Desglobalização, guerra e a tentativa dos EUA de Biden de conter a China
Neoliberalismo em xeque? Recortes de Ronald Reagan e Margaret Thatcher (Crédito: Andrew CC BY NC ND 2.0/Flickr)
Por Williams Gonçalves*
Dois textos publicados recentemente nos Estados Unidos revelam o que têm pensado formuladores de política e agentes governamentais em relação à posição crítica em que o país se encontra no sistema internacional de poder. Os textos são dedicados ao exame de questões distintas uma da outra, mas complementares na busca de soluções para as dificuldades que a superpotência tem enfrentado nas relações internacionais.
O primeiro deles é o Relatório Especial, assinado por Gavin Bade, e publicado em 23/5/2023, no site Politico, intitulado Joe Biden wants a “new economic order”. It’s never looked more disordered.
O segundo é o artigo intitulado America and the Idea of Eurasia, assinado por Seth Cropsey, presidente do Yorktown Institute, um think tank baseado em Washington, D.C., cujo objetivo é refletir sobre as questões estratégicas relativas à supremacia do poder norte-americano, segundo o ponto de vista do poder marítimo. O artigo de Cropsey, um oficial de Marinha e ex-subsecretário adjunto da Marinha dos Estados Unidos e fundador e presidente do Yorktown Institute, foi publicado no site RealClear Defense igualmente em 23/5/2023.
O relatório elaborado por Gavin Bade tem por base entrevistas e palestras proferidas por agentes governamentais, tais como: Joe Biden, presidente do país; Katherine Tai, representante comercial dos Estados Unidos (USTR); Jake Sullivan, conselheiro de Segurança Nacional; Marco Rubio, senador republicano; Robert Lighthizer, ex-chefe comercial do presidente Donald Trump; Matt Duss, ex-assessor de política externa do senador Bernie Sanders. O único acadêmico citado no relatório é o historiador Gary Gerstler, autor do livro de sucesso intitulado The Rise and Fall of the Neoliberal Order: America and the World in the Free Market Era.
O livro de Gary Gerstler dá o diapasão do relatório de Gavin Bade. Todas as autoridades, cujas declarações são arroladas no relatório, estão de acordo com a tese apresentada por Gerstler de que as práticas econômicas de conteúdo neoliberal e a ideologia da globalização que legitimou essas práticas não apenas estão esgotadas, mas, mais do que isso, foram reconhecidamente danosas para com os interesses dos Estados Unidos.
EUA e o dilema do neoliberalismo
A defesa das mais amplas liberdades individuais, combinadas com privatizações, desregulamentação do trabalho e completa abertura dos mercados, longe de proporcionar prosperidade para todos, tal como prometia a ideologia da globalização, resultou, na verdade, em enorme desigualdade de renda, cujos sintomas mais perniciosos são o empobrecimento da classe média e a miséria de boa parte da classe trabalhadora.
Todas as autoridades citadas pelo relatório, a começar pelo presidente Joe Biden, também estão de acordo em que a globalização neoliberal beneficiou a China, possibilitando a esse país se tornar uma potência econômica que passou a contestar a hegemonia dos Estados Unidos.
Convém assinalar que essa conclusão – hoje comum a democratas e republicanos, tais como Katherine Tai e Marco Rubio – fora prevista pela ala mais à direita do Partido Republicano, em meados dos anos 1990, quando os Estados Unidos eram governados por Bill Clinton, um democrata intensamente empenhado em promover a globalização. Na época, em virtude do entusiasmo liberal decorrente do colapso do Estado soviético, o discurso republicano conservador foi interpretado como mera manifestação de políticos conservadores fora de sintonia com a realidade e com as novas tendências antevistas pelos mais esclarecidos.
No contexto atual, a constatação de que o neoliberalismo não serve mais como estandarte dos interesses econômicos dos Estados Unidos corrobora as posições enfaticamente defendidas por Trump. E este é o grande dilema democrata. Há a consciência de que, tanto por razões domésticas quanto por razões externas, neoliberalismo e globalização não mais correspondem aos interesses nacionais norte-americanos, mas como afirmar essa ideia sem dar razão a Trump?
Desse dilema cresceu entre os democratas a ideia assinada por Biden de “uma nova ordem econômica internacional”. Por entender que a resposta de Trump ao desafio do esgotamento do neoliberalismo tem caráter “populista”, unicamente concentrado na competição comercial com a China, Biden e seus assessores creem necessário promover uma nova concepção de economia que não seja baseada no livre-comércio.
Como o autor do relatório observa, admitir que a maneira como a economia foi conduzida levou a distorções sociais, crise financeira e eleição de Trump é uma coisa; outra coisa é criar uma ordem econômica internacional diferente. E, para isso, parece não haver muita clareza.
