

Desde a sua fundação, o Corpo de Fuzileiros Navais participou das principais guerras dos Estados Unidos, tais como: o primeiro ataque anfíbio às Bahamas (1776), a Guerra Anglo-Americana (1812) e a Guerra Hispano-Americana (1898). Por sua reconhecida bravura em combate na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), os Marines passaram a ser reconhecidos pela alcunha de Devil Dogs (em português, “cães do diabo”).

Apesar de sua fundação datar do século XVIII, o Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA teve sua estruturação codificada na Lei de Segurança Nacional de 1947, com emendas estabelecidas somente em 1952. De maneira resumida, estão incluídos no Departamento da Marinha dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que são, funcionalmente, tratados como um serviço militar à parte, constituindo um dos seis ramos das Forças Armadas dos EUA. Na atualidade, sua função consiste no preparo e no uso de tropas de infantaria naval aptas a operarem como força de reação rápida e primeiro emprego em casos de crise, ou de guerra. Notabilizam-se por sua especialização em ações como desembarque anfíbio, tendo se tornado uma referência após sua atuação no Teatro do Pacífico na Segunda Guerra Mundial (1941-1945).

Em síntese, ao longo da história dos Estados Unidos, os marines aparecem como a face combatente do país desde sua independência. Do fim da Guerra Fria até o presente, porém, o cenário internacional passou de um momento unipolar para um de multipolaridade. Nesse sentido, a posição de prevalência dos Estados Unidos se vê sob ameaça pela emergência de competidores como Rússia e China. Somado à mudança da política internacional, no nível estratégico e operacional o espaço de batalha no terreno é, agora, mais caracterizado por “uma competição sofisticada, de multidomínio e zona cinzenta”.

Mudança no ambiente geopolítico e mudança militar nos EUA

Key China Content! From New 2022 National Defense Strategy-Nuclear Posture Review-Missile Defense Review | Andrew S. EricksonComo se observa em documentos fundamentais, como a Estratégia de Segurança Nacional (NSS, na sigla em inglês) e a Estratégia de Defesa Nacional (NDS, na sigla em inglês), a China é, indiscutivelmente, o principal contendor estratégico dos Estados Unidos. Essa percepção vem acompanhada de planos e de ações em todos os níveis, do político ao tático. Nesse diapasão, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos e suas forças singulares vêm passando por processos de modernização militar constantes desde a virada do século. Debate público e quente, da Revolução nos Assuntos Militares (Revolution in Military Affairs – RMA) à Transformação Militar[1], a mudança militar nos Estados Unidos de hoje convive diuturnamente com o conhecido conservantismo militar.

Em virtude do seu emprego constante e participação nos cálculos da Grande Estratégia do país, as Forças Armadas dos Estados Unidos buscam evoluir não apenas em termos materiais, como também doutrinários e organizacionais. A prática de wargaming é parte indelével da construção de cenários militares, de conceitos de operações (CONOPS) e de novas doutrinas. Por exemplo, o desafio de acesso à primeira cadeia de ilhas nos mares lindeiros à China deu origem à experimentação de conceitos como Air Sea Battle (ASB), emergindo mais recentemente a doutrina conjunta de Multi Domain Operations (MDO).

Embora a modernização e a inovação sejam parte do ambiente da Defesa e dos militares estadunidenses, o conservantismo militar é, no entanto, uma poderosa força na dialética entre mudança e conservação acerca do preparo e do emprego das Forças Armadas. O episódio mais recente a ilustrar essa tensão foi a publicação do Force Design 2030, que pretende reconfigurar aspectos tecnológicos (sistemas de armas), doutrinários (preparo e emprego) e organizacionais (desenho de força) do Corpo de Fuzileiros Navais, o qual será apresentado adiante de forma mais detalhada. Dois vetores ajudam a compreender a polêmica: um conjuntural, e outro, de ordem estrutural.

A guerra russo-ucraniana tem deixado claro que a guerra convencional e de alta intensidade ainda é uma realidade nas relações internacionais. O conflito ucraniano exibe um nível de atrição digno da Primeira Guerra Mundial, sendo caracterizado por um volume extremamente elevado de fogos de artilharia. As baixas, de ambos os lados, são claramente superiores àquelas dos conflitos de baixa intensidade experimentados pela OTAN nas primeiras décadas do presente século. Assim, capacidades como apoio de fogo por artilharia de tubo, ou lançadores múltiplos de foguetes e mísseis (MLRS), elevada mobilidade, Inteligência e resiliência se mostram fundamentais para sustentar o combate de alta intensidade.

Em vista disso, a avaliação estratégica do Force Design 2030 parece compreender que os Fuzileiros Navais precisam transacionar em termos de estrutura e de capacidades, previamente estruturadas para as operações contra terror e insurgência, para uma guarnição componente de uma Força Conjunta apta a combater uma guerra de alta intensidade contra um oponente paritário.

