Uma Nova Crise, não tão nova assim. Os bancos na berlinda.
Crédito: Freepik
Por Jaime Cesar Coelho*
Março colocou o sistema financeiro internacional novamente em alerta. Dois bancos regionais dos Estados Unidos (Silicon Valey Bank e Signature Bank), o 14º banco estadunidense (First Republic) e um megabanco transnacional (Credit Suisse) entraram em bancarrota.
O que há em comum entre esses bancos, o que se passou e quais os riscos embutidos são perguntas que buscaremos responder nas linhas que seguem.
Começando por entender o que se passou. Os problemas se somaram desde a composição de carteira, o grau de exposição e as coberturas de risco (hedge e provisionamento de capital). Tudo isso temperado pelo perfil temporal de suas obrigações relativas aos seus ativos.
Tanto o SVB quanto o Signature estavam expostos em negócios com criptomoedas. No caso do nova-iorquino Signature, tratava-se do líder em empréstimos desse tipo de ativo, aceitando depósitos em criptomoeda. Desde 2021, o valor de mercado das criptomoedas começou a enfrentar problemas, caindo a um terço do valor entre dezembro de 2021 e fevereiro de 2023, depois de um crescimento exponencial entre 2017 e 2021. Nessa barrigada recente, algumas grandes do setor entraram em colapso, como foi o caso da FTX.
(Arquivo) SVB em Jan 31, 2020 Santa Clara, Califórnia, em 31 jan. 2020 (Crédito:Andreistanescu /Dreamstime.com)
Entendendo a exposição do SVB às criptomoedas
Quando a FTX, uma megaempresa de assets tokens – ativos virtuais, não tangíveis, representativos de um valor de propriedade (como criptomoedas, ou certificados de arte digital) –, entrou em curva descendente, os correntistas do SVB ficaram temerosos. Calcula-se a exposição do banco como a terceira maior em uma lista de 23 instituições que faliram em crises recentes, perdendo apenas para os casos do JPMorgan, Capital One Financial e Citgroup. Expressiva também era a quantidade de depósitos não segurados contra depósitos segurados, em uma razão de 7,5 para 1. Algo que parece ter afetado, também, o First Republic Bank, o 14º em ativos dos EUA, que tinha um volume de crédito não segurado 50% maior que a média do setor.
A economia também não vinha ajudando, fazendo os lucros dos depositantes do setor de startups tecnológicas despencarem.
Quando os correntistas começam a fazer saques, diante de uma avaliação adversa sobre a fragilidade da composição da carteira da instituição, entram em cena as suas garantias, ou seja: a cobertura de risco e o principal ativo de segurança. Durante muito tempo, os juros baixos ajudaram a proporcionar um aumento da exposição ao risco e uma excessiva ancoragem em títulos de longo prazo do Tesouro americano.
No momento em que as taxas de juros começaram a subir, bingo: os ativos em renda fixa, os bônus do Tesouro, ficaram ilíquidos. Quando as taxas de juros sobem, os preços dos títulos caem e, consequentemente, a razão entre passivos – obrigações, como os depósitos dos correntistas – e ativos se eleva. Sem vender o principal ativo de segurança, a liquidez se tornou insuficiente diante da corrida para os saques. Trata-se, em um primeiro momento, de uma crise de liquidez, que, no caso dos referidos bancos, transformou-se em uma crise de solvência.
Em resumo: a velha e conhecida corrida bancária. Nesse momento, ou o Estado intervém e salva os bancos, e os correntistas também, ou paga para ver e deixa o fogo no paiol se alastrar, em nome dos bons costumes e da boa moral da religião liberal. Trata-se de assumir o risco moral, ou de, moralmente, se atirar no precipício. Geralmente, a ideologia tira seu véu nessas ocasiões.
Martin Wolf, principal comentarista de economia do jornal britânico Financial Times, desenha: “Bancos quebram. Quando isso acontece, aqueles que perdem dinheiro clamam pelo resgate do Estado”.