Desglobalização para conter capitalismo à la China
Biden e seus assessores consideram que o ponto de partida para a criação da nova ordem econômica internacional é a reforma da Organização Mundial do Comércio (OMC). Essa escolha teria um caráter prático e simultaneamente simbólico, uma vez que a OMC funcionou como o eixo da globalização. A reforma da OMC representaria, portanto, o eixo da desglobalização.
De acordo com esse novo consenso que viria a constituir o “novo consenso de Washington”, o objetivo seria substituir os velhos paradigmas da globalização – livre-comércio e dependência dos mercados – por uma “política comercial ‘centrada no trabalhador’ que aumentaria os salários não apenas dos norte-americanos, mas de todo o mundo”. Isto é, Biden sonha em virar a globalização de cabeça para baixo, privilegiando os trabalhadores e investindo contra as grandes corporações.
(Arquivo) Futuro feito na América: presidente Joe Biden discursa em fábrica em Hamilton, Ohio, em 6 de maio de 2022 (Crédito: Casa Branca/Adam Schultz/Flickr)
Independentemente de muitos outros questionamentos que a ideia suscita, Biden enfrenta, de imediato, dois sérios obstáculos para levar à frente esse ousado projeto. O primeiro deles é apresentar essa ideia em uma disputa eleitoral com Trump. O mínimo que este último diria é que Biden está dando razão a tudo o que ele tem dito e tem feito, o que representaria vergonhosa capitulação eleitoral de Biden – e derrota certa.
O segundo grande obstáculo é a China. A China é o grande obstáculo externo, porque se tornou a principal defensora da globalização, segundo seus próprios termos. Ou seja, mediante a fusão de uma economia administrada pelo Estado, que comporta medidas protecionistas de todo tipo, e que explorou todas as facilidades concedidas aos países em desenvolvimento, a China não só se alçou à condição de potência econômica, como também estendeu seus tentáculos comerciais e empresariais a todos os continentes.
O que os norte-americanos têm constatado na prática, em sua busca desse novo padrão de relacionamento comercial que estão tentando introduzir, sobretudo com os países periféricos, é que seu discurso foi sobrepujado pelo dos chineses. Em seu relacionamento com os países pobres, os chineses comparecem com ajuda concreta ao desenvolvimento, ao contrário do que os norte-americanos fizeram ao longo de todo o período em que ocuparam posição hegemônica. Além de respeitar a soberania dos parceiros, não se envolvendo nos assuntos internos, os chineses, em vez de discursos em favor da democracia e do livre-mercado, constroem portos, aeroportos, escolas e hospitais.
Enfim, o relatório de Gavin Bade esclarece que aqueles que pensam a economia dos Estados Unidos estão conscientes de que o neoliberalismo promoveu sérias distorções econômico-sociais internamente e fechou portas no exterior, ao mesmo tempo que possibilitou a irresistível ascensão da China à condição de economia central do sistema internacional de poder. E esclarece, igualmente, que ainda estão tateando, em busca de soluções para evitar um declínio que, à medida que o tempo passa, parece cada vez mais próximo.
Dedicado à reflexão sobre a situação dos Estados Unidos frente às relações de poder, o texto de Seth Cropsey discorre sobre os grandes problemas que os Estados Unidos precisam superar para não perder sua posição de principal potência do sistema de poder mundial.
Vitória da Ucrânia seria êxito dos EUA
A exemplo de vários outros estudiosos da geopolítica, discípulos do geógrafo britânico Halford John Mackinder, que, em 1904, pronunciou, na Royal Geographical Society (London), a paradigmática conferência The Geografic Pivot of History, Cropsey considera que a posição de qualquer potência como hegemônica depende de sua capacidade de exercer domínio sobre a Eurásia. Tal determinação teria tido início no século XVI, quando o desenvolvimento do sistema comercial de longa distância começou o processo de globalização histórica.
Desde então, as potências europeias travaram incessante disputa pelo controle da macrorregião que se estende da parte ocidental da Rússia até a Sibéria, atravessando toda a Ásia central. O controle exercido pelos europeus sobre esse extenso território foi interrompido, no entanto, devido ao desfecho da Primeira Guerra Mundial. A intervenção dos Estados Unidos determinando a vitória da Tríplice Entente sobre os Impérios Centrais provocou uma fragmentação da Eurásia, opondo, principalmente, Alemanha e União Soviética, o que permitiu aos norte-americanos, por meio do cultivo do afastamento desses dois grandes Estados, usufruir de posição hegemônica. Os instrumentos, por meio dos quais Washington sustentou sua posição, foram a OTAN e as alianças na Ásia.
Cropsey argumenta que essa estrutura se tornou vital para os Estados Unidos. Não apenas a economia norte-americana seria fortemente abalada, caso alguma potência venha a dominar a Eurásia, como a própria unidade político-territorial dos Estados Unidos estaria ameaçada. Ele considera que uma mudança geopolítica dessa magnitude seria capaz, portanto, de resultar até mesmo em fragmentação do Estado norte-americano, que poderia ser vítima dos distintos interesses regionais existentes.