Force Design: atualização anual (Fonte: canal dos Marines no YouTube)

Diante dessa avaliação, algumas capacidades que habilitavam os Marines a combater de forma mais autônoma, como carros de combate (poder de choque) e helicópteros de ataque e artilharia rebocada (apoio de fogo) podem perder relevância em favor de sistemas que proporcionem maior mobilidade, precisão e sobrevivência de frações menores de tropa no terreno. Dessa forma, veículos de transporte e combate de infantaria (APC e IFV) e MLRS ganham primazia em um futuro ambiente operacional, em que a sobrevivência e a luta dependem da capacidade de operar conjuntamente.

Essa avaliação só é passível de ser compreendida, verificando-se aquilo que consideramos como o elemento de ordem estrutural: a característica do ambiente operacional do Force Design 2030. Pensado à luz dos desafios operacionais da Ásia-Pacífico, o ambiente operacional dessa grande região está sob a Área de Responsabilidade do Comando do Pacífico dos EUA (United States Indo-Pacific Command, termo em inglês). Ao menos desde a Segunda Guerra Mundial, os EUA investem em uma estratégia de basing na região.

Com efeito, para além de forças em seus territórios como Havaí, Guam e Diego Garcia, as Forças Armadas dos Estados Unidos possuem suas mais importantes bases e instalações nas ilhas japonesas e na Coreia do Sul. Essa vantagem de posicionamento habilita o país a projetar poder nos mares costeiros à China. Em consequência dessa vantagem, desde o início do século autores como Posen e Krepinevich e Watts alertavam para o “Desafio de Acesso”, ou seja, a construção de cadeias de ilhas (geoestratégicas) por parte da China, com o objetivo de negar acesso (operacional) e área (mobilidade no Teatro de Operações) aos Estados Unidos. Ao se considerar a Primeira Cadeia de Ilhas, a presença avançada das forças estadunidenses no Japão e na Coreia está no limite dessa demarcação geoestratégica, ao alcance da projeção de poder militar chinês.

Figura 1 – Primeira e Segunda Cadeia de Ilhas

Geographic-Boundaries

Com a emergência da China como potência militar, sua condição de near-peer competitor está cada vez mais próxima da paridade. Além do desenvolvimento e da aquisição de porta-aviões com sofisticada aviação embarcada e a ampliação de sua força de superfície e submarina, destaca-se, em particular, o desenvolvimento da missilística no Exército de Libertação Popular (PLA, na sigla em inglês). Isso associado a um permanente esforço em moldar geograficamente o futuro ambiente operacional no Mar do Sul e Leste da China. De uma ampla gama de mísseis terra-ar, ar-ar e antinavio, na última década a China surgiu como uma das pioneiras na tecnologia de mísseis hipersônicos. Conjunto à artilharia de longo alcance preposicionada, o desenvolvimento das capacidades missilísticas chinesas permite, em tese, cobrar um elevado custo de acesso e de mobilidade em potenciais teatros de guerra e teatros de operação contestados no futuro.

Figura 2 – Alcance dos principais sistemas missílicos da China no Indo-Pacífico

Como demonstrado na guerra russo-ucraniana, a capacidade de deep fires, por mísseis e MLRS, agrega elevada mobilidade e poder de fogo. Isso permite a sobrevivência da tropa e do material e contribui para a sustentação da capacidade combatente.

Force Design 2030, uma mudança no paradigma dos marines?

As últimas décadas têm sido marcadas pela crescente evolução da China no contexto internacional. Essa mudança ocorre não apenas no aspecto econômico, como também na dimensão militar. A figura a seguir exemplifica essa visão, ao destacar o notável crescimento das despesas militares chinesas, segundo o Instituto Internacional de Pesquisa para Paz de Estocolmo (Stockholm International Peace Research Institute, SIPRI, termo em inglês).

Figura 3 – Gastos militares em 2022

Military expenditure | SIPRI

Desde o fim da década de 1990, a China recebeu transferência de tecnologia militar russa. Adicionado a iniciativas bilaterais, o país investiu pesadamente em seu sistema de ciência, tecnologia e inovação, nos âmbitos civil e militar. Um dos exemplos de seu progresso técnico significativo foi a construção de seu primeiro porta-aviões, em 2017. Anexando-se ao desenvolvimento de outros sistemas de armas, o projeto de força chinês objetiva evitar que, em um possível conflito militar com os Estados Unidos, este último consiga atacar seu território. No meio militar, essa estratégia é conhecida como “defesa de território por negativa de acesso”, representada pela sigla em inglês de Anti-access/Area Denial (A2AD).

O desenvolvimento da estratégia operacional chinesa e o desafio de acesso por ela imposto desafia as Forças Armadas dos Estados Unidos, em particular sua Marinha e, consequentemente, os Fuzileiros Navais.

Em razão da reemergência da China e de seu desafio aos interesses americanos na Ásia-Pacífico, os Estados Unidos reconheceram que há um ponto crítico de inflexão no período atual. Frente a isso, o Departamento de Estado dos EUA iniciou o processo de reavaliação da estrutura de suas forças, bem como do tamanho e das capacidades de sua força conjunta. Para tanto, em 2020, lançou uma Estratégia Marítima, a fim de reforçar suas capacidades de dissuasão (deterrence) no mar, envolvendo os três serviços relacionados a essa tarefa: os Fuzileiros Navais, a Marinha e a Guarda Costeira.