O que é sugestivo, nas palavras de Wolf, é que, agora, quem grita pelo resgate do Estado são os libertários do Silicon Valley, em uma ironia por conta da relação do SVB com as startups do Vale do Silício. Diga-se, como referência adicional, que uma grande parte das startups do SVB estava ligada à inovação ambiental, o que não é uma boa notícia para os negócios americanos de vanguarda tecnológica em um setor competitivo em escala global.
Bancos são feitos para falir?, pergunta Wolf, em outro instigante comentário. “O dinheiro é o que se deve ter para comprar as coisas de que se precisa. Isso é verdade para as famílias e as empresas, que precisam pagar fornecedores e trabalhadores. É por isso que as falências bancárias são calamidades. Mas os bancos não são projetados para serem seguros. Enquanto seus passivos de depósito devem ser perfeitamente seguros e líquidos, seus ativos estão sujeitos a riscos de vencimento, crédito, taxa de juros e liquidez. São instituições justas com condições meteorológicas boas. Em tempos ruins, eles falham, pois os depositantes correm para as suas portas (para sacarem seus recursos, grifo meu)”.
Nesse aspecto, temos um sistema que é fundamental para o funcionamento dos mercados, o financeiro, mas que não funciona sob as regras do mercado, conforme frisa Wolf. Poderíamos acrescentar que o sistema é efetivamente útil não só para o mercado como para o público em geral. Se a moeda é um bem público, deveríamos pensar que o sistema financeiro, como guardião da riqueza na forma líquida, deveria ter um tratamento especial, de tal maneira que sua exposição ao risco fosse controlada. Se isso não é assim, como observamos em diferentes momentos na saga dos últimos 50 anos de neoliberalismo, os bancos se expõem excessivamente ao risco e socializam prejuízos por meio do salvamento dos governos em momentos de crise.
Cassino financeiro
No Brasil, sabemos muito bem como isso é real, ou melhor, como o resgate se deu com o famoso programa de salvamento aos bancos em 1995, sob o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso e na sequência da implementação do Plano Real. Seria de se estranhar que, dado o caráter estratégico do sistema bancário no capitalismo monopolista sob a liderança financeira, o sistema viesse à bancarrota sem que os agentes públicos não interviessem. Talvez, na imaginação de um mundo ideal hiperliberal, o moral hazard pudesse ser evitado sem que o Estado salvasse os especuladores do grande cassino financeiro, mas isso implicaria deixar todo o sistema ruir.
O Estado não somente salva os agentes financeiros como os coloca regulando a si próprios quando nomeia autoridades monetárias ligadas ao setor financeiro. Ao permitir a suposta independência do Banco Central, confere ao mesmo o poder de decidir com os banqueiros e com os agentes financeiros privados os seus próprios destinos, em um jogo explícito e escandaloso de captura regulatória. O pior de tudo isto: a banca manda, e o público não percebe e não opina.
Seria diferente nos Estados Unidos? Segundo a senadora Elizabeth Warren (D-MA), não. Ardorosa combatente democrata contra os abusos do sistema financeiro, ela publicou em seu perfil no Twitter: “Nós devemos repelir o retrocesso implementado por Trump a partir de 2018 na regulação financeira. Reguladores devem também agir para prevenir uma outra crise – começando por Powell (referência a Jerome Powell, presidente do FED, grifo nosso) e reverter a desastrosa era Trump do FED que desenhou iniciativas que ajudaram a criar essa bagunça”.
Trata-se do pagamento de Trump para Wall Street pela sua eleição. Sua gestão foi generosa com os financistas, ao colocar em postos-chave da administração pessoas ligadas ao mundo financeiro que ajudaram a flexibilizar a Lei Dodd-Frank de defesa do consumidor, criada após a crise de 2008. A desregulamentação de Trump se deu, para sermos justos, com apoio dos democratas em maio de 2018, com a aprovação da Economic Growth, Regulatory Relief and Consumer Protection Act, na qual os pequenos bancos regionais, sob regulação desde a Dodd-Frank, foram deixados livres para voar.
Esses pequenos bancos saíram, assim, da mira dos agentes regulatórios, porque ficaram à margem das regras de requerimento de capital próprio que os grandes bancos tinham que cumprir após a aprovação da Dood-Frank. Acreditava-se que essas instituições regionais não representavam risco sistêmico. Não eram grandes o suficiente para que não pudessem falir. Como alertaram os críticos dessa flexibilização, alguns anos depois, os problemas ficaram evidentes.