Diferentemente de outros conhecidos seguidores das teses de Mackinder, Cropsey afirma que a Eurásia compreende a Europa, o Oriente Médio e a Ásia. Mais objetivamente, a concepção dele de Eurásia abrange toda a área que vai da Ucrânia até Taiwan, passando, portanto, por toda a Ásia central e por todo Oriente Médio.
De acordo com esse seu enfoque, não há dúvida de que o mundo já se encontra em guerra. Uma guerra que opõe os Estados Unidos aos Estados que ambicionam dominar a Eurásia. A guerra da Ucrânia constitui a frente de combate em plena combustão. Mas, segundo sua apreciação, fica claro igualmente que a guerra será longa. E os inimigos também são bem conhecidos: China, Rússia e Irã.
A dinâmica da guerra, como ele afirma, não depende apenas dos Estados Unidos. Depende, evidentemente, do comportamento desse Estados inimigos. Os Estados Unidos precisam, por meio do mecanismo das alianças, inibir a iniciativa desses inimigos. Precisam, por exemplo, impedir que o Irã alcance a capacitação nuclear. Mas isso não é certo, sendo mais provável que os iranianos sejam bem-sucedidos nesse seu projeto, embora isso exija cerca de dez anos.
Nesse sentido, por um lado, a vitória da Ucrânia sobre a Rússia seria fenomenal êxito dos Estados Unidos, daí a importância da mobilização de todos os aliados no apoio à Ucrânia. Por outro, uma iniciativa militar da China com vistas a incorporar Taiwan ao território da República Popular exigiria a pronta mobilização dos Estados Unidos e de todo o sistema de segurança asiático, o qual se apoia no Japão.
Nossas considerações
Como se deduz dessas duas interessantes reflexões sobre a situação econômica e sobre a situação militar-estratégica dos Estados Unidos na atual conjuntura, tanto os formuladores de política econômica como os formuladores de política de defesa entendem que os Estados Unidos estão em guerra.
A Iniciativa Cinturão e Rota da Seda encaminhada pela China coloca os Estados Unidos contra a parede. A política econômica neoliberal de promoção da globalização se voltou contra os próprios interesses nacionais norte-americanos. Internamente, essa política econômica desequilibrou a sociedade. Tornou-se responsável por uma absurda concentração de renda. A sociedade afluente distinguida por John K. Galbraith, na qual todos teriam acesso aos bens necessários a uma vida plena de conforto, transformou-se em uma sociedade cortada por agudas desigualdades sociais e encimada por uma pequena camada de hiper-ricos.
A desregulamentação do trabalho e a abertura para uma ampla mobilidade do capital, esse sempre incansável na busca de menores custos de produção e de consequentes maiores lucros, desestruturou a classe operária do país, sendo responsável por grande parte dessa classe afundar na pobreza e se envolver em um incontrolável processo de violência urbana. A sociedade que atraía gente de todo o mundo em busca de realização de vida se transformou em uma sociedade que ergue muros para se ver livre de imigrantes.
No exterior, a globalização neoliberal permitiu que a China, atenta às possibilidades que se ofereceram, desenvolvesse um capitalismo administrado pelo Estado, mediante o qual tem conseguido reduzir significativamente a pobreza de sua sociedade, garantindo estabilidade para o sistema político gerenciado pelo Partido Comunista. Ao mesmo tempo, elaborou um exitoso programa de expansão de seus interesses por todo o mundo, principalmente pelo mundo periférico. Essa política chinesa foi, pouco a pouco, limitando a presença econômica dos Estados Unidos e limitando, consequentemente, sua influência política.
Globalização neoliberal permitiu à China desenvolver um capitalismo de Estado (Crédito: photoman/123rf.com)
Do ponto de vista estratégico-militar, a guerra está em curso. Por enquanto, a participação norte-americana é indireta, apesar de ostensiva. Afinal, no que diz respeito à Ucrânia, esta somente tem resistido ao ataque russo, graças a armamentos e a munições fornecidos pela OTAN.
Mas, como diz o estudioso por nós citado, qualquer resultado dessa guerra diferente de uma vitória ucraniana representará uma derrota para os Estados Unidos, determinada por seu explícito engajamento.
Por fim, resta considerar que, qualquer que seja o resultado dessa guerra, outros focos de confronto envolvendo seus interesses nacionais poderão ocorrer. E, caso isso venha a acontecer, os Estados Unidos, para defender sua posição hegemônica e não submergir em grave crise, deverão estar prontos para conceder total apoio aos seus aliados. Tudo isso significa que o Estado norte-americano se encontra em uma encruzilhada e que sua elite política terá de responder com muita competência e criatividade para manter a posição internacional que considera de seu direito.
* Williams Gonçalves é Professor Titular de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (PPGEM-EGN). Doutor em Sociologia, também é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU). Contato: wdgoncalves@uol.com.br.
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. 1ª versão recebida em 26 de maio de 2023. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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