Em razão da necessidade de expressiva modernização nas áreas de estrutura, treinamento, organização e conceito operacional atual, autoridades políticas e militares estadunidenses questionam se o Corpo de Fuzileiros Navais está preparado para os novos desafios no cenário de uma possível guerra entre grandes potências, em especial com a China.

Diante do desafio do novo cenário internacional, o general David H. Berger, comandante do Corpo de Fuzileiros Navais, tem como prioridade a implementação de um novo plano estratégico, denominado Force Design 2030. Radicalmente diferente de seu histórico recente de emprego nas guerras de contrainsurgência no Afeganistão e no Iraque, este plano prevê o desenvolvimento de capacidades dos fuzileiros navais para atuar em operações dispersas de combate em uma cadeia de ilhas (First Island Chain), na região do Indo-Pacífico.

Figura 4 – Infográfico do Force Design 2030

History of Modernization

Em síntese, o plano se resume a quatro aspectos principais: abdicar do emprego de tanques (carros de combate, em especial MBT’s); substituir cerca de 75 % de sua artilharia rebocada por sistemas de foguete de longo alcance (MLRS); reduzir os esquadrões de helicópteros; assim como do contingente nos batalhões de infantaria. Ainda que o reconhecimento das mudanças no sistema internacional, o plano é objeto de críticas por militares estadunidenses.

Tradição, ou readaptação ao novo contexto de guerra?

Mesmo com o reconhecimento das mudanças no ambiente estratégico internacional, o projeto de modernização do U.S. Marine Core é alvo de críticas, em especial dos generais da própria força militar. Esse grupo é composto por uma média de 12 oficiais generais da reserva, que utilizam da sua influência para que o Congresso não o aprove.

O principal argumento contra incide sobre a redução no quantitativo da tropa e a desistência do uso de tanques em campo de batalha. Para alguns generais críticos à medida, a redução da tropa retiraria dos marines a capacidade combatente inicial. De outra forma, o argumento utilizado pelo general crítico ao novo plano se justifica pela profissionalização e especialização constante do Corpo de Fuzileiros Navais ante as novas ameaças complexas. Acima de tudo, argumentam que a opção pelo aprofundamento das operações conjuntas não deve implicar, necessariamente, a redução de tropas da força.

Apesar do ácido debate sobre mudanças nos Fuzileiros Navais, as alterações propostas no Force Design 2030 vislumbram os próximos dez anos, contando com a perspectiva de aumento do orçamento de Defesa. Sobre esse tópico, o presidente Biden (2021 – presente) não negou esforços no sentido de sustentar uma vantagem militar dos Estados Unidos e garantiu que o Corpo de Fuzileiros Navais terá seu orçamento e a capacidade de cumprir o que a nova proposta estima.

Figura 5 – Orçamento das Forças Militares norte-americanas

 

Entretanto, se analisarmos pela redução proposta no plano, a mudança pode ser efetiva em todos os sentidos – observa-se que, em comparação com as outras Forças, os fuzileiros desfrutarão de um orçamento menor. Por fim, conclui-se que os Estados Unidos não têm diante de si apenas os desafios provenientes das ameaças externas, como também a insatisfação doméstica oriunda dos custos da mudança em suas Forças Armadas, inclusive naquela força que é a mais icônica do poder militar estadunidense.

 

[1] De forma breve, a “Revolução nos Assuntos Militares” consiste em transformações no ambiente organizacional e estratégico em consonância com o avanço tecnológico ao longo do tempo. Como policy agenda, a RMA deu lugar à “Transformação Militar’ nos anos 2000, focada mais em mudanças graduais e controladas do que em saltos “revolucionários” em termos de tecnologias, doutrina e organização.

 

* Augusto W. M. Teixeira Júnior é doutor em Ciência Política (UFPE), com Estágio Pós-Doutoral em Ciências Militares (IMM-ECEME). Professor Associado I do Departamento de Relações Internacionais da UFPB e membro do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais, da mesma instituição. Pesquisador INCT-INEU. Coordena o Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Segurança Internacional (GEESI/UFPB /CNPq). Bolsista Produtividade em Pesquisa (PQ). Pesquisador do projeto Mísseis e Foguetes na Defesa Nacional: O Sistema Astros Como Elemento de Transformação Militar, PROCAD-DEFESA 2019. Contato: augustoteixeirajr@gmail.com.

Yasmim Reis é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa da Escola Superior de Guerra (PPGSID/ESG), bolsista CAPES, pesquisadora colaboradora no Opeu e assistente de pesquisa voluntária no Laboratório de Simulações e Cenários na linha de pesquisa de Biodefesa e Segurança Alimentar (LSC/EGN). Contato: reisabril@gmail.com.

** Primeira revisão: Simone Gondim, jornalista formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com mais de 20 anos de experiência profissional, entre redações, assessoria de imprensa e produção de conteúdo para Internet e redes sociais. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Segunda revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 10 de maio de 2023. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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