O problema regulatório também aparece em velhas e sabidas práticas do cassino financeiro global. Altos executivos do SVB colocaram suas participações à venda, depois de fazerem uma tentativa de levantar capital, duas semanas antes de seus correntistas começarem a sacar seus recursos. Também há suspeita de aumentos expressivos para altos executivos nos últimos quatro anos, dentro de um esquema de manipulação da taxa de retorno da instituição, posto que os bônus pagos em dinheiro eram vinculados à performance do banco. A situação regulatória sempre foi uma fraqueza sistêmica, desde que a financeirização ganhou seu estatuto político hegemônico. E é um problema político.
Democratas e republicanos não se diferenciam nesse aspecto, embora, no caso específico, a culpa pareça recair, em certa medida, na gestão Trump: “Os republicanos se esforçaram para afrouxar as regulamentações bancárias nos últimos anos, e bancos como o SVB fizeram lobby anteriormente para serem excluídos da categoria de ‘bancos sistemicamente importantes’ – o que significa que eles enfrentaram padrões mais baixos de capital e liquidez. Isso é uma loucura”.
Em relação aos impactos da política monetária sobre a situação de liquidez dos pequenos bancos, há, no caso do SVB, um vácuo legal regulatório, pois ele não se enquadra na categoria dos pequenos bancos que estariam sob a supervisão do órgão responsável, o Escritório para o Controle da Moeda (Office for the Controller of the Currency – OCC).
O Credit Suisse é mais do mesmo, porém, com uma dimensão muito maior. Como disse Nouriel Roubini: o banco é grande demais para ser salvo. Os problemas se tornaram insanáveis, quando o principal acionista do banco, o Saudi National Bank (SNB), resolveu cessar os aportes, deixando o banco suíço a descoberto. Com 9,8% do controle, os sauditas ficaram preocupados em atingir 10% e mudar sua condição regulatória. Neste novo status, seriam controladores efetivos da instituição, aumentando sensivelmente sua exposição ao risco.
Nouriel Roubini: ‘grande demais para ser salvo’ (Crédito: Sebastian Derungs/World Economic Forum/Flickr)
A dinâmica expansiva da centralização
Em meio a um risco sistêmico, a solução encontrada até o momento tem sido a busca de “soluções de mercado”, em que instituições financeiras aportam recursos e absorvem parte dos ativos, socializando os passivos em combinação com o resgate dos Estados. A isso se dá o nome de centralização e concentração do capital, confirmando a lógica monopolista do atual sistema.
Para enfrentar riscos e incertezas, os bancos americanos já tomaram emprestados, no último mês, cerca de US$ 475 bilhões do Federal Reserve, dinheiro este para fazer frente aos US$ 500 bilhões de saques registrados. Parte expressiva dos saques foi parar em grandes bancos na forma de depósitos, em um movimento claro de centralização financeira e que implica uma concentração tendencial setorial. No caso do Credit Suisse, o governo suíço promoveu sua absorção pelo maior banco do país, o UBS.
Apesar dos esforços recentes e de uma melhoria nas expectativas do mercado na primeira semana de abril, nada está suficientemente resolvido, em um quadro em que a regulação é feita em parceria com os regulados, ou sob o comando deles. Com prognósticos de uma economia global em recessão e sob a tendência de um período de elevação das taxas de juros, estamos diante de fortes emoções. É bom não nos esquecermos de que os fundamentos da economia hiperliberal ainda estão no comando e que os ventos da crise se combinam com os ventos da rivalidade sistêmica, em um quadro geopolítico de grande instabilidade. Tempestade perfeita para novos abalos sísmicos? A ver.
* Jaime Cesar Coelho é professor Titular de Economia e Relações Internacionais (UFSC) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). Contato: jccoelho@ineu.org.br. Primeira versão recebida em 12 abr. 2023. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
** Primeira revisão: Simone Gondim, jornalista formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com mais de 20 anos de experiência profissional, entre redações, assessoria de imprensa e produção de conteúdo para Internet e redes sociais. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Segunda revisão e edição final: Tatiana Teixeira.
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